Senso Incomum

Que tipo de sistema de justiça desejamos para o Brasil?

Autor

29 de setembro de 2022, 8h00

Já escrevi sobre o protótipo do aluno ideal, do advogado e do professor. Tudo aqui na ConJur. Chegou a vez de escrever sobre o sistema de justiça. Um sistema de justiça adequado ao Estado Democrático de Direito constante na Constituição do Brasil. Nada de extraordinário, pois: apenas o cumprimento da lei — algo que, na democracia, lembremos, não é feio. Não deveria.

Spacca
Muito tempo e energia se gastou especulando o que seria uma Teoria Geral do Processo e se poderíamos elaborar conceitos universais para essa área. Na linha de alguns processualistas italianos, busco essa resposta num modelo constitucional de processo. Particularmente, em um modelo constitucionalmente adequado à nossa realidade.

As mudanças estruturais que se fizeram no CPC/2015, no sentido de aprofundar o direito ao contraditório e à fundamentação das decisões, não deveriam ser tomadas como uma questão regional, restrita ao âmbito do processo civil. Sustentei que os institutos dos artigos 10, 489, 926 e tantos outros eram concretizações necessárias de princípios constitucionais. Nessa linha, já naquele ano nos mobilizávamos em torno de uma reforma do mesmo tipo, no âmbito do processo penal. E depois uma com o mesmo espírito no âmbito trabalhista, nas execuções fiscais, etc. Processualistas iam e voltavam em nosso Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos, fazendo pesquisas e articulações legislativas. Foi bonito.

Eram outros tempos. A comunidade acadêmica havia passado a participar de debates sobre a democratização do nosso sistema de justiça de forma inédita — lembremos tantos códigos processuais elaborados no Brasil durante ditaduras. Mas aí veio a crise da própria democracia e a reforma processual penal ficou esquecida. Uma crise muito fomentada por distorções do próprio processo penal, marcado por personalismos e punitivismos que explodiu em escândalos bem previsíveis. Grande parcela da comunidade jurídica brasileira tem as mãos sujas por tudo isso que está aí. Jabuti não dá em árvore, afinal.

Agora, precisamos urgentemente fazer as reformas estruturais que não foram feitas nesses anos. A grande mídia fala da reforma administrativa e tributária, porque até os economistas ligados ao mercado (esse oráculo contemporâneo) já avisaram o tamanho do problema.

Já eu vou chamar atenção para o que pouco se fala: precisamos reformar o sistema de justiça, para que não caiamos em uma nova crise muito em breve. Urgentemente. Já vem tarde demais. Mas tomemos cuidado para que essas reformas não sejam feitas como é comum ocorrer no Brasil: mantendo privilégios e cortando direitos fundamentais, especialmente dos mais vulneráveis. E apostando em personalismos, ao invés de fortalecer instituições democráticas. A República precisa de mediação. Essa é a chave.

Buscando estabelecer diretrizes para essa reforma, eu, Georges Abboud, Gilmar Mendes e muitos outros juristas integramos comissão para elaborar um anteprojeto de Código de Processo Constitucional. Na presente coluna Senso Incomum, gostaria de compartilhar algumas noções que julgo fundamentais a esse tipo de empreendimento jurídico.

É claro que esse modelo processual democrático não deve ser como o atual. Não me parece ser próprio de um "Sistema Adequado de Justiça" (doravante SAJ) a existência de um Ministério Público que atua com agir estratégico (obs: finalmente o STF vai decidir acerca da obrigatoriedade de o MP revelar prova que possui a favor da defesa — coisa que já está no projeto de lei Anastasia-Streck de há muito e que não avança por questões corporativas!ler aqui). E não é próprio de um bom sistema de justiça o MP poder escolher os seus alvos.

Além disso, não me parece ser próprio de um SAJ um MP não isento, como, aliás, lamentavelmente deixou assentado o TRF-4 (transitou em julgado) em julgamento recente. Pergunto: quem quer ser acusado por um órgão não isento? Isso é adequado à democracia? Como pode uma instituição de Estado, numa república, agir estrategicamente — uma instituição que tem o papel de fiscalizar o respeito à lei?

Um SAJ não pode conviver com agentes como o procurador que fez o outdoor. E com procuradores como os que receberam as diárias. E como os que trocaram mensagens e fizeram "acordamentos" com o juiz. E com membros do MP que, nas palavras do ministro Schietti, são despachantes de processos (ver aqui).

Um MP não cumpre suas funções constitucionais se, de posse de todas os elementos, faz investigação para procrastinar o feito. Recebe tudo pronto e requer diligências platitúdicas? Parece evidente que isso não faz parte de um SAJ. Não faz parte de um Ministério efetivamente público.

Tudo isso serve para os demais agentes e instituições. Um bom exemplo é a decisão cautelar concedida pelo ministro Gilmar Mendes no dia 27 de setembro de 2022, com fortes críticas ao caráter "lawferiano" de uma ação fiscal movida pela Procuradoria da Fazenda Nacional, órgão da AGU. A ação da PGFN é típico exemplo de uma ação com caráter ideológico. E um SAJ não se coaduna com isso.

Também não é próprio de um SAJ o seu órgão de controle (CNJ) emitir uma resolução institucionalizando o realismo jurídico, isto é, the judge made law à brasileira (ver aqui). Sei que a comunidade jurídica não se atenta a esse detalhe teorético, mas por zelo epistemológico tenho de registrar que o direito não pode ser o que o judiciário diz. Caso contrário, fica fragilizado o direito legislado e a própria CF, além da secundarização do papel da doutrina e das academias (isso sem contar a fragilidade epistêmica do realismo, que quer prever o que as cortes dirão, mas não oferece critérios para que a corte diga o que será o direito amanhã.)

Um SAJ não pode permitir lawfare, quer dizer, o uso político do direito contra seus adversários-inimigos. Questão de (in)compatibilidade.

Um SAJ não se coaduna com o poder plenipotenciário dos presidentes da Suprema Corte e do Parlamento para pautar processos. Justamente porque não pode haver personalismos, mas institucionalidade.

Um SAJ não se coaduna com a ausência de recurso contra decisões de arquivamento provenientes do PGR. Assim como o direito não é o que o judiciário diz, também não pode ser o que o PGR diz que é. O mundo democrático me dá razão. A realidade também.

Um SAJ deve ter como norte a holding da Constituição, que é: esta Constituição veio para desigualar a desigualação. Isto quer dizer que, antes de as súmulas do STF ou as teses do STJ serem vinculantes, o que deve vincular é o "sistema constitucional".

Não está de acordo com um SAJ o STJ, independentemente de o AREsp ser cível ou criminal, fazer o juízo de admissibilidade de uma só maneira, com aplicação dos mesmos óbices, sem qualquer diferenciação baseada no objeto da causa [1]. Imaginemos o número de réus prejudicados.

Igualmente não está em conformidade com um SAJ a resposta aplicada pelos tribunais de segunda instância, ao dizerem que há ausência de afronta ao artigo 619 do CPP ou ao 1.022 do CPC, sendo comum que, diante de impactantes omissões, a autoridade encarregada do juízo de admissibilidade as ignora, alegando que "nada há a esclarecer ou que a parte deseja rediscutir o mérito ou ainda que o juiz tem livre convencimento e por isso não necessita responder aos argumentos da parte, se já está convencido do resultado". E isso não ser avaliado devidamente e corrigido pelo STJ também não está de acordo com um sistema de justiça adequado [2].

Um SAJ tem como norte a Constituição. Assim, o Brasil é uma República que visa a erradicar a pobreza, fazer justiça social, conforme artigo 3º da CF. A Constituição é compromissória e dirigente no tocante aos ditames do Estado Social. Veja-se a geografia da CF: objetivos da República, garantias processuais (liberdades), justiça social (artigos 6 e 7), democracia (divisão de Poderes), Estado Fiscal, Saúde, Meio Ambiente e Educação. Basta seguir o livrinho. Está lá. Não é tão difícil assim. Já está pronto.

Um SAJ não pode ser depender do poder carismático (no sentido weberiano) dos juízes e tribunais. Processo é protocolo. É condição de possibilidade. Não se decide e depois se busca o fundamento. Direito "fofo" já não é mais direito. Apostar na consciência individual do juiz é abrir mão do direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada.

Se temos uma Constituição com essa dimensão prospectiva, por qual razão o judiciário pode resistir ao seu texto, isto é, resistir ao próprio direito?

Um judiciário (em especial a Suprema Corte) que ouve a voz das ruas e a use como "fundamento" não se coaduna com um SAJ. Isso é o contrário do significado do Constitucionalismo Contemporâneo. Durante a tramitação do julgamento da presunção da inocência, jornalistas, jornaleiros e gente do direito diziam que o povo queria prisão automática de segunda instância. Um conhecido político — dos antigos — perguntava quando alguém invocava o povo: "Faculte-me a procuração que o povo lhe outorgou". Chega de juízes e promotores quererem encarnar uma classe média ilustrada que vai salvar o país da política, numa espécie de "tenentismo togado" denunciado por Christian Lynch.

Tampouco um SAJ possui um Supremo Tribunal iluminista e que alavanque a história. Judiciário cuida do passado. Não é demais repetir que os Poderes são Legislativo, Executivo e Judiciário, nessa distribuição geográfica feita pelo constituinte. Nada menos iluminista que um Judiciário iluminista.

Um SAJ não se coaduna com o autoritarismo, pelo qual os advogados fazem um exercício cotidiano de matar dois leões por dia e não conseguem sequer corrigir, via embargos, erros materiais de decisões. Multas por segundos embargos são inconstitucionais em um SAJ.

Um SAJ deve estar baseado no pressuposto de que entre juiz, membro do ministério público e advogado não há hierarquia, sepultando a herança patrimonialista do "Hacete amigo del Juez;
no le dés de que quejarse"
, tão bem denunciado na poesia de José Hernandez em seu magnífico Martin Fierro. Ou o delegado de Ariano Suassuna, que, após receber uma propina de um investigado, lhe garante: "pode contar com a imparcialidade da justiça a seu favor!"

Não alcançaremos um SAJ se não mudarmos a forma dos concursos públicos (recrutamento — essa é a palavra-chave) e o ensino jurídico, hoje transformado em uma fábrica de odiadores da Constituição do seu próprio país. Fossem médicos e fariam passeatas contra antibióticos. Não há SAJ sem um ensino jurídico que ofereça as condições para tal.

Não teremos igualmente um SAJ se o judiciário não compreender minimamente que é desejável, em uma democracia, que o não concordar com uma lei não é motivo para sua não aplicação. Isto é, o fato de o judiciário não estar de acordo com o artigo 926 e os seis incisos do parágrafo primeiro do artigo 489 (reproduzido no CPP) não dá direito a que se dê um drible nos limites semânticos, dizendo, por exemplo, por sua Corte Especial (AgInt no RE nos EDcl no AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1.730.036/SP), em reafirmação do Tema 339 do STF (também equivocado), repetindo sua "tese" e parte de seu acórdão: "embora as decisões judiciais devam ser fundamentadas, ainda que de forma sucinta, não se exige, no entanto, análise pormenorizada de cada prova ou alegação das partes, nem que sejam corretos os seus fundamentos". Não é isso que diz a legislação.

Um SAJ necessita de um CPP absolutamente reformado, com nítidos critérios de fundamentação de decisões e acórdãos, sistema acusatório delineado em minúcias e penalizações por descumprimento de garantias.

No âmbito do processo civil, para um SAJ é indispensável um estancamento da commonlização e cominação de nulidade para decisões que não estejam de acordo com os critérios dos incisos I-VI do parágrafo primeiro do artigo 489, o mesmo valendo para o novo CPP que deverá ser elaborado de imediato.

Um SAJ deve conter, como dispositivo legal — incrível, mas no Brasil isso é necessário —, um que estabeleça o conceito de precedente, com a clara explicitação de que precedentes não são feitos para resolver casos futuros; também deverá ter um dispositivo estabelecendo que precedentes não são conceitos abstratos que se substituam ao legislador; enfim, com as desculpas sistêmicas de praxe (que deveriam ser desnecessárias), devemos restabelecer o valor da doutrina e da legislação (e da própria CF), envidando todos os esforços para que se faça "desrealismo jurídico". E isto por uma razão simples: se o realismo jurídico não deu certo, deve ser abandonado. Mas no Brasil tudo é diferente. Talvez tenhamos que escrever que o Brasil é um país do civil law e não do common law (sinceramente, caros leitores, não sei como fazer isso — aceito sugestões).

Um SAJ não se compatibiliza com uma Justiça do Trabalho que produz sentenças que ameaçam o advogado de multa já na decisão, caso faça embargos que o tribunal (a partir de sua avaliação subjetiva) considere "impertinentes". Do mesmo modo um SAJ não se coaduna com uma Justiça laboral que não faz controle de constitucionalidade e que tem poder "legiferante" com a emissão recorrente de OJ's — que na prática valem mais do que as leis. E quiçá, que a Constituição.

Enfim, um Sistema Adequado de Justiça próprio de um Estado Democrático de Direito não pode depender do protagonismo judicial. Outros países do civil law podem nos ajudar nessa “"desprotagonização". O Brasil não está no sistema common law. Sabemos que não é simpático dizer essas coisas. Mas à doutrina é reservada uma tarefa difícil, desde Savigny, para falar apenas desse importante autor. Coisas que doutrinadores como Otavio Luiz Rodrigues Jr. chamam de recuperação do Estatuto Epistemológico do Direito. Há que se fazer isso.

Com certa urgência. Uma tarefa que deve unir doutrina e jurisprudência.

Para que não seja mais verossímil dizer que, por aqui, uma lei "não pega".

Por uma questão republicana, de democracia. Diria Dworkin, uma questão de princípio.

Eis a minha contribuição neste momento. Invocando Blackburn e Davidson e seu "princípio da caridade epistemológica". Isto é: eu me esforço para bem compreender meus interlocutores e esses fazem o mesmo em relação a mim.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!