Opinião

Dispensas massivas entre a disciplina legal e a solução jurisprudencial

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29 de setembro de 2022, 9h02

Em decisão relativamente recente, proferida em junho deste ano, com acórdão publicado no último dia 15/9, o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou mais uma das questões polêmicas suscitadas a partir da jurisprudência trabalhista e que também foi objeto de disciplina na denominada reforma trabalhista de 2017. Ao examinar, em regime de repercussão geral, o tema das dispensas massivas, compreendidas como a rescisão simultânea de diversos contratos de trabalho no âmbito de uma mesma empresa, a Suprema Corte consagrou o entendimento de que "a intervenção sindical prévia é exigência imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores, que não se confunde com autorização prévia por parte da entidade sindical ou celebração de convenção ou acordo coletivo" (Tema 638 da Tabela de Repercussão Geral).

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Ministro Douglas Alencar Rodrigues, do TST
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No "leading case" em questão, examinou a Suprema Corte a licitude da conduta da empresa pública Embraer , que havia dispensado, no ano de 2009, 4.273 empregados, procedimento que não foi placitado pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) sediado em Campinas (SP), em julgamento de Dissídio Coletivo de Natureza Jurídica. Na aludida ocasião, foi consagrada a tese da abusividade da dispensa coletiva deliberada sem negociação prévia e sem a instituição de programa de demissão voluntária, bem assim fixado o direito a uma compensação financeira de duas vezes o valor de um mês de aviso prévio, limitado a R$ 7.000, em favor de cada empregado, entre outras obrigações.

Para justificar sua conduta, alegou a empresa que a crise econômica dos anos 2008 e 2009 implicou redução das demandas em 30%, tornando excessivo o seu corpo funcional, tese ao final rechaçada, inclusive no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (TST), o que ensejou a interposição de recurso extraordinário ao STF, viabilizando a edição da tese posta no Tema 638 ora examinado.

Ainda que o enfrentamento dessa questão mereça aplausos, diante de sua alta significação econômica, social e política, o resultado produzido parece longe de equacionar de vez a disputa, conferindo-se a necessária segurança jurídica a empresários, trabalhadores e entidades sindicais.

Os debates remanescentes se iniciam a partir do próprio conceito do que seja dispensa coletiva, tema tratado de diferentes formas no direito comparado, regra geral a partir do quantitativo de empregados dispensados, independentemente do porte da empresa ou de seu contingente funcional, e de lapsos temporais determinados. Nos vários países que já regularam a questão, observou-se a plena aplicabilidade da Convenção 158 da OIT, entre outros dados e características de ordem econômica e cultural, a exemplo da forte tradição negocial coletiva e da reduzida rotatividade da mão de obra.

É inegável que bons e consistentes argumentos de índole constitucional podem ser apresentados para justificar o dever de negociação em tais situações, a começar pela própria função social da propriedade e da empresa e dos próprios impactos coletivos — suficientes para justificar a ação sindical (CF, artigo 8º) — e de interesse público advindos do exercício do direito da livre iniciativa (artigo 170 da CF). Sem dúvida, ao se lançar no ambiente da exploração econômica, valendo-se do direito fundamental à livre iniciativa (artigo 1º., IV, 5º., XIII, e 170, todos da CF), o empresário assume deveres de múltiplas naturezas, envolvendo consumidores, fornecedores, trabalhadores e o próprio Estado, em diferentes níveis federativos e esferas de atuação.

Mas o ponto central da disputa submetida ao STF, no entanto, parece anteceder a própria existência de argumentos favoráveis ou contrários ao procedimento negocial prévio.

A ordem jurídica, como se sabe, estruturada a partir do postulado da legalidade (CF, artigo 5º., II), não estabelecia, objetivamente, qualquer regra que condicionasse a validade dos atos jurídicos de rescisão de contratos de trabalho ao referido procedimento negocial.

A primeira das questões que demandavam resposta, então, poderia ser assim traduzida: seria o foro judicial o locus adequado para a definição da referida conduta ou caberia ao Poder Legislativo equacionar a matéria?

Não se nega, por óbvio, a função eventualmente criativa da jurisprudência na adequada compreensão da ordem jurídica, a partir da multiplicidade e complexidade dos fatos da vida e que não logram obter regulação exaustiva do Poder Legislativo. Além disso, a própria ordem jurídica se estrutura em sistemas ou microssistemas normativos, com princípios gerais e múltiplas regras, cuja compreensão adequada se processa de forma integrada ou sistêmica, com coerência e harmonia, sobretudo nos casos em que o labor legislativo não se realiza com a necessária segurança, clareza e objetividade, não raras vezes com o uso de expressões ambíguas, tornando necessária a ação integrativa e profilática dos órgãos judiciários.

Também não se nega o dever judicial de resolver todos os conflitos submetidos ao Poder Judiciário, em situações nas quais a ordem jurídica se revela omissa, obscura ou lacunosa, casos em que os magistrados lançam mão da analogia, da equidade e dos princípios gerais do direito, como natural decorrência da garantia do acesso efetivo à justiça e do postulado da indeclinabilidade da jurisdição. Há ainda casos em que a própria complexidade da vida e das relações sociais impõe ao legislador a remissão a conceitos jurídicos indeterminados e a cláusulas gerais, que figuram como autênticas "válvulas de escape" previstas para permitir a gestão do tráfego jurídico-social e a incidência de valores albergados pelo direito, a exemplo da boa-fé objetiva, com a resolução dos conflitos gerados pela dinâmica realidade social.

Na atuação jurisdicional, no entanto, quando consideradas normas de significação aberta, descritivas de "estados ideais" e que são qualificadas como princípios jurídicos, diferentes níveis ou graus de reflexão podem ser exercitados. Já referidos como autênticas "varas de condão" nas mãos de juízes voluntariosos destinados a transformar o mundo, como se fossem autênticos "Robins Hoods", os princípios jurídicos, no contexto do pós-positivismo ou neo-constitucionalismo, têm sido adotados como “janelas de correção” do projeto normativo produzido pelo Poder Legislativo. Diferentemente do que ocorre com as normas-regras, que permitem a exata identificação do comportamento esperado pelo legislador, os princípios atuam em perspectiva idílica, orientando legisladores, intérpretes e aplicadores do direito, embora com uma nota distintiva fundamental: aos primeiros, legitimados pelo voto popular e respaldados pela logica majoritária, resguarda-se ampla margem de conformação dos conteúdos dos princípios, por meio de outras normas jurídicas (regras e subprincípios); aos últimos, em menor amplitude, resta o papel de "traduzir", jamais trair, a vontade dos representantes da soberania popular.

Mas o relevante, nesse processo intelectivo desenvolvido pelos agentes políticos judiciais, é evitar os riscos de superação das fronteiras constitucionais que definem os espaços de conformação de condutas pelos Poderes do Estado. Por óbvio, o campo judicial da resolução de conflitos concretos não se confunde com o espaço democrático de fixação de novas regras gerais e abstratas de comportamento, o que atentaria contra o postulado da separação dos poderes, representando inescusável violação dos artigos 2º e 22, I, da CF.

Admitir que a atividade judicial não encontra limites ou "flexibilizar" esses limites ao extremo, com base em sofisticadas linhas de argumentação teórica, representa inadmissível subversão do ideal democrático, em desprestígio da própria noção de soberania, que se manifesta periodicamente pela via das eleições periódicas.

No caso das dispensas imotivadas, a ordem jurídica sempre as reconheceu como direito potestativo empresarial, direito, portanto, de natureza "receptícia", que não exigia qualquer motivação. Ainda que esse quadro deva ser objeto de regulação legal distinta, como proclamado pelo constituinte originário em norma de eficácia limitada (artigo 7º., I), é fato que não há, regra geral, veto à dissolução unilateral e imotivada de contratos de emprego.

Em variadas situações, cabe a ressalva, atos empresariais de dispensa de trabalhadores podem ser submetidos à sindicância judicial, quando praticados com inescusável abuso, tal como ocorre nos casos das dispensas discriminatórias, expressamente repudiadas pela ordem jurídica (Lei 9.029/95).

Mas é fato que, no caso das dispensas massivas, não havia qualquer regra legal clara e objetiva que as inibisse ou que estabelecesse critérios condicionantes. Dispensas massivas, portanto, representavam direito potestativo empresarial, exercitado segundo juízos de conveniência e oportunidade, justificados por interesses estratégicos momentâneos ou permanentes de reposicionamento no mercado ou de encerramento das atividades. E a anomia normativa, nesse campo, apenas poderia ser suprida pela ação normativa do Estado ou dos próprios atores sociais, no exercício da competência legiferante ou da autonomia negocial coletiva.

A relevância da negociação coletiva no contexto das relações de emprego é inquestionável e foi proclamada com letras fortes com o advento da Carta Política de 1988, sendo também alvo de importante ressignificação no ano de 2015, quando do julgamento pelo STF do rumoroso RE 590.415. Essencial à melhoria da condição social dos trabalhadores (artigo 7º., "caput", da CF), está prevista de modo expresso como direito fundamental em nossa Carta Política de 1988 (artigo 7º, XXVI), viabilizando o melhor diálogo social entre trabalhadores e empregadores, inclusive com o compartilhamento de riscos e resultados positivos (CF, artigo 8º, III).

A reforma trabalhista de 2017, com seus avanços e retrocessos, lançou a negociação coletiva ao palco central da regulação das relações entre o capital e o trabalho (artigos 611-A e 611-B da CLT), em linha de harmonia com as diretrizes da Organização Internacional do Trabalho — OIT (Convenções 98 e 154). E, no que diz com as dispensas massivas, expressamente as equiparou às rescisões individuais, explicitando a prescindibilidade da prévia celebração de acordo ou convenção coletiva ou ainda de autorização sindical para a respectiva implementação (CLT, artigo 477-A).

Portanto, em face do grandioso esforço hermenêutico ou ônus argumentativo exercitado para justificar o veto às dispensas massivas sem prévia negociação sindical, parece certa a conclusão de que a disciplina da matéria apenas poderia ser produzida pela arena parlamentar, e não pelos órgãos judiciários.

A segunda questão relevante que se pode oferecer à reflexão, a partir da fixação do Tema 638, diz com os efeitos que decorrem da quebra do dever de negociação, que foi tratado, como acima anotado, como "exigência imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores" e que "não se confunde com autorização prévia por parte da entidade sindical ou celebração de convenção ou acordo coletivo".

O STF, na realidade, introduziu uma distinção substantiva para fins procedimentais em relação à questão, afastando a "negociação coletiva", mas consagrando a adoção do dever de "diálogo social".

A negociação coletiva, como se sabe, constitui importante fonte de criação de normas e condições de trabalho, assumindo feição contratual, dotada, essencialmente, de duas espécies de cláusulas: as normativas e as obrigacionais. Enquanto as primeiras fazem surgir novas normas e condições de trabalho, que serão observadas na execução de outros negócios jurídicos (os contratos de trabalho firmados no âmbito de representatividade dos atores coletivos pactuantes), as últimas disciplinam a relação direta entre os sujeitos celebrantes, criando direitos e deveres que integram seus respectivos patrimônios jurídicos.

No caso das dispensas massivas, a eventual celebração de normas coletivas apenas pode objetivar a melhor ordenação ou a redução dos efeitos que resultam da perda de vários postos de trabalho, podendo estabelecer, por exemplo, critérios prioritários para as dispensas (tempo de serviço, idade etc), critérios para a readmissão futura ou ainda estabelecendo indenizações ampliadas (por óbvio, quando as empresas envolvidas possuam capacidade econômica para tanto).

O dever de "diálogo social" como condição prévia para as dispensas massivas, portanto, de inequívoca natureza instrumental, não implica obrigação de resultado, não devendo necessariamente conduzir, segundo a própria dicção do STF, à celebração de qualquer negócio jurídico. Representa, ao revés, autêntico "dever jurídico, econômico e social", que se extrai da boa-fé objetiva — padrão de comportamento esperado dos atores sociais — e da responsabilidade social das empresas no plano das relações de emprego.

Cumpre, então, renovar a indagação: quais consequências decorrem da quebra desse autêntico "poder-dever", que impacta negativamente a expectativa dos trabalhadores que integram a categoria afetada de melhoria de sua condição social no instante das dispensas em massa (artigo 7º., caput, da CF)?

Ora, se se afirma a presença de um dever coletivo de negociação, em razão do comportamento lícito — embora socialmente indesejável, diga-se — de rescisão múltipla de contratos de emprego, parece óbvia a constatação de que a quebra desse dever apenas pode produzir reflexos reparatórios também de feição coletiva, que não se confundem com a anulação das dispensas e retomadas dos contratos, tal como se decidiu no julgamento do caso Embraer.

Sinale-se que os direitos coletivos, sistematizados com o advento da Lei 8.078/90, ostentam natureza difusa, coletiva em sentido estrito e individual homogênea, esses últimos tratados apenas "acidentalmente" como coletivos (artigo 81).

Da negociação coletiva, renove-se a referência, podem advir normas-preceito ou cláusulas contratuais de aplicação genérica ao conjunto profissional alcançado, cujo descumprimento há de ser reparado por meio de ações judiciais de índole cognitiva, voltadas à formação de títulos executivos, sendo inadequada a propositura de ação executiva direta.

O direito à negociação coletiva, como se sabe, é típico direito coletivo, porque, além de transindividual, é indivisível, ou seja, não pode ser fracionado, antes pertencendo a uma pluralidade de pessoas que integram “grupo, classe ou categoria” e que estão conectados pelos contratos de trabalho ao empregador.

Portanto, a quebra do direito coletivo à negociação ou ao "diálogo social" — negociação que não deve necessariamente desaguar na criação de obrigações jurídicas novas, segundo a dicção do STF e da lei (artigo 477-A da CLT) — traduz lesão a direito coletivo, podendo ensejar reparação de ordem moral coletiva, entre outras eventuais obrigações de fazer e não fazer, mas sempre vinculadas ao plano das relações coletivas e sem reflexos diretos, imediatos e concretos sobre os contratos de emprego rescindidos.

Essa foi a conclusão a que chegou a Subseção 2 Especializada em Dissídios Individuais do TST, por ocasião de recente julgamento, lavrado nos autos do RO-11778-65.2017.5.03.0000.

A matéria, reclama ainda uma análise mais abrangente pelo STF, tanto para a definição do que sejam dispensas massivas — o que inclusive poderia demandar a ação do Poder Legislativo —, quanto em relação aos efeitos jurídicos que decorrem da quebra do dever negocial prévio, nos moldes do Tema 638 da Tabela de Repercussão Geral.

Enquanto não supridas essas lacunas, não se realizará o tão prestigiado ideal da segurança jurídica.

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