Opinião

Mudanças relevantes na Lei do Planejamento Familiar, especialmente para mulheres

Autor

  • Ana Rita da Costa Pinto

    é advogada com atuação em Saúde e Direito Médico analista da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) empresa pública federal vinculada ao Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) com atuação em políticas públicas sociais e de abastecimento e especialista em Tecnologia de Alimentos pela Universidade de Brasília (UnB).

29 de setembro de 2022, 6h37

As expressões "paternidade responsável" e "planejamento familiar" são relativamente recentes em nosso ordenamento jurídico, tendo sido previstas, pela primeira vez, na Constituição Federal de 1988, consoante se verifica da leitura do §7º do artigo 226 [1].

Na Constituição de 1967 [2], o título que tratava sobre família restringia a atuação do Estado à proteção do casamento ("indissolúvel") e previa a assistência à maternidade, à infância e à adolescência, determinando sua regulamentação mediante lei.

Já as constituições de 1937 [3] e 1946 [4] preconizavam, além da indissolubilidade do casamento, o amparo a famílias de prole numerosa, atribuindo-se a essas últimas  no caso da Constituição polaca , "compensações na proporção dos seus encargos".

A Carta de 1934 impunha a apresentação, pelos nubentes, de prova de sanidade física e mental [5] (já pensaram nessa exigência nos dias de hoje?) antes do casório. E as constituições de 1891 e 1824 sequer dedicavam sessões de seu conteúdo ao tema "família", exceto pela discreta menção, no caso da Lei Maior de 1891, ao casamento civil [6].

Considerando a breve contextualização acima  e, claro, sem negar os inúmeros outros aspectos inovadores atribuíveis à CF/1988 , não é difícil perceber o quanto a Carta Cidadã vigente demonstrou-se tão progressista.

No que concerne às temáticas do planejamento familiar e da paternidade responsável (entenda-se "paternidade" no sentido lato, incluindo também as mães), a CF/1988 trouxe outras novidades de grande relevância para a sociedade brasileira, como a ampliação da licença-maternidade de três para quatro meses, e a garantia de licença-paternidade [7], algo jamais cogitado até então.

Foi para regular o §7º do artigo 226 que surgiu, em 1996, a Lei nº 9.263, conhecida como "Lei do Planejamento Familiar". O regramento prevê a disponibilização de ações preventivas e educativas, e a garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade. Aplica-se, portanto, a homens e mulheres, com ou sem parcerias estáveis, sempre dentro de um contexto de atendimento global e integral à saúde.

Apesar de ter sido considerada um avanço à época, em especial para o público feminino, o fato é que a Lei nº 9.263/1996 sempre foi alvo de muitas críticas, justamente por impor exigências que dificultavam o acesso ao procedimento de esterilização cirúrgica, a exemplo da vedação de sua realização durante o parto e da exigência do consentimento prévio do parceiro.

É nesse cenário que surge a Lei nº 14.443/2022, publicada no último dia 2 de setembro, que implicou em quatro relevantes mudanças na Lei de Planejamento Familiar, a valerem a partir de 1º de março de 2023:

A primeira relaciona-se à fixação de prazo para oferecimento, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), de métodos e técnicas contraceptivos, que passou a ser de, no máximo, 30 dias, a partir da indicação. A inexistência de uma previsão temporal, como era antes da alteração, poderia significar, muitas vezes, longo tempo de espera até a efetiva disponibilização da técnica ou método escolhidos para evitar uma gravidez não planejada.

A segunda mudança corresponde à idade para a esterilização voluntária (vasectomia, para homens; e laqueadura de trompas, para mulheres). Até então, exigia-se idade mínima de 25 anos, ou que se tivesse, pelo menos, dois filhos vivos. Agora, a idade foi reduzida a 21 anos para homens e mulheres, mantendo-se a previsão quanto ao número de filhos.

Isso significa que, se a pessoa não tem filhos, mas é maior de 21 anos e possui plena capacidade de praticar atos da vida civil, já pode optar pelo procedimento. O mesmo entendimento é aplicável para quem ainda não tenha completado 21 anos de idade, mas já possua dois ou mais filhos.

A nova lei manteve o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação de vontade e o ato cirúrgico. A ideia é permitir aos profissionais de saúde tempo hábil para esclarecer sobre os riscos e, principalmente, as consequências da cirurgia  que é de difícil reversão , e orientar sobre a existência de outros métodos contraceptivos disponíveis, sempre respeitando a vontade do (a) interessado (a).

A terceira alteração, voltada exclusivamente para as mulheres, corresponde à possibilidade de realização da laqueadura já durante o parto (normal ou cesariana), desde que a solicitante manifeste seu interesse ao menos 60 dias antes, e que haja condições médicas adequadas para o procedimento.

Até então, essa alternativa era viável somente em situações excepcionais (como nos casos de cesarianas sucessivas), o que obrigava a mulher a realizar a laqueadura em ocasião posterior.

Ou seja, a mulher, mesmo estando em condições médicas para realizar o procedimento à mesma ocasião do parto, se via obrigada a se submeter a uma nova internação, expondo-se, consequentemente, a riscos de complicações cirúrgicas e a infecções hospitalares. E isso quando ela conseguia acessar o serviço de referência novamente, pois aspectos como distância até o hospital, falta de recursos para deslocamento, dificuldade de agendamento, e ausência de rede de apoio, em especial para aquelas com baixa renda e com outros filhos, são barreiras que desestimulam ou mesmo inviabilizam o retorno ao estabelecimento de saúde.

Por sua vez, o prazo de 60 dias evita que se tome a decisão pela laqueadura durante a intensa descarga hormonal inerente ao parto, dificultando uma tomada de decisão madura; e permite que a solicitante seja esclarecida previamente a respeito dos riscos e das consequências da cirurgia.

A quarta novidade  e certamente uma das mais comemoradas entre as mulheres  diz respeito à revogação do dispositivo que exigia o consentimento expresso do (a) parceiro (a) para a realização do procedimento de esterilização voluntária. 

Por mais que se tratasse de uma previsão extensível aos homens, na prática, sempre foram as mulheres as mais impactadas com tal exigência, considerando os processos sociais e históricos de patriarcado, com os desejos do homem prevalecendo no contexto conjugal; e tendo em vista a percepção equivocada de que a adoção de métodos contraceptivos é responsabilidade exclusiva da mulher.

Pode-se dizer que a nova lei trouxe mudanças reais à vida das mulheres? Certamente. Toda mulher possui pleno direito de decidir se quer ou não ter filhos, ou se quer ter mais de um filho, no número e no momento que considerar mais apropriados. Para quaisquer das alternativas escolhidas, é dever do Estado propiciar os recursos necessários, sejam educacionais, sejam técnicos, sejam científicos, para garantir que esse direito seja concretizado.

Nesse sentido, as alterações relativas à idade mínima para a laqueadura, à possibilidade de realizar o procedimento durante o parto, e à revogação da exigência de consentimento do parceiro são motivos para comemorar. Também o prazo para oferta de técnicas ou métodos contraceptivos é um fator positivo, impondo à rede de atendimento uma obrigação que antes não existia. Com isso, permite-se, inclusive, que se recorra ao Poder Judiciário em caso de inobservância do prazo, por tratar-se de um direito fundamental.

Em suma, estamos falando de progressos relacionados à autonomia de vontade da mulher no tocante à sua vida reprodutiva, e também de avanços quanto à maior facilidade de acesso a métodos e procedimentos contraceptivos de grande relevância para a qualidade de vida e para o próprio planejamento familiar.

Há muito a se evoluir sobre o tema, o que reforça, sobretudo, a importância dos movimentos sociais na defesa dos direitos já conquistados e na viabilização de debates e aprofundamentos que contribuam para alterações legislativas como as aqui elencadas, oriundas de um projeto de lei que há 8 anos tramitava no Congresso Nacional.

É certo, contudo, que caberá à sociedade cobrar do poder público o efetivo cumprimento das novas medidas, e denunciar eventuais irregularidades e/ou omissões. Para isso, é fundamental que se siga garantindo a toda a coletividade a disseminação de informações atualizadas sobre as políticas públicas voltadas à saúde, e a construção de uma cidadania cada vez mais atenta e participativa no processo de gestão pública.


[1] Artigo 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(…)
§7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

[2] Artigo 167  A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos.

§1º  O casamento é indissolúvel.

§2º  O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no Registro Público.

§3º  O casamento religioso celebrado sem as formalidades deste artigo terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Público mediante prévia habilitação perante, a autoridade competente.

§4º  A lei instituirá a assistência à maternidade, à infância e à adolescência.

[3] Artigo 124  A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos.

[4] Artigo 164  É obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo de famílias de prole numerosa.

[5] Artigo 145  A lei regulará a apresentação pelos nubentes de prova de sanidade física e mental, tendo em atenção as condições regionais do País.

[6] Artigo72  A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)

(…)

§4º A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.

[7] Artigo 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(…)
XVIII – licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias;
XIX – licença-paternidade, nos termos fixados em lei;

Autores

  • Brave

    é advogada com atuação em Saúde e Direito Médico, analista da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), empresa pública federal vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) com atuação em políticas públicas sociais e de abastecimento e especialista em Tecnologia de Alimentos pela Universidade de Brasília (UnB).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!