Opinião

Juizado Especial Cível e o desequilíbrio na aplicação dos enunciados do Fonaje

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28 de setembro de 2022, 14h02

Por natureza, as ações propostas sob o procedimento do Juizado Especial Cível, regido pela Lei 9.099/95, norteiam-se pelos "critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação", conforme disposição do artigo 2ª, daquela lei.

A conhecida "Lei do JEC" classifica-se como lei especial em nosso ordenamento jurídico e, assim, eventuais lacunas em seu texto serão sanadas com a aplicação subsidiária da lei ordinária, neste caso, Lei nº 13.105/2015, o Novo Código de Processo Civil.

A pequena pincelada na ordem de grandeza da legislação aplicável aos processos judiciais de natureza cível, nos remete a organização de nosso processo legislativo. Em suma, falo aqui da "hierarquia das normas", da organização de nossa legislação.

Nosso ponto de partida é, e sempre será, a Constituição, lei máxima responsável pela definição das diretrizes, princípios e fundamentos normativos de observação obrigatória por todas as demais leis.

Definida a regra máxima seguimos com a redação das leis complementares e, por sua vez, das leis ordinárias — aqui encontra-se o Código Processo Civil, das leis delegadas, das medidas provisórias, dos decretos legislativos, das resoluções e portarias e todas as demais normas infralegais.

E qual a razão de revisitar a hierarquia das normas se o tema deste artigo é a equivocada prevalência dos enunciados do Fonaje sobre à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e do Código de Processo Civil?

Explico: Fonaje, sigla de Fórum Permanente de Coordenadores de Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Brasil, em sua página oficial, no tópico "Institucional" diz que: "O Fonaje foi instalado no ano de 1997, sob a denominação de Fórum Permanente de Coordenadores de Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Brasil, e sua idealização surgiu da necessidade de se aprimorar a prestação dos serviços judiciários nos Juizados Especiais, com base na troca de informações e, sempre que possível, na padronização dos procedimentos adotados em todo o território nacional".

Seguindo na análise do conteúdo disponibilizado no site daquela instituição, vale reproduzir a descrição dos "Objetivos" do Fonaje — (1) Congregar Magistrados do Sistema de Juizados Especiais e suas Turmas Recursais; (2) Uniformizar procedimentos, expedir enunciados, acompanhar, analisar e estudar os projetos legislativos e promover o Sistema de Juizados Especiais; (3) Colaborar com os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo da União, dos estados e do Distrito Federal, bem como com os órgãos públicos e entidades privadas, para o aprimoramento da prestação jurisdicional.

Não se fala em competência, e sim em objetivos, ou seja, afastada está a função de "legislar" da instituição e, por óbvio nem poderia contemplar, sob pena de infringir a ordem de hierarquia das normas.

Considerações devidamente registradas, podemos avançar ao ponto central do estudo, qual seja, calibrarmos o "poder" atribuído aos enunciados, posto refletirem apenas e tão somente, orientação escrita, organizada por operadores do direito que não gozam de competência ou atribuição legal para legislar, quiçá em afronta a texto de lei. Nada além.

Na prática, os Juizados Especiais Cíveis do estado de São Paulo, após a publicação do Comunicado CG 1.530/2022, pela Corregedoria Geral da Justiça, cujo texto atualiza os valores de custas judiciais, acabou por incluir as custas postais no cálculo do preparo para interposição de recurso inominado, originando inúmeras decisões de deserção recursal.

Nas decisões de não recebimento do recurso ante o recolhimento de preparo tido como "insuficiente", os magistrados têm se valido do texto do Enunciado de nº 80 do Fonaje que diz "O recurso Inominado será julgado deserto quando não houver o recolhimento integral do preparo e sua respectiva comprovação pela parte, no prazo de 48 horas, não admitida a complementação intempestiva" (artigo 42, § 1º, da Lei 9.099/1995) (nova redação – XII Encontro Maceió-AL).

Ocorre, todavia que, o citado parágrafo 1º do artigo 42 da Lei dos Juizados Especiais limita-se a dispor que:

"Art. 42. O recurso será interposto no prazo de dez dias, contados da ciência da sentença, por petição escrita, da qual constarão as razões e o pedido do recorrente.

§ 1º. O preparo será feito, independentemente de intimação, nas quarenta e oito horas seguintes à interposição, sob pena de deserção."

A interpretação extensiva constante do Enunciado 80 não encontra fundamento legal, além de negar vigência aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa e, em especial, do duplo grau de jurisdição, todos previstos no artigo 5º da CF/88.

A hierarquia das normas resta totalmente ignorada na decisão que privilegia a aplicação de Enunciado emitido pelo Fonaje, cumulado com o regramento definido por comunicado da Corregedoria de Justiça, no âmbito da administração do judiciário estadual, em detrimento do texto legal.

Abaixo trago para análise trecho da decisão proferida pelo juízo da 1ª Vara do Juizado Especial Cível — Vergueiro, estado de São Paulo, autos de processo nº 1000599-39.2021.8.26.0016, ao julgar deserto o recurso inominado do requerido.

"Nos termos do artigo 42, parágrafo 1°, da Lei n° 9.099/95, a parte recorrente deverá recolher o preparo, independentemente de intimação, no prazo de 48 horas seguintes à interposição. O Preparo recursal consiste no pagamento das despesas relacionadas com o processamento do recurso. No caso dos autos, observo que a recorrente não recolheu o preparo recursal em sua integralidade, conforme certidão a fls. 145. Dessa forma, julgo deserto o recurso interposto, em conformidade com o enunciado 80 do Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje): 'O recurso Inominado será julgado deserto quando não houver o recolhimento integral do preparo e sua respectiva comprovação pela parte, no prazo de 48 horas, não admitida a complementação intempestiva (art. 42, § 1º, da Lei 9.099/1995)'. Anote-se o trânsito em julgado."

Alijada do regramento de nosso ordenamento jurídico a decisão colacionada acima e, replicada em inúmeros outros casos, afronta indistintamente a legislação processual ao menosprezar o texto da lei ordinária e, da lei especial ao tempo em que atribui peso inexistente a uma mera orientação publicada por fórum incompetente para legislar — Fonaje.

Ao decidir por não receber o recurso inominado sob a justificativa de não ser admitida a concessão de prazo para complementação do recolhimento do preparo, nega-se vigência à regra de que a norma especial quando omissa, submete-se à aplicação subsidiária da norma geral, e não de orientações publicadas com a finalidade de "uniformizar procedimento".

As decisões judiciais que, perante a omissão da lei especial — 9.099/95 — deixam de aplicar a lei geral — e privilegiam o enunciado do Fonaje causam imenso desequilíbrio e insegurança jurídica.

Alguns julgados do mesmo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acertadamente reverteram algumas deserções para sim, conferir prazo para complementação do preparo de recurso inominado. Vejamos:

"DESERÇÃO –COMPLEMENTAÇÃO — ADMISSIBILIDADE — BOA-FÉ. Admissível a complementação, na intenção de privilegiar o direito de recorrer. Boa-fé processual que deve ser observada também dos procedimentos do Juizado Especial Cível. Recurso provido." (TJ-SP; Agravo de Instrumento 0100184-91.2018.8.26.9003; relator (a): Rodrigo de Castro Carvalho; órgão julgador: 3ª Turma Recursal Cível; Foro de Santos — 3ª. Vara Cível; data do julgamento: 8/11/2018; data de registro: 9/11/2018).

"MANDADO DE SEGURANÇA. Decisão judicial que julga deserto recurso inominado. Preparo não correspondente ao valor próprio. Aplicabilidade subsidiária da regra do art. 1.007, § 2º do Código de Processo Civil. Circunstância que desconsidera norma expressa Direito líquido e certo violado. Segurança concedida." (TJ-SP; MS nº 0100050-98.2017.8.26.9003, 1ª Turma, do 4º Colégio Recursal da Capital — Lapa, rel. Sulaiman Miguel Neto, j. 12/6/17 — vu).

Ouso dizer ser inegável a ilegalidade das decisões que aplicam a penalidade de deserção e, impedem o julgamento de recursos inominados, isentando o Judiciário do dever jurisdicional que lhe foi atribuído pelo Estado de "promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo" (Cintra, Grinover e Dinamarco).

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