Opinião

Veto parcial à MP do Voo Simples e a gratuidade do despacho de bagagens

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28 de setembro de 2022, 19h12

A recém-sancionada Lei 14.368, de 14 de junho de 2022, fruto da Medida Provisória 1.089/2021 (MP do Voo Simples) aprovada em maio pelo Senado, flexibilizou relevantes regras do transporte aéreo e trouxe à tona um debate de grande interesse ao consumidor: a volta do despacho gratuito de bagagem, que integrava o texto original aprovado pelas casas legislativas e que, ao final, acabou sendo vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. A Lei, publicada no Diário Oficial em 15 de junho de 2022, tem o objetivo de desburocratizar o setor aéreo e atrair novos investidores para o mercado brasileiro, incentivando a concorrência entre as operadoras de voos no país e, consequentemente, beneficiando o consumidor, que hoje sofre com os preços nada atrativos das passagens aéreas.

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Nesse sentido, o despacho gratuito da bagagem foi acrescentado pela Câmara (quando a Lei ainda era MP) como mais um benefício ao consumidor, que, desde 2017, quando as operadoras foram autorizadas a cobrar pela bagagem extra sob o argumento de que isso diminuiria o valor das passagens, vê o aumento significativo do preço dos serviços, ao contrário daquilo que alegavam as empresas na época. Esse dispositivo da MP serviria, portanto, como mais um incentivo para o consumo no setor aéreo nacional, ajudando a popularizar o serviço.

A discussão se inicia com os argumentos das empresas aéreas, no sentido de que os custos dessa bagagem gratuita seriam, na verdade, contrários ao interesse do consumidor, já que isso reduziria a competição entre as empresas atuantes no setor e alavancaria os custos das companhias, o que seria refletido no preço dos bilhetes. É que, se por um lado existe a compreensível insatisfação do consumidor em pagar caro por um serviço que lhe oferece cada vez menos benefícios, por outro existe a ilusão de que a gratuidade do despacho de bagagem é o remédio apropriado para esse problema; já que isso significa, na prática, que todos os passageiros deverão agora arcar com o custo de um privilégio que só será utilizado por uma parte deles; é dizer: o custo desse despacho, que não necessariamente será aproveitado por toda a tripulação, será repartido entre todos os bilhetes vendidos.

Por amor ao debate, pode-se objetar que o despacho gratuito de bagagem no transporte aéreo é uma antiga prática contratual no Brasil, e que não se pode olvidar que o costume também é fonte do direito. Outro ponto a ser considerado é o caráter unitário do contrato de transporte de pessoas: é de se considerar que o transporte dos objetos pessoais do passageiro estão compreendidos no valor da passagem, salvo cláusula em sentido diverso ou a constatação de que o peso da bagagem excede o peso ou tamanho máximos (franquia).

Quanto ao argumento sobre o caráter costumeiro da gratuidade do despacho de bagagem, é de se considerar que o costume é fonte supletiva ou subsidiária em nosso sistema, que é aplicável ante omissão legislativa (Lindb, artigo 4º). Assim, a aplicação do costume cede ante a lei. Ademais, o fato do valor da bagagem poder ser cobrado a parte e sob tarifa variável não desnatura o contrato de transporte de pessoas, conforme já disse Pontes de Miranda: "Mesmo se há pagamento à parte, no navio de transporte de passageiros, o contrato é um só, e só o preço é que é em duas partes (fixa e variável)" [1].

O ponto sensível dessa discussão tem relação direta com o que traz nosso Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 4°, inciso III, quando prevê a harmonização de interesses dos participantes da relação de consumo como um princípio fundamental. O dispositivo trata da necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico e do equilíbrio da relação entre consumidor e fornecedor, que certamente são fatores a serem levados em conta quando se fala em flexibilização das regras do setor aéreo. E ainda que o próprio artigo 4º considere o consumidor parte mais vulnerável desse elo, uma interpretação teleológica do Código não nos leva a outro caminho senão o da razoabilidade.

O fato é que não se pode conceder privilégios ao consumidor de forma desmedida, tornando a relação de consumo demasiadamente custosa ao fornecedor e reduzindo a atratividade do mercado brasileiro para a atividade empresarial no setor. Trata-se de reflexão que pode e deve ser feita a partir da noção de paternalismo jurídico (Rechtpaternalismus), enquanto expressão do patriarcalismo e suas estruturas hierárquicas [2]. O paternalismo jurídico guarda relação com uma atitude de determinados grupos sociais no sentido de pressionar o Estado para que proteja determinados indivíduos de suas próprias decisões, impedindo-os de tomar certas decisões sobre seus próprios interesses, ao argumento de que sabem mais sobre o que é melhor para o indivíduo do que eles mesmos [3].

Assim, o paternalismo jurídico manifesta-se na interferência do Estado ou de um indivíduo na esfera jurídica de determinadas pessoas, contra a vontade ou independentemente da vontade delas, ao fundamento de que a pessoa que suporta a interferência restará em situação mais favorável ou será protegida de possível dano [4]. Mais do que isso, é notável o impacto que tal medida exerceria na entrada de novos players no mercado brasileiro, que ainda é tão restrito. É o caso das companhias de baixo custo (ou "companhias low cost"), que operam com passagens a preços reduzidos e serviços mais restritos.

A partir do momento em que a oferta de serviços mais robustos, como o despacho de bagagens incluso na tarifa aérea, torna-se obrigatória, o mercado exclui companhias que operam com estruturas diferentes, já que esse transporte exigiria das empresas um maquinário mais aparelhado e aeronaves de maior porte, capazes de comportar todas as bagagens. Significa, na prática, que a imposição do que poderia parecer um benefício para quem compra um bilhete aéreo mais caro estaria, na realidade, impedindo a oferta de bilhetes mais em conta, que decerto seriam um atrativo para aqueles que não fazem questão do benefício.

Dentro disso, não se deixe de levar em conta, inclusive, a liberdade de escolha do próprio consumidor em adquirir um serviço mais barato e com menos benefícios, assim como ocorre em grande parte do mercado internacional do setor. Daí a associação com o paternalismo jurídico. Ademais, ainda que se possa argumentar que a defesa do consumidor consiste em garantia constitucional ou espécie de direito fundamental, não se pode olvidar também que a filtragem dos direitos fundamentais pelo direito privado deve visar a preservação das esferas decisórias das partes, ante o modo "muita vez errático, irracional e entrópico da atividade negocial" [5].

Aliás, falando-se em liberdade, não olvidemos, tampouco, daquelas de oferta e de tarifa, relacionadas agora aos fornecedores, que são fundamentos de grande parte dos tratados internacionais de transporte aéreo que o Brasil é signatário. Foram precisamente estes os argumentos trazidos nas razões do veto presidencial ao dispositivo da MP sancionada, que busca, de fato, desburocratizar o setor aéreo para atrair novas companhias para o mercado nacional. Os apontamentos aqui feitos são apenas uma parte da discussão sobre a Lei 14.368, que, indiscutivelmente, ainda deverá trazer repercussões no âmbito legal e no cotidiano dos consumidores brasileiros.


[1] In: Tratado de Direito Privado – Tomo XLV. São Paulo: RT, 2012, p. 231.

[2] KREß, Hartmut. Paternalismus. In: HILGENDORF, Eric; JOERDEN, Jan C (eds). Handbuch Rechtsphilosophie. Stuttgart: J. B. Metzler, 2021, p. 463.

[3] ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional (sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo). 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 170.

[4] NEUNER, Jörg. Paternalismus im Privatrecht. Juristen Zeitung (JZ), 75 (2020), p. 269.

[5] RODRIGUES JR, Otávio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019, §65, C. E-book.

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