As eleições italianas do ultimo domingo foram objeto de debate no mundo todo, mas, para os que pretendem bem se inteirar dos fatos, é preciso compreender a real importância do pleito, a partir do conhecimento das peculiaridades do sistema de governo do país.
O constituinte italiano optou pelo sistema de governo parlamentarista, que se notabiliza pela distinção entre chefe de Estado e chefe de governo, e pela relação umbilical deste com o Parlamento. O representante do Estado possui função autônoma e distinta dos demais poderes do país, exercitada na qualidade de órgão supra partes [1]; enquanto o chefe de governo exerce a chefia do Poder Executivo.
No modelo italiano, o chefe de Estado é o presidente da República que, dentre outras funções, atua como garantidor da Constituição e representante da unidade nacional [2], ou seja, é agente imparcial que media os possíveis conflitos existentes entre os Poderes do Estado e atua a fim de impedir eventual ruptura institucional. Cabe ao presidente a escolha do chefe de governo — a ser confirmada a posteriori pelo Parlamento — e, como uma de suas principais prerrogativas constitucionais, a dissolução do Congresso ou uma de suas casas, caso entenda que não haja possibilidade de composição de maioria para formar um novo governo [3].
Já o Executivo é composto pelo chefe de governo — oficialmente chamado de presidente do Conselho de Ministros e, popularmente, de primeiro-ministro – e pelos ministros de Estado, que, juntos, integram o Conselho de Ministros. O primeiro-ministro é o responsável por recomendar ao presidente da República os nomes que devem ocupar as pastas ministeriais. Apesar de não ser hierarquicamente superior aos demais ministros, o presidente do Conselho é o responsável direção política geral do Executivo e é o encarregado de manter a unidade política e administrativa do governo.[4]
O rito de nomeação do primeiro-ministro é a característica mais peculiar ao sistema parlamentarista e ponto crucial para que se compreenda a importância das eleições legislativas do último fim de semana. O escolhido pelo presidente da República para representar o Executivo italiano, deve, depois de dez dias da formação do governo e da formulação do seu plano administrativo, apresentar-se ao Parlamento para obter o voto de confiança do Congresso.[5] A relação de confiança mantém o governo e o Legislativo intrinsecamente ligados e pressupõe a "manutenção de harmonia contínua", além de estabelecer uma forma de responsabilidade política do primeiro com relação ao segundo [6]. Garantido o voto de confiança do Parlamento ao governo e à sua diretriz administrativa, os integrantes do Executivo prestam juramento perante o presidente da República e são empossados.
No modelo político adotado, o Legislativo é o único Poder do Estado que tem seus integrantes escolhidos pelo voto direto e universal [7]. Composto pela Câmara e pelo Senado, que funcionam sob regime bicameral paritário, o Parlamento tem como algumas de suas atribuições: o exercício típico de legislar — comum aos órgãos legislativos dos mais variados sistemas de governo — e o poder-dever de controle do governo, com quem divide a titularidade do endereço político. Ensina Paolo Carnevale que o controle é a investigação da atuação governamental, enquanto a titularidade compartilhada do endereço político é a "orientação e direcionamento da ação do Governo" [8] exercida pelos legisladores. Cabe ainda ao Parlamento, em sessão unicameral das duas Casas legislativas, a que se somam os delgados eleitos pelo Conselho Regional, eleger o presidente da República [9] e estabelecer o voto de confiança ao primeiro-ministro.
Os italianos que optaram por votar no domingo — o voto não é obrigatório — escolheram os senadores e deputados que vão compor o Parlamento pela primeira vez afetado pela reforma constitucional de 2020, que reduziu de 915 para 600 o número total de parlamentares [10]. A atual lei eleitoral, batizada de rosatellum, prevê fórmula mista de escolha dos candidatos, em que 3/8 dos assentos no Senado e na Câmara são definidos por meio de votação uninominal (entenda-se majoritária), e os demais lugares [11] (245 na Câmara e 122 no Senado) são preenchidos com os eleitos pelo voto proporcional. A legislação italiana prevê ainda a eleição de oito deputados e quatro senadores italianos eleitos pelos cidadãos italianos que residam no exterior [12]. No Brasil, o ex-piloto Emerson Fittipaldi e o ex-embaixador Andrea Matarazzo tentaram se eleger para o Senado, mas acabaram derrotados para o candidato ítalo-argentino.
A eleição legislativa de 2022 garantiu maioria significativa dos assentos no Parlamento à coalizão de centro-direita composta pelos partidos: Fratelli d’Italia, La Lega, Forza Italia e Noi Moderati; em detrimento da coalizão de centro-esquerda, liderada pelo Partido Democrático. O partido Movimento 5 Strelle, que abandonou a base do governo e motivou a renúncia do ex-primeiro-ministro Mario Draghi, se saiu melhor do que o previsto pelas pesquisas eleitorais e garantiu 15% dos votos.
Com o êxito da coalizão de centro-direita, a Itália se encaminha para ter sua primeira chefe de governo mulher. Giorgia Meloni é a líder do partido que obteve maior quantidade de votos (26,4%) e por isso se destaca como a provável próxima primeira-ministra. Para viabilizar sua ambição, Meloni iniciou as negações com os partidos que devem compor sua base de apoio no Parlamento e a elaboração do plano de governo que apresentará aos parlamentares.
Conhecida no país pelo seu perfil nacionalista de direita, Meloni tem claro posicionamento ideológico e é engajada no fortalecimento italiano dentro da União Europeia. Dentre suas propostas, sobressai-se a adoção do presidencialismo, sob fundamento de assim garantir maior estabilidade governativa e gerar relação direta do cidadão com o governo. A provável próxima primeira-ministra alega que a mudança para o presidencialismo é a chave para a recuperação econômica do país, que seria viabilizada por um plano de governo estável e longevo [13].
A insatisfação com o modelo atual é compreensível, tendo em vista que passaram pela Itália 11 governos distintos nos últimos 20 anos, mas não deixa de ser curioso que, em um momento em que se discute a adoção do parlamentarismo no Brasil, o outro país enxergue o caminho contrário como sua salvação.
A estabilidade do chefe de Estado como representante do país e fiel da balança nas disputas políticas e institucionais é dos pontos dignos de maior admiração no sistema italiano. Sergio Matarella figura como presidente há oito anos e já foi reeleito para mais oito, e conta com respaldo e admiração de boa parte da população. Vias intermediárias como o semipresidencialismo francês ou a exigência da elaboração de um governo antes da derrubada do vigente, denominada de "desconfiança construtiva", como fazem Alemanha e Bélgica, podem ser alternativas de interesse, mas essas arquiteturas de poder são assuntos para um artigo autônomo.
[1] CRISAFULLI, Vezio; PALADIN, Livio. Comentario breve alla costituzione. Padova, CEDAM. 1990. P. 87.
[2] ITÁLIA, Constituição. Art. 87.
[3] ITÁLIA, Constituição. Art. 88.
[4] ITÁLIA, Constituição. Art. 95.
[5] ITÁLIA, Constituição. Art. 94.
[6] CARNEVALE, Paolo; CELOTTO, Alfonso; COLAPIETRO, Carlo; MODUGNO, Franco; RIMOLI, Francesco; RUOTOLO, Marco; SERGES, Giovanni; SICLARI, Massimo. Diritto Pubblico. Torino, Giappichelli, 2022, p. 106.
[7] ITÁLIA, Constituição. Art. 56.
[8] CARNEVALE, Paolo; CELOTTO, Alfonso; COLAPIETRO, Carlo; MODUGNO, Franco; RIMOLI, Francesco; RUOTOLO, Marco; SERGES, Giovanni; SICLARI, Massimo. Op. cit., p. 382.
[9] ITÁLIA, Constituição. Artigo 86.
[10] Disponível em: https://www.riformeistituzionali.gov.it/it/comunicazione/notizie/la-legge-costituzionale-sulla-riduzione-dei-parlamentari/. Acesso em 20 de setembro de 2022.
[11] Desconsiderado do cálculo os assentos para parlamentares eleitos no exterior.
[12] GUARGNIERI, Carlo. Il sistema politico italiano um paese e a la sua crise. Bolonha, Il Mulino, 2021, pp. 151-152.
[13] Disponível em: https://www.fratelli-italia.it/programma/. Acesso em: 28 de setembro de 2022.