Opinião

Importância da proteção aos direitos autorais e de imagem dos povos indígenas

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28 de setembro de 2022, 9h04

De yanomamis a xavantes, numerosas tribos brasileiras contribuíram relevantemente para a formação do patrimônio cultural nacional, desde os primórdios da descoberta do território brasileiro, a partir de suas diversas formas de expressão e manifestação artísticas e tradições ancestrais.

Mário Vilela/Funai
Mário Vilela/Funai

Podemos destacar as extasiantes danças ritualísticas, as singulares pinturas corporais, os expressivos cantos indígenas para reverenciar seus deuses e à natureza, a arte cerâmica, as ilustrações, os ricos grafismos, além de inúmeras criações dotadas de grande valor artístico.

As manifestações artístico-culturais indígenas, suas respectivas formas de expressão e criações, dentre outros bens imateriais ou materiais que compõem o patrimônio cultural nacional, são protegidas pela Constituição Federal Brasileira, de 1988, nos artigos 215 e 216, bem como o direito de imagem das pessoas também é objeto da proteção constitucional contida no artigo 5º, inciso, X.

A Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em seu artigo 31, item 1, dispõe que os povos indígenas "(…) Também têm o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver sua propriedade intelectual sobre o mencionado patrimônio cultural, seus conhecimentos tradicionais e suas expressões culturais tradicionais".

A Fundação Nacional do Índio (Funai), honrando sua missão e atribuições legais, por meio da expedição da Portaria nº 177/Pres, de 2006, fixou alguns critérios a fim de promover a proteção do patrimônio material e imaterial cultural dos indígenas.

Tal ato administrativo normativo, nos artigos 2º, §2º; 3º, § único e 10º, faz referência expressa à Lei 9.610 de 1998, que rege os direitos autorais, e a interpreta, de certo modo. Em seu artigo 2º, a portaria define que os direitos autorais dos indígenas são "os direitos morais e patrimoniais sobre as manifestações, reproduções e criações estéticas, artísticas, literárias e científicas; e sobre as interpretações, grafismos e fonogramas de caráter coletivo ou individual, material e imaterial indígenas".

Já o §1º do artigo 2º dispõe que: "O autor da obra, no caso de direito individual indígena, ou a coletividade, no caso de direito coletivo, detêm a titularidade do direito autoral e decidem sobre a utilização de sua obra, de protegê-la contra abusos de terceiros, e de ser sempre reconhecido como criador".

O artigo 3º da referida portaria elenca alguns critérios para a utilização das criações indígenas, incluindo a difusão cultural e outras atividades, incluindo aquelas com finalidades comerciais: "i- o respeito à vontade dos titulares do direito quanto à autorização, veto, ou limites para a utilização de suas obras; ii- as justas contrapartidas pelo uso de obra indígena, especialmente aquelas desenvolvidas com finalidades comerciais; iii- a celebração de contrato civil entre o titular ou representante dos titulares do direito autoral coletivo e os demais interessados".

Assim, o(s) titular(es) dos direitos autorais deve(m) concordar com as modalidades de utilização de suas criações, podendo vetar os usos indesejados. Ainda, deve ser oferecida uma contrapartida justa pela utilização da obra indígena, bem como deve ser firmado um contrato com o titular do direito, caso seja uma obra individual, ou com seu representante, quando se tratar de obra coletiva e com os demais terceiros interessados.

Caso se pretenda utilizar uma obra indígena que seja fruto da contribuição intelectual coletiva de um povo indígena para finalidades comerciais, por exemplo, dever-se-á obter prévia e expressa autorização do representante/líder da comunidade do povo indígena ao qual é atribuída a autoria de tal criação, observados todos os requisitos dispostos na Portaria retromencionada.

Cabe ressaltar, ainda, que, no caso de eventual dúvida acerca da autoria exclusiva da criação por determinado povo indígena, recomenda-se a obtenção de autorização de chefes/líderes de todos os povos indígenas envolvidos efetivamente na referida criação, de modo a evitar uma possível violação de direitos autorais.

Outro ponto que merece destaque é o de que somente poderão ser firmados contratos válidos com indígenas, independentemente de prévia autorização da Funai, "(…) quando tiverem consciência e conhecimentos plenos dos atos praticados e da extensão de seus efeitos, e desde que não lhes sejam prejudiciais", nos termos do disposto do artigo 14 da referida portaria.

Tal dispositivo combinado com o § 2º do artigo 16 do ato normativo referido e que dispõe que "(…) o consentimento deve ser dado de forma livre, consciente e fundamentado pelos titulares dos direitos" visa conferir uma proteção jurídica especial aos povos indígenas nas negociações de instrumentos jurídicos relacionadas aos seus direitos autorais e/ou de imagem.

Assim, por exemplo, na hipótese de o representante da comunidade indígena não possuir pleno conhecimento da língua portuguesa e da extensão e implicações do negócio jurídico que se pretenda celebrar, poderá solicitar a assistência da Funai para garantir que seja estabelecida uma relação jurídica equitativa. Nesse sentido, o instrumento deverá conter a tradução para a língua indígena, quando necessária, conforme previsto no item h, do § único do artigo 14 da portaria, dentre outros requisitos.

O direito de imagem, individual ou coletivo, associado ou não à manifestação artística ou expressão cultural, igualmente deve ser autorizado pelo respectivo titular. A portaria em questão, dispõe, em seu artigo 5º, que: "Direito de imagem indígena constitui direitos morais e patrimoniais do indivíduo ou da coletividade retratados em fotos, filmes, estampas, pinturas, desenhos, esculturas e outras formas de reprodução de imagens que retratam aspectos e peculiaridades culturais indígenas".

Ainda, o supramencionado artigo, em seu § 2º, destaca que "O direito sobre as imagens baseadas em manifestações culturais e sociais coletivas dos índios brasileiros pertence à coletividade, grupo ou etnia indígena representada".

Dito isto, em um caso hipotético de um produtor que pretenda realizar a captação de imagens de um ritual de dança indígena para finalidades comerciais, é fato que necessitará de autorização expressa do respectivo representante/líder da comunidade no que tange ao direito de imagem coletiva, sem prejuízo da necessidade de obtenção de eventuais autorizações individuais, a depender do contexto da utilização.

Nos termos do disposto no § 1º do artigo 15, "Na ausência da representação de acordo com os costumes e tradições é admitida a representação por pessoas jurídicas ou por associações de fato". Caso tal captação seja realizada em terras indígenas, há que se observar ainda os procedimentos de autorização prévios junto à Funai para a respectiva entrada, conforme previsto também no referido ato normativo.

Acrescente-se ainda que, nos termos do disposto no § único do artigo 14 do referido ato normativo, nos contratos assistidos pela Funai, alguns requisitos deverão ser observados, como o compromisso do interessado em respeitar os costumes e tradições indígenas; a indicação de mecanismos de controle dos possíveis efeitos das atividades junto à comunidade indígena; a existência de cláusula de remuneração ou indenização, dentre outros.

A interação com as manifestações artísticas e expressões culturais dos povos indígenas deve ser sempre prudente, zelosa e respeitosa com a integridade das tradições, costumes e valores desse universo tão rico e precedida da obtenção das prévias e expressas autorizações e licenças de utilização, de forma a desenvolver estratégias de controle e mitigação de possíveis impactos à comunidade.

Ainda que a portaria preveja em alguns artigos a modalidade de cessão de direitos, entendemos que queria se referir à licença de utilização, já que a cessão prevê a transferência total e definitiva dos direitos, o que não se afiguraria razoável em se tratando de direitos autorais e de imagem dos povos indígenas (estes últimos dotados de caráter personalíssimo, inalienável e intransferível — conforme disposto no próprio artigo 5º, § 1º do ato normativo).

Por fim, impende sobrelevar que atos administrativos normativos do Estado, como a Portaria de nº 177 da Funai, são extremamente importantes para a garantir o imprescindível respeito aos direitos de propriedade intelectual e de imagem dos povos indígenas, que, indiscutivelmente, integram o patrimônio cultural brasileiro e, portanto, devem ser protegidos, valorizados e preservados.

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