Opinião

STJ e duty to disclose adverse authority: o que pode vir a ser

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27 de setembro de 2022, 11h04

Recente julgado do Superior Tribunal de Justiça causou significativa repercussão entre processualistas e não processualistas, ao "aplicar" os princípios do duty to disclose adverse authority e candor towards the court para justificar a aplicação de multa processual à União [1]. As críticas adjetivas variaram entre o "interessantíssimo" [2] e o "muito importante" [3] e o "arrogância [e] exibicionismo" [4] e o "desastre" [5].  As substanciais fixam-se, em resumo, na ideia de se impor à parte o dever de informar o direito ao juízo [6] e à vinculação dos advogados brasileiros a código modelo de ética estrangeiro [7].

Faz-se necessário ponderar sobre o que efetivamente decidiu o STJ, suas razões e consequências para o ordenamento brasileiro. O artigo aborda essas questões nessa ordem.

A decisão
Primeiro, é imprescindível definir o objeto da decisão do STJ e sua fundamentação. A 2ª Turma da Corte não adotou o direito estrangeiro como justificador de seu entendimento. Extrai-se da própria ementa do acórdão, após exposição sucinta de como os princípios citados operam no direito estadunidense, que "o presente caso não exige tamanha densidade ética" [8].

Passa o julgado, então, a aplicar a jurisprudência da Corte sobre a articulação de pretensão em patente contrariedade a precedente vinculante, hipótese que, conforme votos citados no acórdão, enseja a aplicação da multa do artigo 1.021, §4º, do CPC/2015 [9], por configurar abuso do direito de recorrer, violação da boa-fé e da lealdade processual e manifesta improcedência. A essência do acórdão do STJ [10] não está, portanto, no elemento que causou repercussão, mas na jurisprudência da Corte, firmada expressamente à luz do CPC/2015 [11].

Logo, verifica-se que a Corte, embora tenha aludido ao direito norte-americano, não o utilizou para respaldar sua compreensão. A multa foi pelo manejo de pretensão manifestamente contrária ao próprio precedente invocado como argumento de autoridade, em hipótese de aplicação textualmente ressalvada nesse mesmo precedente, por força da modulação temporal. Por que o STJ citou o código da ABA, então?

A obiter dicta
O apelo ao direito comparado é em si uma fonte de polêmicas metodológicas [12]. Algumas vezes se justifica plenamente, para fins de fundamentação, outras somente serve a mostrar a erudição do julgador. Outras tantas, é usado para ilustrar, com exemplos, como se resolvem certos problemas comuns entre os ordenamentos. O rigor no emprego dessas fontes também acompanha tais debates. Mas se a mera demonstração de conhecimento pelo julgador não é elogiável, o uso do direito estrangeiro para contextualização do tema pode ser legítimo [13]

No caso, resta claro que o STJ quis trazer ao debate nacional o papel de advogados e partes na aplicação séria dos precedentes vinculantes [14]. Mas não aplicar, de forma direta ou mesmo indireta, os princípios da norma estadunidense no país. Basta notar que, lá, a norma se dirige aos próprios advogados, não às partes; lá, o controle ético da advocacia não é exercido exclusivamente pelos equivalentes à OAB, sendo possível a ação disciplinar dos tribunais, como na hipótese do duty to disclose adverse authority. Esse aspecto já evidencia a dificuldade da internalização expressa do conceito.

O inteiro teor do voto aponta alguns obstáculos do manejo do princípio mesmo naquela jurisdição, por exemplo, como provar que o advogado tinha conhecimento do precedente adverso [15]. Aponta, ainda, como deve agir o advogado que pretende invocar direito contrário ao precedente: argumentar pela superação (inclusive com crítica direta ao julgado e sua justiça) [16] ou distinção (apontando que as premissas fáticas do precedente não se aplicam ao caso concreto) [17].

Assim, por exemplo, o advogado não pode deixar de citar o precedente por entender que há distinção; deve citá-lo e argumentar a distinção. Tudo como desdobramento do dever profissional de melhor atender o cliente e auxiliar na construção do direito.

Esse dever, naquele ordenamento, decorre de outra premissa normativa: o dever de representação zelosa do cliente [18]. Embora, em regra, o ordenamento nacional não condene a incompetência, paralelos com a normatização brasileira da advocacia são possíveis [19], com a distinção da competência para apuração das faltas. Mas, como visto, o STJ não chegou a tanto nem quanto à premissa (apontamento de precedente adverso) nem quanto à consequência (sanção ao advogado, não à parte).

A doutrina sobre o tema sugere uma forma sutil de se atender ao requisito, sem prejudicar a causa do cliente: adotar a forma but see ou contra ao citar determinado entendimento, seguido da referência ao julgado adverso [20].

Assim, o ponto crucial da obiter dicta é reforçar o apelo ao comprometimento ético de todos os operadores do direito com a seriedade dos precedentes vinculantes, sem internalizar, nem mesmo obliquamente, tal dever no ordenamento brasileiro. Ao menos, por ora, e certamente não nos mesmos moldes.

O futuro do princípio
Essa aproximação entre o direito estadunidense e o brasileiro, com as devidas mediações, é relevante na construção de um modelo autônomo, próprio e nacional de precedentes, ainda significativamente incipiente. Isso porque mesmo a adoção dos julgados vinculantes, na forma do CPC/2015, não resolve todas as questões inerentes ao sistema processual. A mudança foi necessária, mas não se basta. A transformação cultural ainda se faz e se fará necessária por anos e décadas.

O duty to disclose adverse authority pode ser um dos aspectos do direito de precedentes cuja adoção, ainda que mitigada e adaptada, pode ser indispensável à consolidação do modelo processual contemporâneo. A opção ou falha do legislador em não introduzi-lo no CPC/2015 demonstra os riscos da adoção fragmentária do direito comparado, com a adoção de uma solução isolada (precedentes vinculantes) que pode não bastar para o fim (em resumo, eficiência e segurança jurídicas).

Certamente há outros elementos, omitidos ou desconhecidos, que paulatinamente surgirão com o amadurecimento dessa nova forma de argumentar e manejar o direito jurisprudencial. Mitos ainda existentes sobre os precedentes como solução de problemas da jurisdição nacional cederão, e outros tantos irão emergir. É inerente ao processo a adaptação paulatina dos institutos à nova cultura jurídica consolidada pelo CPC/2015.

No que tange ao princípio específico cujo debate foi lançado pela 2ª Turma do STJ, ele parece profícuo, e posições controversas sobre o ponto certamente ainda serão estabelecidas em petições, julgados e artigos de relevo. O espaço não permite desenvolver muito mais, e seria mesmo irrefletido avançar sobre o tema nesta oportunidade.

Mas calha anotar ao menos um aspecto que até aqui passa despercebido. O duty to disclose adverse authority contribui para a redução de disparidades de forças entre litigantes habituais e que dispõem de grandes recursos e os que comparecem ao Judiciário apenas de forma eventual e são menos autossuficientes, em favor, evidentemente, destes últimos [21]. Mais que isso, favorece quem detenha o melhor direito, e não apenas o melhor (ou mais astuto) advogado [22].

Estudos sobre sua aplicabilidade, inclusive pela comparação entre outros diferentes países, elucidarão como os tribunais devem tratar esse compromisso de partes e advogados com os precedentes vinculantes, o que, ainda, não foi efetivamente enfrentado pelo STJ, ao menos não na amplitude da norma ética estadunidense — que bem pode não ser a melhor, aliás.

Por fim, quanto ao termo usado, parece ter sido adequada a opção do tribunal, no mínimo por um motivo prosaico. Sendo tema novo e com ares de forte potencial de desenvolvimento no ordenamento nacional, ao se pesquisar pela decisão e seus debates, qual termo facilitaria a localização de doutrina e jurisprudência específica? Diante das opções polissêmicas [23], a adoção da expressão com significado mais determinado, em acepção restrita, tende a facilitar a abordagem do assunto.


[1] STJ (2 Turma). AgInt nos EDcl no RMS 34.477. j. 21.jun.2022, DJe. 27.jun.2022. Rel. Og Fernandes.

[2] MEDINA, José. (@profmedina). Twitter. "Interessantíssimo julgado do STJ sobre o princípio da 'candura perante o tribunal' ('candor toward the tribunal') e o dever de expor ao próprio tribunal a existência de precedente controlador desfavorável à sua tese ('duty to disclose adverse authority')". [s.l.], 19.jul.2022. Disponível em: https://twitter.com/ProfMedina/status/1549345144138342400. Acesso em 10.ago.2022.

[3] LORDELO, João. (@joaolordelo). Twitter. "Muito importante a menção, pelo relator, ao sistema processual norte-americano, em especial ao princípio do 'candor toward the tribunal'". [s.l.], 19.jul.2022. Disponível em: https://twitter.com/joaolordelo/status/1549397661807263744. Acesso em 10.ago.2022.

[4] [ALVES], Renan. (@renanbalves08). Twitter. "Arrogância juridica do Relator.  O que tem a ver o pobre do jurisdicuonado com precedentes americanos. Puro exibicionismo". [sic]. [s.l.], 19.jul.2022. Disponível em: https://twitter.com/renanbalves08/status/1549439333270261761. Acesso em 10.ago.2022.

[5] PÁDUA, Thiago. (@professorthiagopadua). Instagram. "Mais uma decisão que tem sido comemorada pelos processualistas, e ela é uma tragédia! […]". [s.l.], 19.jul.2022. Disponível em:  https://www.instagram.com/p/CgMg4ixupcpbLc2aVnmZOWdljCJrUH-3wFDiRg0/. Acesso em 10.ago.2022.

[6] Em oposição ao princípio "o tribunal conhece o direito".

[7] Outra polêmica se estabeleceu quanto ao uso do termo "candura" em contraposição a "lealdade, franqueza, boa-fé, sinceridade ou honestidade". ARAS, Vladimir. Sobre lealdade e "candura" no processo. Blog do Vlad. [s.l.], 26.jul.2022.  Disponível em: https://vladimiraras.blog/2022/07/26/sobre-lealdade-e-candura-no-processo/ . Acesso em 10.ago.2022.

[8] STJ (2 Turma). AgInt nos EDcl no RMS 34.477. j. 21.jun.2022, DJe. 27.jun.2022. Relator Og Fernandes.

[9] Menciona o voto os seguintes julgados: AgInt no REsp nº 1.476.021/SC, relator ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 1º/3/2021, DJe de 4/3/2021; AgInt no REsp nº 1.919.006/SP, relator ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 21/2/2022, DJe de 24/2/2022; AgInt nos EDcl no REsp nº 1.373.915/AM, relatora ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 13/5/2019, DJe de 16/5/2019; AgInt no REsp nº 1.500.785/RS, relator ministro Gurgel De Faria, Primeira Turma, julgado em 28/6/2021, DJe de 1º/7/2021; REsp nº 1.693.334/RJ, relator ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 14/12/2021; RMS nº 60.635/BA, relator ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 23/3/2021, DJe de 14/4/2021; REsp nº 1.780.156/RS, relator ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13/10/2020, DJe de 18/12/2020. STJ (2 Turma). AgInt nos EDcl no RMS 34.477. j. 21.jun.2022, DJe. 27.jun.2022. Relator Og Fernandes.

[10] "A pretensão da agravante, de fazer incidir tese vinculante na hipótese expressamente rechaçada pelo próprio precedente, configura especial violação do dever de lealdade processual, positivo no atual Código. […]  O caso, aqui, não chega a exigir tamanha densidade ética.  No entanto, não parece haver dúvida de que a extensão temporal expressamente afirmada no precedente invocado deva ser de conhecimento do patrono da parte. Ao manejar pretensão patentemente contrária ao julgado repetitivo, especificamente contra a modulação expressamente afirmada, a parte incorre em abuso do direito de recorrer e viola a boa-fé processual, atraindo a incidência da multa do artigo 1.021, §4º, do CPC/2015". STJ (2 Turma). AgInt nos EDcl no RMS 34.477. j. 21.jun.2022, DJe. 27.jun.2022. Relator Og Fernandes.

[11] Fundado nos artigos 5º e 1.021, §4º, do CPC/2015. STJ (2ª Turma). AgInt nos EDcl no RMS 34.477. j. 21.jun.2022, DJe. 27.jun.2022. Relator Og Fernandes.

[12] HORBACH, Carlos. O direito comparado no STF: internacionalização da jurisdição constitucional brasileira. Revista Brasileira de Direito Internacional, v. 12, nº 2, 2015, p. 193-210. DOI: 10.5102/rdi.v12i2.3667. Acesso em: 10.ago.2022.

[13] SMITS, Jan. Comparative law and its influence on national legal systems. In: REIMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard. The Oxford handbook of comparative law. Oxford: Oxford U. P., 2006.

[14] Sem afastar, porém, o dos magistrados: "Vê-se, portanto, que o amadurecimento do sistema de precedentes demanda uma postura comprometida com seriedade de todos os agentes, não só do Judiciário e dos julgadores, mas também das partes e dos advogados". STJ (2ª Turma). AgInt nos EDcl no RMS 34.477. j. 21.jun.2022, DJe. 27.jun.2022. Relator Og Fernandes.

[15] Há outros pontos: o que é precedente controlador no caso? Matéria em obiter dicta ou com distinção fática afasta o dever? O juiz deve se sentir ludibriado pela invocação de direito contrário ao precedente vinculante? Essas questões foram tratadas pela ABA na Formal Opinion 280 (1949).

[16] Isto é, não só pela ocorrência de superação já verificada como pela defesa de sua superação no (a partir do) caso presente.

[17] Bem como questionar a influência ou vinculatividade do julgado

[18] Incluindo diligência, presteza, conhecimento legal, habilidades, meticulosidade e preparação razoável necessários (ABA, Model Rules of Professional Conduct, Regras 1.1 e 3.3). Daí ser pouco útil argumentar que uma eventual falha de pesquisa inviabilizou a identificação do precedente; o advogado incorreria em outra falta ética, qual seja, a deficiência técnica. STRASSER, Alan. Candor toward the tribunal: The duty to cite adverse authority. ABA Practice Points. Chicago, 27.jan.2021.  Disponível em: https://www.americanbar.org/groups/litigation/committees/ethics-professionalism/practice/2021/candor-toward-the-tribunal-the-duty-to-cite-adverse-authority/. Acesso em: 10.ago.2022.

[19] Artigos 2º, p. u., II, IV, V e VII, 6º e 8º do Código de Ética da OAB e 33 e 34, VI e XIV, do Estatuto da OAB.

[20] Conforme o Bluebook (uma espécie de ABNT jurídica estadunidense), but see seria usado para casos prejudiciais à pretensão e contra para casos diretamente opostos à posição sustentada. GILMORE, Angela. Self-inflicted wounds: the duty to disclose damaging legal authority. Clev. St. L. Rev., v. 43, n. 303, 1995, p. 316-317. Disponível em: https://engagedscholarship.csuohio.edu/clevstlrev/vol43/iss2/5. Acesso em 10.ago.2022.   

[21] GILMORE, Angela. Self-inflicted wounds: the duty to disclose damaging legal authority. Clev. St. L. Rev., v. 43, n. 303, 1995. Disponível em: https://engagedscholarship.csuohio.edu/clevstlrev/vol43/iss2/5. Acesso em 10.ago.2022.

[22] "A regra atual confirma a obrigação que um advogado tem perante o sistema legal. Uma parte deve prevalecer em um caso exclusivamente pela força de seus méritos. Um lado não deveria prevalecer porque a Corte é cega em relação a um precedente vinculante. […] A regra […] [garante] que as decisões da Corte reflitam o verdadeiro estado do direito, e não a perícia do advogado ou os recursos financeiros do cliente. […] Esconder o direito é um negócio de risco. Embora confrontado com precedente prejudicial, o advogado ético deve relevar tudo à Corte, e fiar-se na força de seus argumentos para levar a melhor". GILMORE, Angela. Self-inflicted wounds: the duty to disclose damaging legal authority. Clev. St. L. Rev., v. 43, nº 303, 1995, p. 317-318. Disponível em: https://engagedscholarship.csuohio.edu/clevstlrev/vol43/iss2/5. Acesso em 10.ago.2022. Tradução livre pelo autor.

[23] ARAS, Vladimir. Sobre lealdade e "candura" no processo. Blog do Vlad. [s.l.], 26.jul.2022.  Disponível em: https://vladimiraras.blog/2022/07/26/sobre-lealdade-e-candura-no-processo/ . Acesso em 10.ago.2022.

Autores

  • é mestrando em Direito e Políticas Públicas no UniCEUB, jornalista pela UEL/PR, especialista em comunicação pública pelo IESB e analista judiciário.

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