Opinião

Flagrante preparado e a figura do crime impossível: vínculo necessário

Autor

  • Gilson Sidney Amancio de Souza

    é mestre em Direito Penal Econômico pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) especialista em Direitos Difusos pela Universidad de Castilla-La Mancha na Espanha membro do Ministério Público de São Paulo professor de Direito Processual Penal na Universade do Oeste Paulista (Unoeste) professor do Curso de pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estadual de Londrina (UEL) professor convidado do curso de Especialização em Direito da Escola Superior do Ministério Público do Mato Grosso e autor e coautor de obras jurídicas nas áreas de Direito Penal e Processo Penal.

27 de setembro de 2022, 15h04

A doutrina denomina "flagrante preparado", em que se tem como nula a prisão, a hipótese tratada na Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal dispõe que "não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação".  Assim reconhecida, no caso concreto, a incidência dessa súmula impõe-se o relaxamento da prisão pela nulidade do flagrante.

Sem embargo disso, a jurisprudência e a doutrina instituíram uma distinção entre duas situações que podem ser classificadas como espécies do gênero "flagrante preparado": o "flagrante provocado", que é aquele em que às providências preparatórias da prisão do agente em flagrante soma-se a atuação de um "agente provocador", ou seja, um policial ou um particular que induz ou instiga o sujeito à realização do crime, o estimulando a que o pratique, ao tempo em que providencia a sua prisão, apenas para conduzi-lo a uma situação flagrancial.

E e o "flagrante esperado", no qual a polícia ou o particular antecipam-se na tomada de providências destinadas a prender em flagrante o agente porque tomam conhecimento, antecipadamente, do delito que ele pretende praticar, sem que ocorra interferência de agente provocador.

Na primeira hipótese, há uma atuação ativa de terceiro que contribui para a conduta do agente, enquanto na segunda hipótese (flagrante "esperado"), a polícia ou terceiro só aguarda que o agente, ao realizar a conduta, sponte sua, dê ensejo à situação de flagrante para acionar os mecanismos adrede preparados para sua prisão, ou seja, é apenas, no dizer de Tourinho Filho, "uma ação monitorada e sem nenhum tipo de interferência" [1].

E a partir dessa distinção conceitual, tem-se afirmado, às vezes, que só haveria incidência da Súmula 145 do STF nos casos de "flagrante provocado", maculado de nulidade porque o agente é levado, com emprego de fraude, a encenar, involuntariamente, uma situação que só aparentemente é criminosa, arquitetada com o único fito de prendê-lo, ao passo que na hipótese de "flagrante esperado", por partir exclusivamente do próprio agente a decisão de cometer o delito, sem que tenha sido a tanto induzido fraudulentamente por terceiro, a prisão em flagrante seria válida. Para essa vertente de pensamento, "a primeira situação, a do flagrante esperado, é considerada plenamente válida, enquanto a segunda, do flagrante preparado (ou provocado), não" [2].

Não procede, contudo, esse tratamento diferenciado entre "flagrante provocado" e "flagrante esperado", sem embargo da validade, para fins didáticos, de sua distinção conceitual. 

De se consignar, desde logo, que a dicção da Súmula 145 não faz nenhuma distinção e sequer referência a tais modalidades: menciona a preparação do flagrante e, portanto, cuida de hipótese de flagrante preparado, como aquele em que as providências adrede tomadas pela polícia (o que se aplica, igualmente, ao particular) tornam impossível a consumação do crime, sendo despicienda qualquer análise de se ter em concreto um caso de flagrante "provocado" ou meramente "esperado".

Ora, os que professam a validade da prisão no chamado "flagrante esperado" fundamentam seu raciocínio no fato de que não há, em tais casos, nenhuma contribuição de agente policial ou de terceiro na cadeia causal do crime, mas tão somente o seu aguardo, dando-se o flagrante a partir da simples e passiva espera da conduta do agente, sem influência na vontade deste. Ausente o vício de vontade do agente, não se pode falar em flagrante preparado e a prisão é perfeitamente válida [3].

Entretanto, não é na existência ou inexistência de influência de terceiro na vontade do agente que se acha radicado o fundamento lógico-jurídico da Súmula 145 do STF, mas na impossibilidade da consumação do crime, mercê das providências tomadas pela polícia (ou pelo particular) para prendê-lo por ocasião de sua ação, seja caso de "flagrante provocado", seja caso de "flagrante esperado".   

Impende, aqui, tecer considerações mínimas sobre a figura do crime impossível, sem o que não é possível uma perfeita compreensão do "flagrante preparado" de que trata a Súmula 145.

Também denominado na doutrina de tentativa inidônea e de crime oco, o crime impossível, previsto no artigo 17 do Código Penal, configura verdadeira hipótese de atipicidade do fato, e não de causa de exclusão da punibilidade, como se poderia imaginar a uma leitura superficial e apressada do mencionado artigo 17, em que o legislador redigiu, inapropriadamente, a dicção "não é punível a tentativa…". Isso porque, na verdade, no caso de crime impossível nem mesmo tentativa há.

Com lucidez preleciona, a respeito, Reale Jr.:

"Enquanto no crime tentado a consumação deixa de ocorrer pela interferência de causa alheia à vontade do agente, no crime impossível a consumação jamais ocorrerá, e, assim sendo, a ação não se configura como tentativa do crime, que se pretendia cometer, por ausência de tipicidade.
Dessa forma, equivoca-se o legislador ao editar: 'Não é punível a tentativa', como se tratasse de causa de impunibilidade de um crime tentado configurado [4]."

Há que relembrar que a tentativa punível, tratada no artigo 14 do Código Penal, é caso de tipicidade por extensão; ou seja, o legislador, por razões de técnica legislativa e metodológicas, e para não ter que, em correspondência a cada tipo descritivo de um delito consumado, prever também a sua forma tentada, v. g., "tentar matar alguém", "tentar subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel", etc., para atender ao inarredável princípio da legalidade, que exige que o fato, para ser crime, esteja previamente descrito, com todos os seus contornos, numa norma incriminadora penal (princípio da tipicidade estrita), criou um "tipo de extensão", de natureza genérica, situado na Parte Geral do CP (artigo 14), estabelecendo a punição da tentativa com uma fração (1/3 a 2/3) da pena do crime consumado e conceituando o crime tentado no inciso II do referido artigo 14 como aquele em que, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.  E só por isso, ou seja, pela existência desse tipo de extensão temporal é que, sob o lume do princípio da legalidade, é possível punir a tentativa.

E como dos elementos típicos da tentativa exige-se início da execução sucedida de uma circunstância interveniente, no caso concreto, que impede, à revelia da vontade do agente, a consumação, é lícito concluir que, posicionando-se a intercorrência impeditiva da consumação em estágio logicamente posterior (embora não necessariamente cronologicamente), os meios empregados pelo agente e/ou o objeto material no qual se corporifica o bem jurídico tutelado pela norma penal devem ser, ab initio, idôneos e próprio, respectivamente, ainda que relativa essa idoneidade ou propriedade. Em suma, é necessário, para que o fato suja punível ao menos como tentativa que, no caso concreto, consideradas as circunstâncias em que realizada a conduta, fosse possível, a princípio, lograr-se a consumação, ainda que esta, contingencialmente, não se tenha verificado.

Só assim se poderá reconhecer, na tentativa, a criação de um risco ou perigo para o bem jurídico tutelado, sem o que inexiste tipicidade material.  E justamente essa total inexistência de potencialidade ofensiva contra o bem jurídico subjacente é que, distinguindo-a da tentativa punível, caracteriza a figura do crime impossível [5].

Portanto, no artigo 17 do Código Penal encontra-se uma hipótese de atipicidade porque, desde o princípio, num momento lógico (não necessariamente cronológico) precedente ao próprio início da execução  que tem como pressuposto o emprego de meio ao menos relativamente eficaz e objeto visado ao menos relativamente próprio , a consumação já se delineava, ex ante, absolutamente inatingível e, portanto, o bem jurídico protegido pela norma não chegou, em nenhum momento, a ser exposto a perigo. 

Vale lembrar, ainda, que o legislador brasileiro acolheu, a respeito do crime impossível, a denominada teoria objetiva temperada: não importa que a intenção do agente seja a de realizar o delito (como preconiza a teoria subjetiva), importa o aspecto objetivo, ou seja, se era, ou não, possível, no caso concreto, considerados os meios utilizados pelo agente e as condições próprias do objeto visado, chegar-se à consumação. Tal teoria, contudo, é chamada temperada justamente porque faz distinção entre inidoneidade absoluta e relativa, exigindo, para reconhecimento do crime impossível, "que o meio empregado pelo agente seja totalmente inócuo para produzir o resultado ou que impropriedade do objeto material do crime seja absoluta" [6], o que implica dizer que a impossibilidade da consumação deve decorrer da absoluta (completa, total) inocuidade do meio empregado, ou de absoluta ausência do bem jurídico no objeto material visado pela ação. Em decorrência, se meramente relativa a inidoneidade do meio ou a impropriedade do objeto, incidirá a hipótese de tentativa punível do artigo 14, inciso II, do Código Penal. 

Assim, v. g., se o agente, visando matar uma pessoa, aciona contra ela o gatilho de um revólver danificado, cujo mecanismo é totalmente incapaz de disparar projéteis, há crime impossível; entretanto, se a arma era, a princípio, operante, e seu mecanismo só se danifica durante a execução, quando já efetuado um ou mais disparos, haverá a tentativa punível tratada no artigo 14, inciso II, do Código Penal.  Do mesmo modo, se o agente, de posse de um cheque falsificado, tenta sacar dinheiro de uma conta bancária cujo saldo é zero porque seu titular não a movimenta (conta inativa), há crime impossível; porém, se a conta é movimentada normalmente e só por coincidência estava totalmente desprovida de saldo no momento da apresentação do cheque fraudulento, há tentativa punível, porque tão somente contingencial (relativa) a impropriedade do objeto.

Feitas tais considerações, mister voltar os olhos novamente à Súmula 145 do STF, que conceitua o "flagrante preparado".

A Súmula, acertadamente, afirma ser nulo o flagrante quando a preparação da prisão torna impossível a consumação. Em síntese, é a hipótese em que a causa da absoluta (completa, integral) intangibilidade da consumação é o conjunto de providências adotadas, de antemão, pela polícia (ou, igualmente, pelo particular) e preordenadas no sentido de prender o agente.

Há uma lógica jurídica irrepreensível nesse entendimento sumular que, repita-se, ao tratar do flagrante preparado não faz distinção entre "flagrante provocado" ou "flagrante esperado": se só pode ser preso em flagrante delito, nos termos do artigo 302 do Código de Processo Penal, quem está praticando uma infração penal, quem acaba de cometer a infração; quem é perseguido logo após cometer a infração; ou quem é encontrado logo depois de cometer a infração penal, e se não há nenhuma infração penal (crime impossível), mercê da preparação da prisão que torna, ab initio, inatingível a consumação, fazendo incidir a hipótese do artigo 17 do CP, não há falar em flagrante válido.

Nesse passo, o que importa avaliar é, em cada caso concreto, se a consumação tornou-se, em razão das providências adrede tomadas para prender o agente, absolutamente impossível, independente de qualquer consideração sobre se tratar de "flagrante provocado" ou apenas "esperado", já que, num e noutro caso, pode-se estar diante de hipótese de crime impossível; portanto, de fato atípico.

Cai por terra, destarte, a argumentação de que a Súmula 145 não teria aplicação aos casos de flagrante meramente "esperado".  Nessa esteira, o lapidar escólio doutrinário de que não faz sentido tal distinção:

"Não nos parece possível, com efeito, fixar qualquer diferença entre a preparação e a espera do flagrante, no que se refere à impossibilidade de consumação do crime, fundada na ideia da eficiente atuação policial. Em ambos os casos, como visto, seria possível, em tese, tornar impossível, na mesma medida, a ação delituosa em curso. Por que então a validade de um (esperado) e invalidade de outro (o preparado)? [7]"

Ora, não distinguindo a Súmula 145 do STF entre flagrante "provocado" ou meramente "esperado", considerando que a ratio essendi do entendimento sumular é a configuração de crime impossível, e que em uma ou outra espécie de flagrante a vigilância da polícia pode ter eficácia tal que torne, in concreto, impossível atingir-se a consumação, delineia-se mais acertado admitir a nulidade do flagrante, por incidência da Súmula 145 e de seu fundamento legal, o artigo 17 do CP.


[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 14º ed. São Paulo:  Saraiva, 1993.

[2] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 18ª ed. São Paulo:  Atlas, 2014. p. 535.

[3] Nesse sentido: VERONEZE, Paulo Roberto. Código Penal Comentado. Coord. Denise Hammerschmid. Curitiba:  Juruá, 2021. p. 97; CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 12ª ed., São Paulo:  Saraiva, 2008, v. 1, p. 260; RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 21ª ed., São Paulo:  Atlas, 2013. p. 778; etc.

[4] REALE JR., Miguel. Teoria do delito. 2ª ed., São Paulo:  Revista dos Tribunais, 2000. p. 212.

[5] Cf. MODONA, Guido Neppi. Il reato impossibile. Milano, 1965. p. 203.

[6] MARINHO, Alexandre Araripe; FREITAS, André Guilherme Tavares de. Manual de direito penal: parte geral. 3ª ed., São Paulo:  Revista dos Tribunais, 2014. p. 273.

[7] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Ob. cit., p. 537.

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    é mestre em Direito Penal Econômico pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), especialista em Direitos Difusos pela Universidad de Castilla-La Mancha na Espanha, membro do Ministério Público de São Paulo, professor de Direito Processual Penal na Universade do Oeste Paulista (Unoeste), professor do Curso de pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estadual de Londrina (UEL), professor convidado do curso de Especialização em Direito da Escola Superior do Ministério Público do Mato Grosso e autor e coautor de obras jurídicas nas áreas de Direito Penal e Processo Penal.

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