Consultor Jurídico

Ferreira e Costa: (Re)configuração do direito à privacidade

27 de setembro de 2022, 13h11

Por Marcus Vinicius Vita Ferreira, Leonardo P. Santos Costa

imprimir

Vivemos em um paradoxo. Na atual quadra, as tecnologias da comunicação se tornaram pressuposto e condição necessária para o regular exercício de direitos fundamentais básicos, eis que se tornaram o veículo e meio próprio que vocalizam o agir comunicativo dos diversos atores sociais na esfera pública digital, para parafrasear Jürgen Habermas.

Diz-se um mundo de paradoxos porque, ao mesmo tempo que em as tecnologias da informação e o processo de automatização da vida social possuem o condão de ajudar a construir a biografia e os atributos da personalidade de alguém, contraditoriamente, são elas próprias, as tecnologias da informação, a munição para a corrosão da existência social de um ser e a ameaça ao próprio exercício da cidadania de uma dada comunidade política. O movimento do cancelamento de pessoas ou empresas na esfera digital se transformou na nova praça de linchamento, em tribunais difusos, pautados pelas regras das próprias provedoras de internet e redes sociais.

É nessa permanente tensão entre veículo de exercício de direitos fundamentais e aniquilação dessas mesmas liberdades fundamentais consagradas pelo regime democrático que se coloca a jurisdição constitucional, não raro conclamadas a promover a adequada calibragem hermenêutica das práticas estatais de tratamento de dados pessoais à luz do plexo axiológico das normas consagradas pelas Constituições.

Trata-se, em verdade, de um redesenho da própria arquitetura institucional das Cortes Constitucionais face ao fenômeno contemporâneo que se convencionou chamar de Constitucionalismo Digital (digital constitucionalism).

Nesse sentido, Wolfgang Hoffmann-Riem prescreve que a jurisdição constitucional deve funcionar como verdadeiro mecanismo institucional de inovação jurídica com vistas à permanente tutela dos direitos fundamentais constantemente ameaçados no terreno pantanoso do ciberespaço:

"As tecnologias oferecem um enorme potencial, e não é exagero referir-se às oportunidades decorrentes da sociedade da informação. Na maioria dos aspectos da vida diária, os cidadãos são hoje obrigados a utilizar as novas tecnologias para não serem socialmente marginalizados. Mas as novas tecnologias também trazem consigo um potencial de perigo: não só o de terceiros, incluindo o Estado, penetrando na esfera privada, mas também o desenvolvimento de um poder de comunicação e de poder econômico que impõe seus interesses seletivamente através de manipulação ou por outros meios" [1].

Foi, então, justamente imbuído desse espírito de permanente abertura institucional que, no último dia 15, o Pleno do Supremo Tribunal Federal encerrou um dos mais belos capítulos de sua altiva missão de renovar o compromisso de manter viva a força normativa da Constituição Federal de 1988, nela encontrando caminhos, e não entraves, para a proteção jurídica da intimidade enquanto garantia básica da ordem democrática [2].

É que, na assentada realizada naquela data, a Suprema Corte finalizou, sob a batuta do bem conduzido voto do relator, ministro Gilmar Mendes, o julgamento conjunto da ADI nº 6649/DF e da ADPF nº 695/DF. Ambas as ações questionavam, sob diferentes óticas, a compatibilidade do Decreto nº 10.046/2019, exarado pela Presidência da República, com o regime constitucional de proteção de dados e com a garantia do devido processo informacional.

Excetuado o ministro Edson Fachin, que votou no sentido de declarar a integral invalidade do Decreto nº 10.046/2019, o STF, no mérito da disputa constitucional, entendeu que é o caso de se conferir interpretação conforme à Constituição às disposições do aludido ato normativo.

Estava em jogo saber, dentre outros relevantes pontos, se as disposições do Decreto nº 10.046/2019, que possuem como escopo sistematizar o conjunto de princípios e regras aplicáveis ao compartilhamento de dados entre entes e órgãos da Administração Pública Federal para o exercício daquilo que a doutrina administrativista italiana denomina de princípio da boa administração, entre nós traduzido por eficiência (CF, art. 37, caput). Nas palavras de Marcello Clarich:

"É impensável que, na sociedade moderna, as repartições públicas operem com instrumentos defasados, renunciando à tecnologia, às ferramentas digitais, e desprezando as melhores práticas gerenciais. Ou seja, não é dado ao Estado virar as costas para o progresso tecnológico, tampouco permanecer amarrado ao passado. Cuida-se de mais cristalina aplicação do princípio da eficiência administrativa, ou daquilo que os italianos chamam de princípio da boa administração" [3].

Foi precisamente nessa encruzilhada entre, de um lado, normas que reclamam transparência na gestão da coisa pública, notadamente no que tange ao compartilhamento de dados entre órgãos e entes da Administração Pública Federal para, na atual sociedade digital, melhor realizar o princípio constitucional da eficiência administrativa; e, de outro, aquelas que estabelecem limites para o fluxo de dados pessoais coletados ou produzidos pelo Estado, que o STF foi instado a solver esse aparente conflito normativo.

Aparente porque não existe, na atual configuração do Constitucionalismo Digital, um interesse público que — ex ante — possa justificar, abstratamente, a mitigação da força normativa do direito fundamental à intimidade, à vida privada e, sobretudo, a autodeterminação informativa.

Segundo anotam Gillian Black e Leslie Stevens, "se a privacidade for tratada simplesmente como um direito ou interesse individual, sempre será possível para o setor público controlar dados para suas finalidades públicas, já que isso será sempre reputado como necessário e proporcional" [4].

A bem da verdade, o que se exige é uma construção hermenêutica, à luz do estatuto axiológico do direito fundamental à privacidade, de um regime jurídico híbrido. Isso porque, a implementação de um regime jurídico da proteção de dados pessoais é um objetivo transindividual de estruturação de regimes democráticos. Sua abordagem, na dicção do Supremo, deve ser coletiva e institucional.

De acordo com Daniel Solove: "a privacidade não é algo que indivíduos automatizados possuem no estado de natureza e que sacrificam para se unir ao pacto social. Estabelecemos proteções à privacidade por causa de seus profundos efeitos sobre a estrutura de poder e de liberdade na sociedade como um todo" [5]. Portanto, "a proteção da privacidade nos protege contra prejuízos a atividades que são importantes tanto para os indivíduos quanto para a sociedade" (Idem).

No limite, o que se tem não é apenas um redesenho do papel do Estado e dos regimes democráticos clássicos oriundos do século XX, mas também e, sobretudo, da própria semântica do direito fundamental à privacidade, historicamente pensado em um sentido individualista de clara segmentação entre as esferas pública x privada, ou de maneira que o núcleo de sua proteção jurídica se esgotava no direito de ser deixado só ("the right to be left alone") [6].

Essa orientação de sentido foi refletida na jurisprudência do STF quando, por exemplo, julgou o RE nº 418.416 (ministro Sepúlveda Pertence), momento em que a corte sufragou uma concepção do direito à privacidade como uma espécie de garantia individual de abstenção do Estado na esfera individual do cidadão.

Todavia, com o curso da história, com o desenvolvimento das tecnologias da informação e abertura do mundo à Indústria 4.0, tem-se a configuração daquilo que Stefano Rodotà denomina de "processo de inexorável reinvenção da privacidade" [7]. Reivenciona-se a privacidade e, por consequência, reinvenciona-se a jurisdição constitucional e as diretrizes hermenêuticas que ela imprime a esse e a outros direitos fundamentais correlatos.

Na experiência internacional, é clássico e paradigmático o Volkszählungsurteil (BVerfGE 65, 1), de 1983, mediante o qual o Tribunal Constitucional Federal alemão declarou a inconstitucionalidade da Lei do Censo que possibilitava que o Estado realizasse o cruzamento de informações sobre os cidadãos para mensuração estatística da distribuição geográfica e espacial da população. Como bem ensinou o ministro Gilmar Mendes durante o julgamento:

"Nesse julgado, a Corte Constitucional redefiniu os contornos do direito de proteção de dados pessoais, situando-o como verdadeira projeção de um direito geral de personalidade para além da mera proteção constitucional ao sigilo."

Entre nós, a guinada hermenêutica do STF rumo ao reconhecimento da privacidade como "o direito de manter o controle de suas próprias informações" [8], embora encontre seus primeiros registros com a apreciação do Tema nº 528 da Repercussão Geral (RE 637.707 — ministro Luiz Fux), parece ter ganhado força de modo mais decisivo com o julgamento da ADI nº 6.347 (ministra Rosa Weber). Pela vez primeira, a Corte reconheceu que a proteção de dados pessoais e a autodeterminação informacional são direitos fundamentais autônomos.

De certo, o caminho de abertura da jurisdição constitucional brasileira ao constitucionalismo digital (digital constitucionalism) que começou a ser pavimentado com os aludidos julgamentos parece agora, com a ADI nº 6.649/DF e da ADPF nº 695, ter encontrado seu ponto alto com a mensagem constitucional endereçada pela corte a partir do voto condutor do ministro Gilmar Mendes.

Ao fim e ao cabo, é nessa permanente tensão dialética reconstrutiva da semântica do direito à privacidade ou nesse aparente paradoxo entre proposições normativas como eficiência estatal x preservação de dados pessoais informadores do perfil biográfico do cidadão, que o STF, à luz do pensamento de Peter Häberle, caminhou na esteira de um "pensamento de possibilidades" (Möglichkeitsdenken), cujo traço distintivo se caracteriza por ser uma "expressão, consequência, pressuposto e limite para uma interpretação constitucional aberta. Trata-se de pensar a partir e em novas perspectivas, questionando-se: 'que outra solução seria viável para uma determinada situação?'" [9]


[1] HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. "Innovaciones em La Jurisprudencia del Tribunal Constitucional Alemán, a Propósito de la Garatía de Los Derechos Fundamentales Em Respuesta A Los Cambios Que Conducen A La Sociedad de La Informacion". In: ReDCE, n. 22, 2014 – destacou-se e grifou-se.

[2] Trecho do voto do min. Gilmar Mendes na ADI nº 6.649/DF e ADPF nº 695/DF.

[3] CLARICH, Marcello. Manuale di Diritto Admministrativo. 5ª ed. Bolonha: il Mulino, 2022, pp. 152-153 – destacou-se.

[4] BLACK, Gillian e STEVENS, Leslie. “Enhancing Data Protection and Data Processing in the Public Sector: The Critical Role of Proportionality and the Public Interest”. In: Scripted. Vol. 10m n. 1, 2013, p. 95.

[5] SOLOVE, Daniel. J. Understanding Privacy. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 93.

[6] Trecho do voto do min. Gilmar Mendes na ADI nº 6.649/DF e ADPF nº 695/DF.

[7] RODOTÀ, Stefano. A via na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 15.

[8] RODOTÀ, Stefano. In diritto di avere. Roma: Laterza, 2012, p. 321.

[9] FERREIRA MENDES, Gilmar. Interpretação Constitucional e "Pensamento de Possibilidades". Revista do MPPR, dez.2015