Opinião

CDC e harmonização das relações de consumo com a dignidade humana

Autor

  • Ellen Gonçalves

    é advogada vice-presidente da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor da OAB e sócia-fundadora do PG Advogados especialista em Direito do Consumidor e Resolução de Conflitos e em Contencioso de Alta Complexidade mestre em Direito Político e Econômico LLM em Direito Empresarial com ênfase em Direito do Consumidor e autora de O Direito do Consumidor e os Juizados Especiais Cíveis (IOB Thomson 2006) e Uma Lei para Todos - A História dos 30 Anos do Código de Defesa do Consumidor (Atelier de Conteúdo 2020).

27 de setembro de 2022, 6h06

O ano era 1990. O capitalismo avançava em todos os continentes e abria as portas para a globalização; a Alemanha foi reunificada, com a queda do muro de Berlim; Nelson Mandela foi libertado e deu-se início ao fim do apartheid; a segunda guerra do Golfo Pérsico eclodiu, com a invasão do Kuwait pelo Iraque, trazendo a ameaça de desestabilizar a economia mundial em decorrência da alta do petróleo; Mikhail Gorbachev ganhou o Prêmio Nobel da Paz e a Alemanha sagrou-se campeã do mundo de futebol, em Roma.  

No Brasil, a economia amargava uma de suas maiores crises, chegando à hiperinflação; a democracia revivia, com a eleição do primeiro presidente da República civil após 29 anos; o país mostrava fôlego político para embarcar na globalização; comemoramos o bicampeonato de Ayrton Senna e choramos a derrota de Cazuza em sua batalha contra a Aids, epidemia que assustava o mundo, e com a desclassificação da seleção brasileira na Copa do Mundo para a Argentina. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi sancionado. 

De lá para cá — 32 anos depois — os personagens mudaram, os fatos foram renomeados, mas ainda vivemos conflitos armados que ameaçam a segurança alimentar e a paz mundial; uma pandemia dizimou quase 20 milhões de vidas em todo o planeta; a inflação global preocupa; o momento pré-eleitoral é tenso e a Copa do Mundo vem aí. 

E o CDC? Nessas mais de três décadas ele disse a que veio. Popularmente reconhecido como "a lei que mais pegou", ele cumpriu seu papel nesse período e estabeleceu novos parâmetros para as relações de consumo no Brasil. É uma das leis mais conhecidas, que deu voz aos consumidores e, consequentemente, otimizou o negócio das empresas, que se tornaram ainda mais centradas em seus clientes.  

Sim, o CDC foi um verdadeiro professor e mostrou às organizações como fazer o dever de casa. O resultado foi que, com ou sem crises econômicas, políticas ou sanitárias, ele foi se firmando e trazendo luz às relações de consumo no Brasil. Nesse período, a legislação brasileira proporcionou importantes reforços ao CDC, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que chegou para garantir a preservação da privacidade das informações pessoais. Grande contribuição e alívio para os consumidores. Torcemos para que a LGPD também se torne "uma lei que pegou" e que os atuais vazamentos de dados e suas ameaças com o tempo sejam mitigados.

Outra lei muito bem-vinda foi a de número 14.181/2021 que representa um marco importantíssimo na história das relações consumeristas e do próprio CDC. Tão relevante, que ela atualizou o CDC, permitindo uma análise mais aprofundada e humana das possíveis razões que geram inadimplência. Por isso mesmo ficou conhecida como a Lei do Superendividamento. 

Mais do que tudo ela é necessária: hoje, temos 77,3% de famílias endividadas e aproximadamente 44 milhões de brasileiros superendividados. Esses dados alarmantes foram divulgados pela Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, realizada em junho deste ano pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. 

Mas o que caracteriza o superendividamento? O CDC o define como "a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação" (definição legal do § 1º do artigo 54-A). 

A partir da Lei do Superendividamento desenhou-se um novo cenário que pretende trazer mais clareza e oportunidades para quem deve e àqueles que precisam receber. Entre as medidas previstas se destacam mais conscientização sobre gastos, ênfase na educação financeira, condições justas para a contratação de crédito, fim do assédio ao cliente e mais suporte ao consumidor. Ela também protege o mínimo existencial dos consumidores que se encaixam neste perfil.  

Contudo, como sempre nem tudo são flores e até mesmo o CDC enfrenta alguns dissabores impostos por novas normas, em julho deste ano foi publicado o Decreto nº 11.150/22, que determinou o valor desse mínimo existencial e deixou muitos questionamentos jurídicos e sociais. Ao negociar dívidas, os bancos e as financeiras devem assegurar que o cidadão tenha 25% do salário mínimo garantido para sua subsistência, o que representa algo em torno de R$ 303, uma vez que o salário mínimo vigente é R$ 1.212. 

O questionamento está justamente aí. O valor protegido para garantir o conjunto básico de direitos fundamentais para a dignidade da pessoa, com moradia, alimentação, saúde, educação e lazer é o mínimo do mínimo para sua subsistência. Neste ponto é perceptível que se abriu um distanciamento e um novo desafio para sua aplicabilidade. 

Sua essência é colaborativa para quem tem dívidas a pagar e fundamental para o empresário que precisa receber. Como seria possível aplicá-la, uma vez que sabemos que esse cenário de superendividamento engloba as pessoas com mais vulnerabilidade social e que, muitas vezes, mal recebem um salário mínimo? 

A Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-SP, da qual sou vice-presidente, entende que esse valor ofende, de partida, o artigo 4º do CDC, que outorga à Política Nacional das Relações de Consumo o objetivo de "atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo". E eu faço coro a esse posicionamento. 

Enxergamos que um número expressivo de cidadãos brasileiros superendividados ficará à margem da proteção legal. E para além de toda essa análise e compreensão da situação econômico-social do país há outro ponto que merece ser levantando: perdemos aqui o princípio de harmonia das relações de consumo e toda a sociedade será impactada por essa realidade que se configura a partir do Decreto nº 11.150/22. 

Neste 11 de setembro, quando serão completados 32 anos da sanção do CDC, debates sociais precisam ser os protagonistas deste marco. Se em 2021 ganhamos com as possibilidades que a Lei do Superendividamento proporcionou para a harmonia das relações de consumo, em 2022 amargamos a edição de um decreto que desrespeita seu princípio fundamental de garantir a dignidade humana. 

Vamos repensar juntos. Sem relações de consumo equilibradas, não há estabilidade em nosso modelo econômico. E sem consumidor não se tem consumo. Que as leis neste contexto atendam todos os setores da economia, o que inclui o mercado e os cidadãos. Sem isso não é possível haver equilíbrio social e econômico. Que os princípios do CDC prevaleçam em prol da dignidade humana e do fortalecimento da ordem econômica. 

Autores

  • Brave

    é advogada, vice-presidente da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor da OAB, CEO e sócia-fundadora do PG Advogados. É especialista em Direito do Consumidor e referência em Resolução de Conflitos e em Contencioso de Alta Complexidade. Mestre em Direito Político e Econômico, LLM em Direito Empresarial. É autora de “O direito do consumidor e os juizados especiais cíveis" (IOB Thomson, 2006) e “Uma lei para todos — A história dos 30 anos do Código de Defesa do Consumidor" (Atelier de Conteúdo, 2020).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!