Opinião

Resolução nº 56/2009 da Anvisa não é expropriação regulatória

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26 de setembro de 2022, 9h07

Em artigo publicado na ConJur, Sérgio Guerra e Rafael Véras sustentam que a Resolução nº 56/2009 da Anvisa, que proibiu o uso de equipamentos de bronzeamento artificial por meio da emissão de radiação ultravioleta, a despeito do reconhecimento de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, implicaria expropriação regulatória, de modo que a resolução "deveria ter endereçado um regime de compensação para os agentes econômicos diretamente afetados" [1].

Embora seja possível discutir se a amplitude do conceito de expropriação regulatória (ou regulação expropriatória) torna inconveniente sua transposição para o direito brasileiro [2], este artigo se contenta em argumentar que, mesmo nos parâmetros decorrentes de eventual transposição, a resolução da Anvisa não se enquadra no fenômeno em questão.

No próprio precedente citado por Guerra e Véras, Pennsylvania Coal Co. v. Mahon, 260 US 393 (1922), a Suprema Corte norte-americana oferece o primeiro elemento para o argumento do presente artigo, ao rejeitar a incidência, naquele caso concreto, da exceção do uso nocivo, mas não descartar sua aplicabilidade, como bem explicado por Luiza Vereza: "No primeiro caso em que restou reconhecido o caráter expropriatório de uma regulação, Pennsylvania Coal Co. v. Mahon, não houve consenso em relação à aplicação da exceção do uso nocivo. Prevaleceu, no entanto, a opinião do Justice Holmes, para quem o Kohler Act buscaria proteger interesses predominantemente privados. Segundo o Justice, o interesse público protegido pela norma seria bastante limitado (…)" [3].

A exceção do uso nocivo se assemelha a uma extrapolação do argumento do ministro Edson Fachin no Ag.Rg. no RE com Agravo nº 937.365/RS, descrito no próprio artigo de Guerra e Veras: os prejuízos econômicos decorrentes da resolução da Anvisa não autorizariam sua anulação judicial, "dada a relevância do direito em debate".

O argumento é questionável, podendo-se aduzir que, quanto maior a relevância do bem jurídico protegido pela norma proibitiva, mais se justifica a utilização dos recursos da coletividade para indenizar aqueles que foram atingidos de modo específico e individualizado pelo banimento da atividade [4]. Contudo, se a proposta for a transposição do instituto do Direito norte-americano para o brasileiro, a exceção do uso nocivo não pode ser ignorada, sob pena de gerar no leitor a impressão de que a proteção à propriedade privada e à livre iniciativa seriam menores no Brasil do que nos Estados Unidos em razão da falta da adoção do instituto transposto [5].

Não é bem assim. A relutância da Suprema Corte norte-americana em reconhecer a expropriação regulatória em casos de proibição de atividade fica mais explícita em um precedente mais antigo: Mugler v. Kansas, 123 U. S. 623 (1887), em que o tribunal negou indenização a um produtor de cerveja cuja atividade foi proibida por lei estadual superveniente, a despeito de reconhecer que a proibição reduziu substancialmente o valor de seus bens, deixando registrado na ementa (syllabus) que uma "proibição de uso da propriedade para finalidades consideradas, por lei válida, como prejudiciais à saúde, bons costumes ou segurança da comunidade não é uma apropriação da propriedade por utilidade pública".

À luz deste entendimento, eventual expropriação atingiria apenas os equipamentos de bronzeamento artificial eventualmente adquiridos pelo empreendedor antes do advento da Resolução nº 56/2009 da Anvisa, e ainda assim se: 1) a aquisição tiver ocorrido na forma da anterior Resolução RDC nº 308, de 2002, que estabelecia uma série de exigências aplicáveis aos equipamentos; 2) for inviável a conversão do equipamento para finalidade lícita, como tratamento médico ou odontológico supervisionado; e 3) o valor de mercado do equipamento tiver sido esvaziado, o que, a despeito da proibição, pode não ter ocorrido se for viável sua exportação para locais em que a atividade é permitida.

O artigo de Guerra e Véras menciona ainda o artigo 37, §6º, da Constituição e a ideia de repartição equânime de encargos sociais, que têm origem distinta da expropriação regulatória. Para estudar a melhor aplicação destas ideias, pode ser mais produtivo que a doutrina brasileira volte seu olhar para a matriz francesa, em que a jurisprudência do Conselho de Estado admitiu a indenização por ato normativo que proibiu o exercício de certa atividade  produção de cremes cuja composição continha produtos que não eram derivados do leite  no famoso caso La Flourette, de 1938, e em outros que o sucederam [6]. Ainda assim, salta aos olhos que a atividade proibida não era prejudicial ou perigosa para a saúde, o que pode ter influenciado a decisão. Neste estudo, o desafio da transposição será outro: será que faz sentido importar uma noção de responsabilidade civil por ato lícito que parece ser decorrente da impossibilidade de controle de constitucionalidade pelo Conselho de Estado para um ordenamento jurídico que admite o controle difuso desde o século 19, como é o brasileiro?

Como se pode perceber, a tropicalização de certos conceitos e institutos nem sempre é simples e pode ser necessário trilhar um caminho próprio, mesmo sem deixar de olhar o que ocorre à nossa volta.

[1] Sérgio Guerra e Rafael Véras. "Expropriação regulatória e a Resolução nº 56/2009 da Anvisa", 9 de setembro de 2022, texto disponível em https://www.conjur.com.br/2022-set-09/guerra-veras-expropriacao-regulatoria-resolucao-56-anvisa

[2] No sentido da inconveniência: GARCIA, Fernando Couto. Medidas administrativas preordenadas à desapropriação: constitucionalidade, natureza jurídica e temporariedade. Tese (Doutorado em Direito) — Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. p. 181-185.

[3] VEREZA, Luiza. Regulações expropriatórias: requisitos procedimentais e parâmetros materiais de identificação. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 201-202. A obra citada contém uma excelente e detalhada sistematização crítica da jurisprudência da Suprema Corte norte-americana sobre as desapropriações regulatórias (em especial nas p. 149-249).

[4] "O banimento é a medida regulatória extrema, que importa maior grau de restrição à liberdade de escolha dos agentes econômicos – tanto fornecedores quanto consumidores –, pois acarreta a proibição da oferta e do consumo de determinado produto ou serviço". (BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 198).

[5] Parece-me que esta não foi a intenção de Guerra e Véras, que apenas não tiveram espaço e tempo para aprofundar a questão em artigo sintético. Neste ponto, portanto, tomo a discordância como ponto de partida, mas a extrapolo.

[6] Uma boa descrição da evolução da jurisprudência do Conselho de Estado francês neste tema pode ser encontrada em ESTEVES, Júlio César dos Santos. Responsabilidade civil do Estado por ato legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 101-114. Uma versão mais sintética dos precedentes se encontra em LUVIZOTTO, Juliana Cristina. Responsabilidade civil do estado legislador: atos legislativos inconstitucionais e constitucionais. São Paulo: Almedina, 2015, p. 117-118.

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