Direito Eleitoral

Racismo, colorismo e afro-conveniência nas cotas raciais eleitorais

Autor

  • Sabrina de Paula Braga

    é mestra em Direito Político pela UFMG. Servidora da Justiça Eleitoral. Integrante da Comissão de Promoção da Igualdade Racial na Justiça Eleitoral. Membra da Abradep.

26 de setembro de 2022, 8h00

Segundo as estatísticas apresentadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, referente às eleições de 2022, o número de candidaturas de pessoas que se autodeclararam negras superou o de pessoas autodeclaradas brancas, correspondendo a 49,95% do total de requerimentos de registros. Esse aumento, comparado com as eleições gerais de 2018 — quando 46,56% das candidaturas corresponderam a pessoas autodeclaradas negras e 52,4% brancas — coincide com o fato de que esse será o primeiro processo eleitoral sob a égide da Emenda Constitucional nº 111, cujo artigo 2º dispõe que "para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados, nas eleições de 2022 a 2030, serão contados em dobro". Assim, quanto mais votos mulheres e pessoas negras receberem, mais recursos financeiros serão destinados às agremiações.

Essas novidades vêm acompanhadas de notícias como a da autodeclaração de ACM Neto e Ana Coelho, candidatos a governador e vice governadora da Bahia[1], como pessoas pardas, além da informação de que um grupo de 33 candidatos à reeleição se declararam brancos nas eleições de 2018, e pardos no registro das eleições de 2022[2].

O crescimento do número de candidaturas de pessoas negras, bem como as mudanças de autodeclaração étnico racial, coincidindo temporalmente com a previsão constitucional de contagem em dobro dos votos destinados a tais candidaturas, para fins de distribuição de recursos do Fundo Partidário, acendem o alerta para a possibilidade de fraude nas citadas autodeclarações, bem como fraude às cotas raciais para distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previstas na ADPF 738, na Consulta nº 0600306-47.2019.6.00.0000, feita ao TSE.

A discussão perpassa por temas sensíveis como o racismo, o "mito da democracia racial brasileira", o colorismo, a afro-conveniência, e soluções possíveis para que a política pública, cujo objetivo é o aumento da representação negra nos cargos eletivos, não seja arruinada pelas tentativas de fraudá-la.

Segundo a ideologia da democracia racial, as relações entre as diferentes raças no Brasil ocorreram de forma harmônica e tolerante, caracterizando o país como um verdadeiro paraíso racial de negros e brancos. Do ponto de vista legal, tanto a Lei Áurea[3], de 1888, quanto a Constituição de 1891[4] (artigo 72), deveriam garantir às pessoas negras direitos concernentes à liberdade e segurança individual. Mas é dentro da própria Constituição que vimos uma das peças da construção do mito da democracia racial, uma vez que a Carta de 1891 proibiu o alistamento eleitoral de mendigos e analfabetos, condição em que se encontrava a maioria das pessoas negras então libertas, especialmente porque em 1837 foi editada a Lei nº 1[5] que proibia pessoas escravizadas e pretos africanos, ainda que fossem livres ou libertos, de frequentarem escolas.

Essa dita democracia é mítica na medida em que a ideia de fusão racial e cultural permitiu, como afirma Kabengele Munanga[6], a dissimulação das desigualdades e impediu a tomada de consciência, por parte das pessoas não-brancas, da existência de mecanismos sutis de exclusão, da qual são vítimas, encobrindo conflitos raciais. O enaltecimento da mestiçagem foi utilizado pelas elites intelectuais e políticas, a partir da década de 30, como ferramenta para desarticular a luta por direitos iguais entre negros e brancos. Estamos falando de uma estratégia perversa que possibilitou que todos se reconhecessem como brasileiros, impedindo o povo negro de perceber o caráter racista da sociedade e do Estado, e de se organizar politicamente. Andreas Hofbauer[7] chama essa estratégia de ideologia do branqueamento, capaz de inibir as reações políticas por parte dos "não-brancos", já que os incentiva a se aproximarem do padrão hegemônico e a negociarem privilégios individuais que aumentam, à medida em que a pele fica mais clara. Tal ideologia fundamentou, então, o discurso de que no Brasil "“somos todos mestiços" ou que "não existem pessoas brancas" no país, refletindo, de acordo com Oracy Nogueira, uma tendência de negar ou subestimar o preconceito.

Segundo o sociólogo, o preconceito racial é "uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece"[7]. A partir desse conceito ele designa dois tipos de preconceito: o de marca e o de origem, usando os exemplos das relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos para qualificar um e outro. Se existe o preconceito a partir dos traços físicos da pessoa, seus gestos ou seu sotaque, trata-se de preconceito de marca, que varia subjetivamente em função das características de quem observa, e de quem está sob identificação. Quando a suposição de que uma pessoa descende de um determinado grupo étnico-racial é o bastante para que esta seja vítima de preconceito, trata-se de preconceito de origem. Em relações raciais definidas pelo preconceito de marca, o critério para definição dos grupos discriminador e discriminado é a aparência racial e nas relações raciais definidas pelo preconceito de origem, independente da aparência ou da proporção de ascendência do grupo discriminador ou discriminado, se houver mestiçagem haverá preconceito. Nogueira então aponta que “a concepção de branco e não-branco varia, no Brasil, em função do grau de mestiçagem, e de acordo com a pessoa, sua classe e região, sendo que a pessoa com traços caucasianos será considerada branca, ainda que tenha ascendência negra ou parentesco com pessoas de traços negroides, e variando a intensidade do preconceito em relação proporcional aos referidos traços negroides. Desta forma, uma vez que no Brasil as relações raciais se baseiam no preconceito de marca, quanto mais retinta a pele e mais crespo o cabelo, maior a discriminação e menores as chances de alguém ascender socialmente. Dentro desse espectro de cores e texturas, o racismo e suas tecnologias, criam mais uma camada de opressão: o colorismo.

Alessandra Devulsky[9] aponta que o colorismo, como prática baseada no processo de colonização, significa colocar pessoas racializadas em lugares pré-determinados de subalternidade, num processo de hierarquização racial que é enraizado na ideia de branquitude. As pessoas são então classificadas segundo a quantidade de melanina na pele, segundo seus traços faciais e corporais ligados à africanidade e indigeneidade. Quanto mais a imagem de uma pessoa se distancia do ideal de branquitude, mais ela será inferiorizada tanto no aspecto estético, como intelectual, sendo relegado a ela o espaço da subalternidade e vulnerabilidade. Isso faz que com que as experiências de violência, oriundas do racismo, sejam diferentes para cada pessoa racializada dentre os dois polos demarcatórios: a superioridade branca e a inferioridade do preto.

Lia Vainer Schucman[10] é precisa, quando ressalta que o ponto principal dos debates sobre negritude e políticas públicas é definir quem são os negros e o que é ser negro, com base não só na afrodescendência, mas em mais de um conceito e modo de identificação, de autoria das próprias pessoas negras, além da luta antirracista, a produção cultural ligada à africanidade e tantos outros sentidos produzidos também por elas. Dentro dessa perspectiva, ser uma pessoa negra no Brasil também é assumir seu lugar político no enfrentamento ao racismo e toda a sua gama de estratégias, o que significa que não é possível gozar dos privilégios da passabilidade da pele clara e declarar-se negro por conta da ancestralidade somente quando convém.

Nesse caso, estamos falando da afro-conveniência, termo cada vez mais popularizado, cunhado dentro do movimento negro, e que veio à tona a partir da existência da política de cotas raciais para ingresso nas Universidades e órgãos públicos, e a tentativa de fraude à essa política de reparação. A afro-conveniência ocorre nas situações em que pessoas de pele branca se autodeclaram negras, quando isso pode lhe trazer algo positivo, mas que não se leem e nem são lidas pela sociedade como negras, o que se pode perceber, por exemplo, a partir de uma conversa. São autodeclarações que Adilson Pereira dos Santos[11] considera oportunistas, "de pessoas que socialmente não seriam alvo do racismo", visando a inclusão em políticas públicas destinadas a pessoas negras.

Maria Conceição Lopes Fontoura[12], quando aborda o abuso na autodeclaração, diz que as pessoas afro-convenientes, aquelas que pela miscigenação se tornaram pessoas brancas brasileiras, "tiram a vovó e o vovô do armário", apresentando imagens de seus antepassados sem se sentirem constrangidas por subtraírem oportunidades de quem sofre as reais discriminações num país como o Brasil, pautado no racismo estrutural e institucional e no qual pessoas pretas são mais vulneráveis e minorizadas quanto ao acesso a bens e serviços.

Diante desse quadro, são grandes os desafios a serem enfrentados pela Justiça Eleitoral. A criação de bancas de heteroidentificação racial, para fins de aplicação das políticas públicas de cotas, tanto para financiamento de campanha quanto para contagem em dobro dos votos destinados a pessoas negras, já era uma solução apontada pelas eleitoralistas Bianca Gonçalves e Silva e Emma Bueno[13] em janeiro de 2022, a partir da experiência das eleições da OAB, em novembro do ano anterior. A Comissão de Promoção da Igualdade Racial na Justiça Eleitoral, Coordenada pelo Ministro Benedito Gonçalves, também já apontava, desde seus primeiros debates, para a necessidade de discutir o tema. Durante a Audiência Pública sobre Desigualdade Racial e Sistema Eleitoral, promovida pela Comissão em maio de 2022, o LiderA sugeriu, como forma de evitar as fraudes, que os partidos implantem programas de integridade e constituam bancas de heteroidentificação em suas estruturas internas, auxiliados por uma comissão específica, criada pela Justiça Eleitoral. Nessa oportunidade, o Juiz do TJ-DF e coordenador executivo da comissão, Fábio Esteves, apontou que não obstante a aridez do tema, e tomando o cuidado de não instituir um tribunal racial, a Justiça Eleitoral deve enfrentar a questão, para que não ocorra a desqualificação da ação afirmativa.

A autodeclaração de pertencimento racial é instrumento legal e legítimo para a identificação identitária. No entanto a heteroidentificação ainda se mostra como a atividade complementar mais qualificada para dirimir dúvidas, quando elas existem, levando-se em conta que a discriminação atua no contexto das relações sociais e, por isso, a identidade racial deve ser compreendida não em investigações biológicas, mas no contexto político, cultural e histórico[14].

As experiências de implantação das bancas, nas quais a Justiça Eleitoral pode se espelhar para enfrentar o problema, são muitas. Os partidos políticos, Ministério Público Eleitoral, OAB e demais organizações interessadas, não somente no pleito eleitoral mas também no sucesso da ação afirmativa, devem tomar seus assentos nessa grande mesa de debate, juntamente com o TSE. Mas tão importante quanto a presença desses órgãos, é dar, no decorrer do processo, o devido protagonismo ao Movimento Negro e às pessoas que experienciam a vivência do racismo e sub-representação nas instâncias institucionalizadas de poder.

O Estado tem obrigação de se desvencilhar desse contexto, no qual as instituições públicas são controladas majoritariamente por um grupo racialmente homogêneo e branco e, para isso, se empenhar no sentido de fazer dar certo a política de cotas, como uma das ferramentas para que haja representação adequada dos diferentes grupos de pessoas racializadas nos diversos espaços decisórios.


[1]https://atarde.com.br/politica/eleicoes/acm-neto-e-ana-coelho-se-autodeclaram-pardos-a-justica-eleitoral-1203684

[2] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/08/19/deputados-que-tentam-reeleicao-mudam-de-cor-em-registro-no-tse.htm

[3] BRASIL. Lei nº 3.353 DE 13 DE MAIO DE 1888. Declara extinta a escravidão no Brasil. Rio de Janeiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim3353.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%203.353%2C%20DE%2013,Art. Acesso 21 de set. de 2022.

[4] BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: 1891. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em 21 de set. de 2022.

[5] BRASIL. Lei nº 1 de 1837. Rio de Janeiro: 1837. Disponível em file:///C:/Users/sabri/Downloads/29135-Texto%20do%20artigo-112708-1-10-20120528.pdf. Acesso em 21 de set. de 2022.

[6] MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

[7] HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

[8] NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência sobre a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1, p. 287-308. Nov. 2006. Disponível em https://www.scielo.br/j/ts/a/MyPMV9Qph3VrbSNDGvW9PKc/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 06 de set. de 2022.

[9] DEVULSKY, Alessandra. Colorismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

[10] SCHUCMAN, Lia Vainer. Racismo e Antirracismo: a categoria da raça em questão. Psicologia Política. Vo. 10, n. 19, pp. 41-55, jun. 2010. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v10n19/v10n19a05.pdf. Acesso em 21 de set. 2022.

[11] SANTOS, Adilson Pereira. As cotas raciais no país do futebol, onde muitos pardos são “gatos”. Revista Ensaios e Pesquisa em Educação e Cultura. Vol. 5, n. 9, pp. 4-29, 2020/2. Disponível em http://costalima.ufrrj.br/index.php/REPECULT/article/view/711/956. Acesso em 21 de set. 2022.

[12] FONTOURA, Maria da Conceição Lopes. Tirando a vovó e o vovô do armário. DIAS, Gleidson Renato Martins; TAVARES JÚNIOR, Paulo Roberto Faber. Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS campus Canoas, 2018, pp. 107-139.

[13]  SILVA, Bianca Maria Gonçalves; BUENO, Emma Roberta Palú. Aplicação de ações afirmativas raciais nas eleições: o desafio para implementar cotas raciais e o que as eleições da OAB podem ensinar para o pleito de 2022. Jota. 27 jan. 2022. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/acoes-afirmativas-raciais-eleicoes-27012022. Acesso em 21 de set. 2022.

[14] RIOS, Roger Raupp. Pretos e pardos nas ações afirmativas: desafios e respostas da autodeclaração e da heteroidentificação. DIAS, Gleidson Renato Martins; TAVARES JÚNIOR, Paulo Roberto Faber. Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS campus Canoas, 2018, pp. 215-249.

Autores

  • é mestra em Direito Político pela UFMG. Servidora da Justiça Eleitoral. Integrante da Comissão de Promoção da Igualdade Racial na Justiça Eleitoral. Membra da Abradep.

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