Defesa da Concorrência

Fusões conglomerais: um olhar do antitruste na era digital

Autores

  • Guilherme Mendes Resende

    é PhD pela London School of Economics and Political Science (LSE) economista-chefe do Cade e professor de microeconomia e de análise antitruste do IDP.

  • Victor Oliveira Fernandes

    é conselheiro do Cade; professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) doutor em direito pela USP (Universidade de São Paulo) e especialista em regulação da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).

26 de setembro de 2022, 8h00

As grandes empresas digitais ao redor do mundo, por meio de uma combinação de crescimento orgânico e fusões & aquisições, têm expandido seus negócios para vários produtos e serviços. Por exemplo, o Google iniciou suas atividades como um mecanismo de busca e hoje é um conglomerado global, oferecendo serviços de mapas, pagamentos digitais, e-mails, armazenamento em nuvem, entre outros. A Amazon evoluiu da venda de livros para praticamente todos os bens de consumo e, também, é um estúdio de cinema vencedor do Oscar. Esses são apenas dois exemplos de ecossistemas digitais multiprodutos que têm sido uma tendência nessa era digital (Resende, 2021; Fernandes, 2022).

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Nesse contexto, a aquisição de startups promissoras dentro de um mesmo mercado relevante e em mercados adjacentes (i.e., vizinhos) tem servido para acelerar o desenvolvimento e expansão de novos produtos e serviços. Esse movimento tem feito com que as autoridades antitruste ao redor do mundo examinem cada vez mais negócios envolvendo plataformas digitais que possam ameaçar a remoção de concorrentes nascentes ou potenciais. Temas como killer acquisitions, aquisições de concorrente nascente e concorrente potencial têm sido foco das discussões antitruste ao redor do mundo (OCDE, 2020; Resende, 2021). Nesse sentido, buscaremos discutir neste artigo as abordagens renovadas do poder conglomeral[1] e como elas têm sido incorporadas nas teorias do dano nas análises de fusões e aquisições.

Em seu recente livro intitulado "Direito da Concorrência das Plataformas Digitais", Fernandes (2022) — um dos coautores deste artigo — ressalta que apesar de as fusões conglomeradas terem sido bastante desafiadas nos Estados Unidos, durante as décadas de 1960 e 1970[2], é possível afirmar que, nas últimas três décadas dos dois lados do Atlântico, houve uma grande redução das preocupações da política de defesa da concorrência com a formação de estruturas conglomerais. Atualmente, essas operações tendem a ser endereçadas quase que exclusivamente por teorias de alavancagem vinculadas a estratégias de predação ou venda casada de produtos complementares[3].

Mais especificamente, conforme explicado por Binotto (2018), existem pelo menos quatro teorias do dano desenvolvidas para identificar os danos potenciais decorrentes de operações com efeitos conglomerados, que até hoje, têm sido chamadas a responder às preocupações com efeitos conglomerados, são elas: (i) atuação transversal (reciprocity dealings); (ii) fortalecimento do poder econômico (entrenchment doctrine); (iii) redução substancial da concorrência (subtantial lessening of competition); e (iv) aumento da concentração agregada. Segundo Binotto (2018) dentre essas quatro teorias do dano apresentadas, a primeira (atuação transversal)[4] destaca-se como a principal para análise de efeitos conglomerados, provavelmente, por dois motivos: (a) porque tal teoria representa um aprimoramento incremental da análise antitruste tradicional (i.e., não requer uma revisão completa da agenda e política implementada pelas autoridades antitruste); e (b) porque baseia-se em aspectos mais substanciais que institucionais, facilitando a convergência entre as autoridades estrangeiras (Sokol e Blair, 2001; Sokol, 2007).

As autoridades de defesa da concorrência ao redor do mundo, de maneira geral, entendem que as fusões conglomerais são geralmente pró-competitivas. De fato, conforme reconhecido nas Diretrizes sobre Fusões Não-Horizontais da Comissão Europeia[5], as fusões conglomeradas são geralmente consideradas como tendo efeitos pró-competitivos. Segundo tais diretrizes, em primeiro lugar, as fusões conglomeradas não implicam eliminação de uma restrição competitiva direta ao contrário das fusões horizontais; em segundo lugar, quando os produtos vendidos pelas empresas parte da operação são complementares entre si, a fusão pode trazer benefícios significativos aos consumidores. Isso ocorre porque a demanda de cada produto está inter-relacionada: quando o preço de um produto cai, a demanda do outro aumenta e vice-versa. Como resultado, uma fusão entre produtos complementares fornece à empresa incorporada incentivos para diminuir os preços pós-fusão seguindo o mesmo tipo de mecanismos econômicos que dão às partes incorporadoras incentivos para aumentar os preços de produtos substitutos (como no caso de uma fusão horizontal).

A despeito dessa visão tradicional, no contexto da economia digital, os efeitos conglomerados das fusões e aquisições têm sido reexaminados. Segundo Bourreau e Streel (2019), duas características-chave da economia digital também podem explicar a ascensão dos conglomerados digitais: (i) do lado da oferta, a presença de importantes economias de escopo no desenvolvimento de produtos e serviços digitais; (ii) do lado da demanda, as sinergias de consumo derivadas pelos consumidores ao adotar ecossistemas de produtos/serviços. Essas duas características favorecem o desenvolvimento de amplos portfólios de produtos por players digitais. Portanto, a formação de grandes conglomerados digitais pode ocorrer, dentre outros fatores, pela presença de economias de escopo geradas com a exploração de ativos intangíveis e compartilháveis – por exemplo, dados, algoritmos e, até mesmo, pessoal especializado – que servem de suporte à oferta indistinta de múltiplos produtos em mercados digitais diferentes. Essas preocupações concorrenciais recentes têm sido a fonte para o avanço de teorias do dano na revisão de fusões na Europa como pode se observar nas decisões dos casos Microsoft/Yahoo Search e Microsoft/Skype[6].

Segundo Fernandes (2022), as abordagens renovadas do poder conglomeral digital devem ser integradas na análise antitruste de concorrência dinâmica. Do ponto de vista da inovação, essas economias de escopo exercem importante papel no desenvolvimento de novos produtos digitais. A detenção de ativos compartilháveis e dotados de elevada modularidade faz com seja possível projetar novos produtos a partir de múltiplas oportunidades de combinações de hadwares e softwares (Condorelli e Padilha, 2020; Bourreau e Streel, 2019). Um bom exemplo da exploração de ativos compartilhados e modularizados são os softwares (e.g. sistemas operacionais) e os produtos de hardware da Apple (e.g. chips e processadores), que servem para diversas linhas de produtos, como iPhones e iPads. De maneira análoga, o Google usa a enorme quantidade de informações pessoais coletadas na sua ferramenta de busca on-line para melhorar a qualidade de todos os produtos oferecidos no seu ecossistema (e.g. Gmail e Android).

O fato de empresas de tecnologia utilizarem uma atuação conglomeral para alimentar a concorrência pelo desenvolvimento de novos produtos, a rigor, não é uma novidade na economia digital. Porém, na competição entre as big techs, a exploração das economias de escopo e a atuação de multiprodutos torna-se crucial para que as empresas consolidadas estejam sempre à frente da curva de inovação e fujam ao máximo possível do risco de serem subitamente desbancadas por novas ondas de tecnologia (Lim, 2020; Petit, 2020). Nesse sentido, o controle de ativos-chave proporcionado pela formação de conglomerados pode se tornar essencial para a compreensão da concorrência dinâmica entre plataformas digitais.

Vale destacar que a intervenção antitruste não é simples dentro de uma abordagem dinâmica. A doutrina diverge sobre se a inconclusividade da relação entre estrutura de mercado e inovação é ou não um empecilho superável à apropriação das teorias de concorrência dinâmica na análise antitruste[7]. Reconhece-se que as autoridades enfrentam um trade-off entre a avaliação de eficiências estáticas e eficiências dinâmicas, que são menos mensuráveis[8]. Contudo, a análise antitruste pode fazer investigações específicas do mercado relevante para avaliar mais detalhadamente a dinâmica competitiva de fusões conglomerais, levando em conta aspectos dinâmicos da inovação. Como exposto por Fernandes (2022, p. 230-236), uma teoria do dano de concorrência dinâmica eventualmente aplicável às fusões conglomeradas envolve enxergar a fusão como uma estratégia anticompetitiva da empresa para alterar diretamente a estrutura de mercados digitais interrelacionados, a fim de que a empresa fusionada ocupe uma posição estratégica dentro de um ecossistema digital, de modo que as forças de concorrência horizontal e vertical nos mercados adjacentes se tornem menos intensas.

No Brasil, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) tem avaliado os chamados efeitos conglemerados nas análises de fusões e aquisições. Segundo o estudo de Attayde (2021) — que fez uma análise das operações que trataram de efeitos conglemerados desde o advento da Lei n°12.529/2011 — o Cade analisou 35 atos de concentração, entre 2012 e 2020, em que o tema efeito conglomerado (incluído discussões de poder de portfólio) foi abordado. Desse total, 60% das operações foram aprovadas sem restrições, 11% reprovadas (ou foram arquivadas por perda de objeto) e 29% aprovadas com remédios antitruste. Binotto (2018) salienta, no entanto, que as principais operações avaliadas pela Comissão Europeia, em que preocupações mais relevantes foram identificadas (especialmente nos mercados digitais), não foram objeto de análise pelo Cade, ou seja, a avaliação da atuação da autoridade brasileira certamente fica limitada[9].

Ademais, em uma contribuição sobre efeitos conglomerados para a OCDE, o Cade (2020) salientou que apesar da prevalência da teoria da atuação transversal (reciprocity dealings) para analisar poder conglomeral (incluindo poder portifólio), a autoridade antitruste brasileira vem utilizando diferentes abordagens, apoiadas em teorias como a diminuição substancial da concorrência e a teoria do fortalecimento do poder econômico citadas anteriormente. Nesse tema, a jurisprudência do Cade ainda está se consolidando em relação aos casos de fusões de empresas digitais.

Nesse sentido, a análise concorrencial dinâmica incluindo seus aspectos sobre a inovação deve ser cada vez mais analisada à luz de evidências empíricas e baseadas em teorias capazes de incorporar uma análise mais dinâmica do processo competitivo sem se afastar dos objetivos da defesa do bem-estar do consumidor. Por fim, cabe pontuar que a legislação brasileira de defesa da concorrência está dotada dos instrumentos e medidas apropriadas (como, por exemplo, a análise ex-ante de atos de concentração e a possibilidade de medidas preventivas) para lidar com os desafios que os mercados digitais trazem para a aplicação do direito antitruste.

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Referências bibliográficas:
Attayde, M. C. (2021) Efeitos conglomerados na Jurisprudência do Cade. Revista de Defesa da Concorrência, v. 9 (2), p. 159-187.

Binotto, A. (2018) Efeitos conglomerados em concentrações econômicas: caracterização e desdobramento. In: Jesus, Agnes M. et al. (org.). Mulheres no antitruste. São Paulo: Editora Singular.

Bourreau, M.; De Streel, A. (2019). Digital Conglomerates and EU Competition Policy. Université de Namur e Telecom ParisTech.

Chirita, A. (2020) Data-Driven Mergers Under EU Competition Law. in: The Future of Commercial Law: Ways Forward for Harmonisation, Oxford: Hart Publishing, p. 147–186.

Condorelli, D.; Padilla, J. Harnessing Platform Envelopment in Digital Word. Journal of Competition Law & Economic, v. 16, n. 2, p. 134–187, 2020.

Fernandes, Victor O. (2022) Direito da Concorrência das Plataformas Digitais: Entre Abuso de Poder Econômico e Inovação. São Paulo: Thomson Reuters Brasil.

Ginsburg, D. H.; Wright, J. D. (2012) Dynamic Analysis and the Limits of Antitrust Institutions, Antitrust Law Journal, 78 (1).

Katz, M.; Shelansky, H. (2005) Shumpeterian Competition and Antitrust Policy in High Tech Markets, Competition Journal, v.14.

Lim, Y. (2020) Tech Wars: Return of the Conglomerate ― Throwback or Dawn of a New Series for Competition in the Digital Era? Journal of Korean Law, v. 19, n. February, p. 47–62.

OCDE (2000). Start-ups, Killer Acquisitions and Merger Control – Background Note by the Secretariat.

Petit, N. (2020) Big Tech and the Digital Economy: The Moligopoly Scenario, Oxford: Oxford Univeristy Press.

Resende, G. (2021) Ecossistemas digitais e o antitruste. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-09/defesa-concorrencia-ecossistemas-digitais-antitruste

Sokol, David (2007). Monopolists Without Borders: The Institutional Challenge of International Antitrust in a Global Gilded Age. Berkeley Business Law Journal, v. 4. Berkeley: Berkeley Business Law Journal.

Sokol, D.; Blair, R. (2001) Welfare Standards in US and EU Antitrust Enforcement, p. 2498-2517.


[1] Os efeitos conglomerados são verificados por meio de produtos e/ou serviços em que as empresas ofertam no mercado são complementares ou não relacionados (i.e., não geram sobreposições horizontais ou verticais).

[2] Sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, as autoridades antitruste norte-americanas passaram a enxergar com muita preocupação a emergência de grandes conglomerados empresariais. O Guia de Fusões de 1968 do Departamento de Justiça (DoJ) dos Estados Unidos, passou a contemplar a “deep pocket theory” (teoria do bolso fundo), segundo a qual a autoridade deveria proibir fusões em mercados crescentemente concentrados, tendo em vista o fortalecimento do poder econômico em vários mercados, especialmente em setores oligopolizados.

[3] Pode-se identificar dois tipos de venda casada: tying e bundling. A prática é definida como tying quando o vendedor do produto A (tying product) exige que todos os compradores de A também comprem B (tied product); nesse caso, B pode ser vendido separadamente. No caso do bundling (ou pure bundling), a empresa só fornece os dois produtos em conjunto, ou seja, não há como adquirir em separado.

[4] Na atuação transversal, uma empresa emprega seu poder sobre mercado específico para induzir e/ou alavancar (leverage) sua atuação em outros mercados, especialmente quando se trata de bens ou serviços complementares ou relacionados, por meio de condutas do tipo venda casada (tying e bundling). Entretanto, vale destacar que, práticas de tying ou bundling não são, por si só, anticompetitivas, e podem implicar a oferta de produtos, serviços ou soluções integradas em condições mais valiosas para os consumidores.

[5] Ver parágrafo 11 (e seguintes) das Diretrizes da Comissão Europeia em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:52008XC1018(03)&from=DA .

[6] Ver Chirita (2020) para uma análise sobre a aplicação das terias de efeitos conglomerados nesses precedentes.

[7] Para uma análise desse debate, cf. Fernandes (2022, p. 76-86).

[8] Ver, a esse respeito, Wright e Ginsburg (2012) e Katz e Shelanski (2005).

[9] Exceções são, por exemplo, os atos de concentração “The Walt Disney Company (Brasil) Ltda. e Twenty-First Century Fox, Inc.” (08700.004494/2018-53) e “International Business Machines Corporation – IBM e Red Hat, Inc.” (08700.001908/2019-73).

Autores

  • é economista-chefe do Cade e professor de Microeconomia e de Economia Aplicada à Defesa da Concorrência do IDP.

  • é professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa), doutor em direito pela USP (Universidade de São Paulo), especialista em regulação da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal.

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