Opinião

Necessidade de superação da Súmula 231 do STJ

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26 de setembro de 2022, 13h20

Em 22/9/1999, a 3ª Seção do STJ aprovou a Súmula 231, com o seguinte teor: "A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal". O objetivo deste artigo é questionar os fundamentos dessa construção jurisprudencial, que vem sendo aplicada pelo Judiciário brasileiro há 23 anos.

A referida súmula é juridicamente equivocada desde o seu nascedouro, pois o entendimento de que "circunstância atenuante" não pode levar a pena para aquém do mínimo cominado ao delito partiu de interpretação analógica desautorizada, baseada na proibição que constava no texto original do parágrafo único do artigo 48 CP de 1940 [1], não repetido na Reforma Penal de 1984, ainda em vigor. Ademais, aquele dispositivo disciplinava uma causa especial de diminuição de pena — quando o agente quis participar de crime menos grave —, mas impedia que ficasse abaixo do mínimo cominado. De notar-se que nem mesmo aquele diploma revogado (parte geral) estendia tal previsão às circunstâncias atenuantes, ao contrário do que entendeu a interpretação posterior à sua revogação. Lúcido, também nesse sentido, o magistério de Caníbal quando afirma: "É que estes posicionamentos respeitáveis estão, todos, embasados na orientação doutrinária e jurisprudencial anterior à reforma penal de 1984 que suprimiu o único dispositivo que a vedava, por extensão — e só por extensão — engendrada por orientação hermenêutica, que a atenuação da pena por incidência de atenuante não pudesse vir para aquém do mínimo. Isto é, se está raciocinando com base em direito não mais positivo" [2].

Ademais, naquela orientação, a nosso juízo superada, utilizava-se de uma espécie sui generis de interpretação analógica entre o que dispunha o antigo artigo 48, parágrafo único, do Código Penal (parte geral revogada), que disciplinava uma causa especial de diminuição, e o atual artigo 65, que elenca as circunstâncias atenuantes, todas elas de aplicação obrigatória. Contudo, a não aplicação do artigo 65 do CP, para evitar que a pena fique aquém do mínimo cominado, não configura, como se imagina, interpretação analógica, mas verdadeira analogia — vedada em Direito Penal — para suprimir um direito público subjetivo, qual seja, a obrigatória atenuação de pena [3].

Por outro lado, a analogia não se confunde com a interpretação analógica. A analogia, convém registrar, não é propriamente forma ou meio de interpretação, mas de integração do sistema jurídico. Com a analogia, procura-se aplicar determinado preceito ou mesmo os próprios princípios gerais do direito a uma hipótese não contemplada no texto legal, isto é, com ela busca-se colmatar uma lacuna da lei. Nessa hipótese, que ora analisamos, não há um texto de lei obscuro ou incerto cujo sentido exato se procure esclarecer. Na verdade, equipararam-se coisas distintas, dispositivos legais diferentes, ou seja, artigo revogado (artigo 48, parágrafo único) e artigo em vigor (artigo 65); aquele se referia a uma causa de diminuição específica; este, às circunstâncias atenuantes genéricas, que são coisas absolutamente inconfundíveis; impossível, consequentemente, aplicar-se qualquer dos dois institutos, tanto da analogia quanto da interpretação analógica.

Atualmente, em defesa da Súmula 231 do STJ, sustenta-se que a aplicação da pena do réu aquém do mínimo estabelecido na norma penal, com base no reconhecimento de atenuantes, careceria de embasamento legal, uma vez que o próprio Código Penal já predetermina qual a reprovação mínima de cada delito.

Primeiramente, cumpre ressaltar que o legislador estabelece parâmetros quantitativos das penas como forma de contenção do poder punitivo estatal, e não para subtrair do condenado o direito a uma pena justa e individualizada. Ademais, o argumento de que os limites legais de reprovabilidade de cada delito seriam o núcleo fundante da Súmula 231 do STJ é falacioso, porque o mesmo Código Penal que regulamenta os crimes e atribui as respectivas penalidades, ao tratar das atenuantes, determina no artigo 65: "são circunstâncias que sempre atenuam a pena" (grifos nossos), ou seja, o legislador não condicionou o efeito do reconhecimento da atenuante à existência de uma pena-base superior ao mínimo legal. Poderia tê-lo feito, mas não o fez.

O desiderato do legislador é claro: as atenuantes têm de produzir sempre efeitos na dosimetria da pena, ainda que isso possa significar uma pena (base, provisória ou definitiva) inferior ao mínimo cominado no tipo penal, especialmente quando há agravante a ser considerada no mesmo julgamento. A previsão, definitivamente, não deixa qualquer dúvida sobre sua obrigatoriedade, e eventual interpretação diversa viola não apenas o princípio da individualização da pena, como também o princípio da legalidade estrita.

É irretocável a afirmação de Carlos Caníbal quando, referindo-se ao artigo 65, destaca que "se trata de norma cogente por dispor o Código Penal que 'são circunstâncias que sempre atenuam a pena'… e — prossegue Caníbal — norma cogente em direito penal é norma de ordem pública, máxime quando se trata de individualização constitucional de pena" [4].

Outro grande fundamento para admitir que as atenuantes possam trazer a pena para aquém do mínimo legal é principalmente a sua posição topográfica: são analisadas antes das causas de aumento e de diminuição; em outros termos, após o exame das atenuantes/agravantes, resta a operação valorativa das causas de aumento que podem elevar consideravelmente a pena-base ou provisória.

Outrossim, também razões de ordem teleológica justificam a superação da Súmula 231 do STJ, à medida que viola o princípio da individualização da pena, da isonomia e da proporcionalidade. A aplicação da referida súmula pode implicar padronização da pena, mesmo diante de situações nitidamente distintas, e, portanto, carecedoras de reprimendas diversas, como no caso do seguinte exemplo:

Imagine-se a situação hipotética de dois réus que respondem pelo crime de roubo simples, sendo o réu "A" confesso, com 18 anos de idade, ao passo que o réu "B" tem 25 anos e fundou sua autodefesa na tese de negativa de autoria. Ambos condenados à pena de quatro anos. A reprimenda foi justa para "B", pois os elementos do caso concreto não autorizavam a exasperação da pena. Por outro lado, as circunstâncias inerentes ao condenado "A" justificariam que sua pena fosse inferior à pena de "B". Contudo, justamente em decorrência da Súmula 231 do STJ, as atenuantes previstas no artigo 65, I e III, "d" do CP não foram valoradas.

O exemplo acima escancara ainda outro aspecto inerente à aplicação da Súmula 231 do STJ: a "transformação" do sistema trifásico em sistema bifásico de dosimetria da pena, em franco retrocesso jurídico, com gravíssimo prejuízo à ampla defesa.

Um dos objetivos do processo penal é a descoberta da verdade, sendo ônus exclusivo da acusação a produção (lícita) das provas incriminadoras. Como o Estado tem interesse na justa solução do caso penal, e, por outro lado, o réu goza da prerrogativa da não autoincriminação, o ordenamento jurídico brasileiro tem inúmeros institutos de direito premial fundados justamente no comportamento processual colaborativo do réu, a exemplo da colaboração premiada e acordos de leniência.

A vigência da Súmula 231 do STJ desestimula o papel colaborativo do acusado, pois um réu primário e portador de bons antecedentes não receberá nenhuma vantagem processual caso confesse a prática do crime.

Acrescenta-se ainda que o próprio STJ, em 14/10/2015, editou a Súmula nº 545, com o seguinte enunciado: "quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no art. 65, III, d, do Código Penal". Todavia, o direito do réu resta (injustificadamente) impedido com a vigência da Súmula 231 do STJ.

O reconhecimento de uma atenuante na decisão condenatória (sentença ou acordão), somente para evitar nulidade, mas deixar de efetuar sua atenuação, é uma farsa, para não dizer fraude, que viola o princípio da reserva legal. Seria igualmente desabonador fixar a pena-base acima do mínimo legal, ao contrário do que as circunstâncias judiciais estão a recomendar, somente para simular, na segunda fase, o reconhecimento de atenuante, previamente conhecida do julgador. Não é, convenhamos, uma operação moralmente recomendável, beirando a falsidade ideológica.

Por outro prisma, argumenta-se ainda que o conteúdo da Súmula 231 do STJ atenta contra um processo penal democrático. A princípio, poder-se-ia imaginar um tratamento equânime entre atenuantes e agravantes, sob a perspectiva que as agravantes reconhecidas na segunda fase da dosimetria igualmente não teriam o condão de elevar a pena-base além do máximo legal. Todavia, este argumento não sobrevive na prática forense, pois dificilmente um réu vai ter sua pena-base já fixada no patamar máximo, e por conseguinte, as agravantes presentes no caso concreto vão produzir efeitos na quantidade de pena atribuída ao réu.

A pena-base é fixada com base na análise das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do CP, quais sejam: culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima.

Ademais, o quantum do aumento de cada circunstância valorada como negativa, segundo entendimento pacífico do STJ, apenas autoriza, exceto em situações excepcionais, o aumento de 1/8 da fração da pena, o que já reforça a conclusão de que não é comum a fixação da pena-base no patamar máximo (STJ, AgRg no HC 660.056/SC, rel. min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 28/9/2021, DJe 04/10/2021). Dos apontamentos acima, se delineia uma situação desvantajosa para o réu, qual seja: as agravantes eventualmente reconhecidas sempre vão agravar a pena, ao passo que a existência de atenuantes só terá repercussão jurídica se a pena-base tiver sido fixada acima do mínimo legal.

Importante também realçar que o debate sobre a validade da Súmula 231 do STJ tem relevantes contornos práticos. Imagine-se, por exemplo, uma pena-base cravada no patamar mínimo de um ano de reclusão e não reduzida, mesmo diante do reconhecimento da atenuante da confissão espontânea, e, posteriormente, fixada em definitiva pela ausência de causas de aumento e de diminuição da pena. O prazo prescricional será de quatro anos (artigo 109, V, do CP). Se a pena fosse estabelecida aquém do mínimo legal, a prescrição seria de três anos (artigo 109, VI, do CP).

Enfim, deixar de aplicar uma circunstância atenuante para não trazer a pena para aquém do mínimo cominado nega vigência ao disposto no artigo 65 do CP, que não condiciona a sua incidência a esse limite, violando o direito público subjetivo do condenado à pena justa, legal e individualizada. Essa ilegalidade, deixando de aplicar norma de ordem pública, caracteriza uma inconstitucionalidade manifesta.

A dignidade da pessoa humana é também um parâmetro axiológico-normativo para superação da Súmula 231 do STJ, pois a sua aplicação viola o direito do condenado à pena individualizada e justa, e, por conseguinte, o mantém encarcerado mais tempo que o legalmente necessário.

A conclusão é inarredável: a Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, venia concessa, representa uma intervenção penal ilegítima, pois viola o princípio da legalidade, da isonomia, da individualização da pena, da proporcionalidade e da aplicação obrigatória de atenuantes.


[1] Art. 48. (…)
Atenuação especial da pena
Parágrafo único. Se o agente quis participar de crime menos grave, a pena é diminuída de um terço até metade, não podendo, porém, ser inferior ao mínimo da cominada ao crime cometido.

[2] CANÍBAL, Carlos Roberto Lofego. Pena aquém do mínimo – uma investigação penal-constitucional, Revista Ajuris, Porto Alegre, v.77, p. 82.

[3] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Gral, 28ª, São Paulo, Editora Saraiva Jur, 2022, p. 848.

[4] CANÍBAL, Carlos Roberto Lofego. Pena aquém do mínimo – uma investigação penal-constitucional, Revista Ajuris, Porto Alegre, v.77, p. 82.

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