Acordo das elites

Anistia a Bolsonaro é juridicamente incerta e seria negativa ao Brasil

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26 de setembro de 2022, 7h31

A possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro (PL) ser perdoado por eventuais crimes é juridicamente incerta. Isso porque ele não chegou a ser processado nem condenado. E poderia passar uma má mensagem, de impunidade, à sociedade brasileira e à comunidade internacional. 

Alan Santos/PR
Michel Temer sugeriu uma anistia a Jair Bolsonaro para pacificar o país
Alan Santos/PR

O ex-presidente Michel Temer defendeu que o próximo presidente eleito, em conjunto com governadores e os chefes dos poderes, se disponha a pacificar o país e monte um grande pacto nacional para reconstituir o Brasil. Segundo Temer, isso poderia significar a hipótese de "anistia do passado".

"Quando falo nesse pacto de pacificação, estou imaginando que seria verificado, se houver anistia, o que é anistiável e o que não é. Mas seria um gesto de harmonia no país", afirmou Temer em evento promovido pelos jornais O Globo e Valor Econômico.

Recentemente, Bolsonaro disse que, se não fosse reeleito, "voltaria para casa". Há quem tenha interpretado a declaração como uma solução negociada, ainda que haja a possibilidade de serem abertos processos contra ele por negligência durante a epidemia de Covid-19, por conspiração, devido a questionamentos a respeito da lisura da eleição, ou por esquemas de "rachadinha" em seu gabinete quando era deputado federal — prática pela qual são investigados dois dos filhos do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e o vereador do Rio Carlos Bolsonaro (PL).

Em entrevista ao podcast Flow, o presidente rejeitou a possibilidade de ser beneficiado com uma proposta de emenda à Constituição que desse imunidade a ex-presidentes, garantindo-lhes um cargo público vitalício, como de senador. "Não estou interessado nisso [PEC da anistia], vão falar que eu estou pedindo arrego, 'peidou na farofa'. Não quero essa imunidade", declarou.

Acusados de crimes — exceto dos hediondos e equiparados a estes — podem ser perdoados por meio de anistia, indulto ou graça. A anistia depende de aprovação de lei ordinária pelo Congresso Nacional. O benefício extingue a pena e todos os seus efeitos.

O indulto e a graça podem ser concedidos pelo presidente da República. O primeiro é um benefício coletivo, conferido aos que se enquadrarem nos requisitos estabelecidos pelo decreto. O segundo é individual e depende de provocação (pedido do acusado, qualquer cidadão, conselho de sentença ou Ministério Público). Nenhum dos dois extingue os efeitos penais da condenação, somente impedindo a execução da pena. Assim, os efeitos secundários da pena permanecem. Por exemplo, o réu não volta a ser primário e continua inelegível (se o delito que cometeu tiver tal previsão).

Não há consenso se Bolsonaro poderia receber algum desses benefícios. O indulto e a graça "pressupõem o prévio trânsito em julgado de condenação e ato administrativo devidamente fundamentado, além de respeito aos princípios constitucionais da legalidade e moralidade (artigo 37, caput, da Constituição)", aponta Diogo Malan, professor de Direito Processual Penal da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). E o presidente não é réu nem foi sentenciado.

O jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, destaca que anistia a Bolsonaro também não poderia ser concedida antes de condenação. O constitucionalista afirmou algo semelhante no parecer em que opinou pela inconstitucionalidade da graça concedida pelo presidente ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) após ele ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal, mas antes do trânsito em julgado.

A publicação do decreto de graça previamente ao encerramento do processo penal deixou claro o seu desvio de finalidade, disse Lenio. "Fazemos essa afirmação porque a graça, da maneira que foi concedida, além de impessoal caracteriza indevida ingerência na atribuição do Poder Judiciário dado que sua propositura, antes do trânsito em julgado, tem o condão de transformar a graça em uma espécie de Habeas Corpus repressivo cuja função real é o esvaziamento da competência constitucional do STF".

A ideia de perdoar Bolsonaro por crimes é “um pouco sem sentido”, avalia o professor de Direito Processual Penal da UFRJ Antonio Eduardo Ramires Santoro. Ele não vê como o presidente e seus filhos poderiam ser beneficiados por uma dessas hipóteses de extinção da punibilidade. Sem processo e condenação, não há como conceder a graça. E a anistia teria que ser genérica e abranger todas as pessoas que estivessem na mesma situação fática.

"Eu pergunto: como seria o conteúdo dessa anistia? Anistiar todos que praticaram crimes contra a administração pública (corrupção, por exemplo) ou de lavagem? Porque, perceba, não há como ter precisão sobre qual seria a acusação que recairia sobre a família Bolsonaro sem que houvesse uma denúncia. Então, para que a anistia tivesse o efeito desejado, teria que ter uma grande abrangência", afirma Santoro.

Por outro lado, o professor de Direito Processual Penal da USP (Universidade de São Paulo) Gustavo Badaró entende que, em caso de anistia, o benefício poderia ser concedido antes de Bolsonaro ter sido processado e condenado.

No entanto, Badaró ressalta que "a anistia é para fatos, não para pessoas", embora possa ser aplicada a fatos cometidos por uma "categoria ou grupo de pessoas". "Mas seria difícil que esse grupo fosse 'o ex-presidente e seus filhos'", analisa. Nesse caso, não haveria impessoalidade da lei.

Efeitos políticos
As anistias geralmente destinam-se a crimes políticos, especialmente após ditaduras, e não a crimes comuns, como os que são imputados a Jair Bolsonaro.

"Uma anistia desse tipo pleiteada ou imaginada por Temer envolveria uma pacto social-político, à semelhança do Pacto de Moncloa", afirma Lenio Streck. Ele faz menção ao acordo firmado na Espanha após a ditadura de Francisco Franco, que estabeleceu as bases para a redemocratização do país.

"Mas não há condições políticas no Brasil. Moncloa fazia a transição da ditadura Franco para a democracia. Lá a anistia e acordos correlatos tinham um pano de fundo: o desejo de democracia. Aqui temos uma democracia formal tumultuada, em que a anistia seria apenas mais um arranjo das elites. A clássica antecipação das elites nacionais marcaria mais um tento", diz o jurista, que também é colunista da ConJur.

Os tribunais internacionais de direito humanos, especialmente a Corte Interamericana de Direitos Humanos, veem com maus olhos as autoanistias e não as aceitam nos casos de crimes que representem graves violações a direitos humanos, até porque são crimes imprescritíveis, explica Gustavo Badaró. Porém, ele aponta que não seria uma dessas situações se Lula fosse eleito presidente e concedesse, diretamente ou via Congresso, perdão a Bolsonaro e seus familiares.

"A ideia de anistiar adversário é uma ideia de ser magnânimo. O impacto das anistias, geralmente, é de se fazer um pacto para o futuro. Esquecer os erros dos passados, é olhar para um futuro melhor, sem disputas e ódios, no caso, de vencidos e vencedor", diz Badaró.

Um eventual perdão a Bolsonaro passaria uma imagem negativa à sociedade e à comunidade internacional, segundo Streck e Antonio Santoro.

"Passaria a mensagem de que mais uma vez as elites se acumpliciam. O erro cometido pela Lei da Anistia é ter incluído tortura e abusos. Argentina, Uruguai e Chile processaram e julgaram os militares que abusaram do poder e dos direitos humanos. O Brasil não fez isso. Isso passa uma péssima comunicação à sociedade. O resultado está aí. visível", diz Lenio.

"Um eventual governo Lula, se fizesse ou bancasse uma anistia dos crimes cometidos por integrantes do atual governo (por exemplo, em relação à pandemia) passaria à imagem de que la ley es como la serpiente; solo pica al dezcalsos [a lei é como a serpente; só pica a quem está sem botas, descalço]. E, veja: não estou dizendo que um amplo concerto (com c) não pudesse ser bom. Mas no Brasil concertos desses sempre beneficiam determinados setores. E, ao final, a conta é paga pelo restante da sociedade", completa o jurista.

Já Santoro afirma que o efeito de um perdão a Bolsonaro "seria péssimo". "Não apenas por conta de uma eventual impunidade de Bolsonaro e sua família, mas de todas as pessoas que acabariam beneficiadas por uma medida de tamanha abrangência."

Histórico de perdões
O Brasil tem um histórico de perdões a crimes políticos e cometidos por políticos. O exemplo mais famoso é o da Lei da Anistia (Lei 6.683/1979), editada no período final da ditadura militar (1964-1985). A norma extinguiu a responsabilidade penal de todos aqueles que cometeram crimes políticos e conexos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

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Lei da Anistia perdoou crimes cometidos por agentes da ditadura militar

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil moveu arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 153) contra a norma. A OAB pediu a interpretação da Lei de Anistia conforme a Constituição, para declarar que a anistia concedida aos crimes políticos e conexos não se estendia aos delitos comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos.

Conforme a Ordem, a interpretação dada à norma, perdoando agentes públicos pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, tortura e abusos sexuais, entre outros crimes, contra opositores políticos, contraria preceitos fundamentais da Constituição.

Porém, o Supremo Tribunal Federal, em 2010, considerou a Lei da Anistia constitucional. A Corte considerou que apenas o Legislativo, e não o Judiciário, poderia revisar a norma. Os ministros também concluíram que a vontade do legislador foi a de também anistiar os agentes estatais e, com isso, superar a ditadura militar.

A professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Marcela Miguens afirma, em sua dissertação de mestrado na Uerj, que a interpretação feita pelo STF foi "mais restrita do que a da Argentina, e por isso também, muito menos controversa do que a aceitação irrestrita das disposições internacionais, principalmente em relação à questão da legalidade penal".

A docente ressalta que o Supremo manteve "o entendimento de que os crimes comuns praticados por agentes do Estado, que consistem em flagrantes violações aos direitos humanos também são abarcados pela anistia concedida por meio da Lei 6.683/1979".

A Corte Suprema de Justiça da Nação da Argentina declarou a inconstitucionalidade das leis de anistia, editadas ao fim da ditadura militar (1976-1983). A decisão abriu as portas para condenações de líderes militares, como os ex-presidentes Jorge Videla e Roberto Viola.

"Para agravar a situação, foi o Estado brasileiro condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, dentre outras, dispôs que a lei de anistia brasileira viola dispositivos constantes da Convenção Americana. Isto gerou uma responsabilidade internacional para o Brasil, que deveria encontrar meios para pôr em prática as determinações da Corte", afirma Marcela Miguens em sua dissertação, intitulada A justiça de transição no contexto latino-americano: suas características, fundamentos e uma comparação entre Brasil e Argentina.

Em abril, o STF condenou o deputado federal Daniel Silveira a oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado. Com isso, o Supremo determinou a perda do mandato de Silveira e a suspensão de seus direitos políticos enquanto durarem os efeitos da condenação. A corte entendeu que o parlamentar praticou os crimes de coação no curso do processo (artigo 344 do Código Penal) e tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União (artigo 23 da Lei de Segurança Nacional — Lei 7.170/1973).

No dia seguinte, Bolsonaro publicou um decreto concedendo o benefício da graça (perdão de pena judicial) ao deputado federal. No texto, o presidente determinou que todos os efeitos secundários da condenação também ficam anulados, o que inclui a inelegibilidade, consequência da condenação de Silveira. Com isso, o deputado voltaria a poder ser candidato nas eleições de outubro deste ano.

Para advogados, o decreto por meio do qual Jair Bolsonaro concedeu graça a Daniel Silveira é inconstitucional, pois tem desvio de finalidade e viola a separação de poderes e a independência do Judiciário. Por isso, a norma pode ser contestada no Supremo via ação de descumprimento de preceito fundamental.

Silveira candidatou-se a senador. No entanto, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro cassou o registro de sua candidatura. O tribunal entendeu que o indulto presidencial extingue os efeitos primários da condenação criminal, mas não atinge os efeitos secundários, como a suspensão dos direitos políticos. 

Professor de Direito Constitucional da UFRJ e advogado, João Pedro Aciolly constatou em pesquisa sobre o instituto do indulto que a última vez que um presidente da República concedeu perdão de penas em bases personalistas foi em 1945 — e, ainda assim, não foi um benefício ofertado a um indivíduo.

O Decreto 20.082/1945 beneficiava nominalmente os integrantes das Forças Expedicionárias Brasileiras que lutaram na Itália na Segunda Guerra Mundial — os famosos "pracinhas".

"Desde a Constituição de 1946, os indultos têm sido utilizados apenas como mecanismo de política criminal e controle da população carcerária. Além da natureza geral e abstrata, a tradição estabelecida no Brasil desde a Constituição de 1988 foi a de conceder o benefício ao final de cada ano, daí a expressão 'indulto natalino'", explicou ele.

Na opinião de Accioly, a graça concedida por Bolsonaro a Daniel Silveira apresenta-se como uma afronta ao STF e pode gerar uma crise gravíssima entre os poderes.

"O decreto anunciado por Bolsonaro não tem precedente e soa como um desafio intolerável à autoridade do Supremo Tribunal Federal. Muito provavelmente, a constitucionalidade do decreto será avaliada pelo Supremo. Os capítulos seguintes são imprevisíveis e preocupantes."

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