Opinião

Justiça 4.0: o uso da inteligência artificial no procedimento judicial

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24 de setembro de 2022, 13h42

O avanço da Justiça virtual no Brasil é inequívoco. A informatização do processo judicial foi implementada há 11 anos no antigo Código de Processo Civil de 1973, pela Lei 11.419, de 2006 [1]. Ainda em adaptação, o Judiciário contava com diferentes sistemas em operação, sem comunicação entre si, o que dificultava o trabalho de operadores de direito que atuam em diferentes esferas da Justiça.

Na tentativa de unificar o sistema eletrônico do Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça instituiu em 2013 Processo Judicial Eletronico (PJe), mas nem todos os tribunais aderiram ao sistema unificado, como é o caso do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que utiliza o sistema SAJ, em razão do alto investimento em um sistema que atendesse a todas as demandas do Estado.

Não obstante, em 2015, o atual Código de Processo Civil incorporou a modalidade eletrônica a todos os atos processuais:

"Artigo 193. Os atos processuais podem ser total ou parcialmente digitais, de forma a permitir que sejam produzidos, comunicados, armazenados e validados por meio eletrônico, na forma da lei" [2].

Contudo, a tendência da justiça virtual foi acelerada em razão da pandemia da Covid-19. Como forma de combate à disseminação do coronavírus, os órgãos do poder judiciário suspenderam as atividades presenciais, passando a funcionar integralmente de forma remota, desde os atos processuais, que já tinham respaldo na lei processual brasileira, até as audiências, que passaram a ser virtuais.

Atualmente, a realidade tecnológica dos tribunais brasileiros permite a realização de sustentações orais por gravação em sessões virtuais. No Plenário Virtual da Suprema Corte brasileira, as sustentações podem ser gravadas em arquivo de áudio ou vídeo, e encaminhadas ao tribunal, por meio eletrônico, após a publicação da pauta, desde que até 48 horas antes do início do julgamento. O modelo está previsto na Resolução nº 642/2019, do STF, e se aplica aos julgamentos de agravos internos, agravos regimentais e embargos de declaração.

Por conseguinte, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou aos tribunais brasileiros a adoção das regras do STF, na 355ª Sessão Ordinária do CNJ, realizada no dia 30 de agosto de 2022 [3].

Tendo em vista que o CPC, em seu artigo 196, confere ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a atribuição para regulamentar a prática de atos processuais por meio eletrônico, o órgão vem estabelecendo iniciativas com o objetivo de acelerar a transformação digital no Poder Judiciário.

O Programa Justiça 4.0 foi lançado no contexto da pandemia, fruto de parceria entre o CNJ, o PNud e o Conselho da Justiça Federal (CJF), com apoio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) [4]. O programa tem como objetivo de tornar o sistema judiciário brasileiro mais próximo da sociedade ao disponibilizar novas tecnologias, como a inteligência artificial, e impulsionar a transformação digital do Judiciário para garantir serviços mais rápidos, eficazes e acessíveis [5].

Das medidas previstas pelo programa, já foram regulamentadas o "Balcão Virtual", ferramenta de videoconferência que permite imediato contato com o setor de atendimento de cada unidade judiciária, popularmente denominado como balcão, durante o horário de atendimento ao público [6]; o "Juízo 100% Digital", prevendo que os atos processuais serão exclusivamente praticados por meio eletrônico e remoto por intermédio da rede mundial de computadores [7]; e os "Núcleos de Justiça 4.0", nos quais tramitarão apenas os processos em conformidade com o Juízo 100% Digital, e serão especializados em razão de uma mesma matéria e com competência sobre toda a área territorial situada dentro dos limites da jurisdição do tribunal [8].

De acordo com o órgão, o uso da inteligência artificial (IA) nas etapas formais do procedimento judicial permite que o foco passe a ser uma atividade mais humana, otimizando o trabalho dos magistrados, servidores e advogados, garantindo, assim, mais produtividade, celeridade, governança e transparência dos processos [9].

O desenvolvimento de IA no Poder Judiciário foi o tratado pela Resolução Nº 332, de 21/08/2020, e pela Portaria Nº 271 de 04/12/2020, dispondo sobre a ética, transparência e governança na produção e uso da IA no procedimento judicial. Segundo o órgão, o uso da Inteligência Artificial pode contribuir com a agilidade e coerência do processo de tomada de decisão.

Desde 2020, o CNJ mantém o Sinapses, plataforma nacional de modelos de IA, onde os tribunais disponibilizam modelos para uso compartilhado.

Atualmente, diante da ausência de normas especificas brasileiras quanto à governança e aos parâmetros éticos para o desenvolvimento e uso da Inteligência Artificial, o CNJ considera que deve ser observado o contido na Carta Europeia de Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial em Sistemas Judiciais e seus ambientes [10]. Não obstante, os tribunais deverão observar a compatibilidade com os Direitos Fundamentais.

Segundo levantamento do órgão, feito em junho deste ano, foi apontado expressivo aumento do número de projetos de inteligência artificial no Poder Judiciário em 2022. O então presidente do conselho, ministro Luiz Fux, identificou 111 projetos desenvolvidos ou em desenvolvimento nos tribunais [11].

Na esfera legislativa, tramita o Marco Legal da Inteligência Artificial (PL 21/20), aprovado pela Câmara dos Deputados em março desde ano [12].

O Projeto é pautado nas recomendações da Organização dos Estados para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre Inteligência Artificial, e propõe diretrizes e princípios e orientações para o uso da inteligência artificial no Brasil.

Atualmente, a Justiça Eleitoral utiliza a ferramenta Janus, uma solução de IA que realiza a classificação processual das peças, permitindo que identifique pareceres equivalentes e façam minutas de sentenças com base em pareceres técnicos do Ministério Público [13].

A Justiça do Trabalho também já implementou a inteligência artificial nos tribunais de primeiro e segundo grau. O projeto nomeado Gemini agrupa processos por similaridade de tema [14].

A inteligência artificial também tem sido introduzida nos tribunais na área de atendimento ao público. Sofia, a assistente virtual de atendimento (chatbot) utiliza IA na triagem automática de processos nos juizados especiais do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) [15].

Dentre os projetos de IA nos tribunais, os modelos desenvolvidos para o Processo Judicial Eletrônico (PJe) correspondem a 55%. Um exemplo é o modelo de classificação de processos, que, a partir de uma triagem de dados, classificam demandas similares, possibilitando estabelecer um tratamento uniforme a processos que são similares e atribuir as mesmas decisões àqueles que têm conteúdo idêntico, dando maior consistência e agilidade e aprimorando a prestação jurisdicional.

As inovações tecnológicas no campo da inteligência artificial surgem como solução a um procedimento judicial mais célere, eficaz e menos custoso, e o foco está no uso de ferramentas especializadas em análise de dados, que dispõe de técnicas de estatísticas de modelização para extrair dados históricos e fazer previsões.

Assim funciona as ferramentas de análise preditiva de dados, que se dá com o mapeamento de variáveis dentro do histórico de determinado objeto analisado. Todas as ocorrências sobre um mesmo evento são cruzadas para se estabelecer uma correlação entre elas, e, assim, obter previsões e mapear variáveis.

Na atividade advocatícia, a análise preditiva é um potencial mecanismo para estimar o tempo de julgamento de um processo e a probabilidade de ganho a partir da análise jurisprudencial de determinado tribunal, além de otimizar a estratégia de defesa processual, pela previsão de vantagem de um acordo sobre a seara recursal, por exemplo.

Não obstante, o uso dessa técnica na atividade jurisdicional, como função do Estado, também pode descongestionar o poder judiciário, que sofre com o acúmulo de processos. A realidade da sobrecarga de processos ao poder judiciário fundamenta diversas medidas do poder público, como a remuneração extra a juízes a título de compensação por exercício cumulativo de jurisdição, em razão do acúmulo de distribuição processual.

Por outro lado, devem ser estudadas todas as consequências da implementação de inteligência artificial no procedimento judicial, como a análise preditiva de precedentes, ainda que em procedimento prévio à análise de um juiz.

O Código de Processo Civil brasileiro preconiza, em seus artigos 926 e 927, a observância ao sistema de precedentes, de modo a uniformizar a jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Isso significa que as decisões judiciais de mérito devem estar em consonância com as orientações do tribunal ao qual se vinculam, bem como precedentes, súmulas e enunciados dos Tribunais Superiores, para que o julgamento de casos concretos semelhantes ocorra de maneira uniforme.

Não obstante, o legislador dispõe sobre a necessidade da vinculação entre os precedentes e as circunstâncias fáticas que motivaram sua criação. Dessa forma, o Código de Processo Civil, em seu artigo 927, §§2º a 4º, dispõe sobre mecanismos de superação de precedentes, mediante fundamentação adequada e específica.

O overruling é caracterizado pela alteração do entendimento de determinado Tribunal ou órgão julgador em relação à norma jurídica. A norma jurídica remanesce intacta em seu sentido literal, incidindo a mudança sobre a interpretação que era dada pelo Judiciário.

 A técnica de distinção (distinguishing), por sua vez, permite que o magistrado deixe de aplicar o paradigma em virtude da existência de alguma distinção entre o caso concreto e o precedente. Nessa hipótese, a aplicação do precedente será excluída em razão de determinadas peculiaridades fáticas e/ou jurídicas, mantendo-se o precedente válido e com eficácia vinculante para outros processos. 

Dessa forma, para que seja garantido o tratamento justo e isonômico a todos, é imprescindível, na aplicação do sistema de precedentes, a análise do caso concreto, em seu aspecto individual e subjetivo, em comparação com o caso paradigma que originou o precedente, bem como a revisão dos entendimentos firmados sob a ótica da realidade fática da sociedade.

Assim, para que seja plausível o uso da análise preditiva na aplicação de precedentes, ele deve ser capaz de analisar as situações fáticas do caso concreto, de modo que não acarrete a denominada "distinção ampliativa", que ocorre quando um determinado precedente passa a ser aplicado, por meio de decisões posteriores, a fatos em relação aos quais não tinha a decisão originária feita menção. Nessa situação ocorre uma expansão silenciosa do precedente originário.[16]

Ademais, a concretização de entendimentos jurisprudenciais não deve comprometer revisão dos precedentes, que devem se amoldar à realidade do ordenamento jurídico e aos aspectos socioculturais.

Portanto, em que pese a aplicação uniforme da jurisprudência efetive o princípio da segurança jurídica, o uso de big data na aplicação deve ser amplamente discutido e estudado em seus aspectos técnicos, principalmente na fase decisória do procedimento judicial. É fundamental que o poder judiciário se aprofunde no debate sobre cada ferramenta e cenários decorrentes de seu uso na Justiça para fins de prevenção de riscos e manutenção dos princípios do ordenamento jurídico brasileiro.

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Referências
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 21, de 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2236340. Acesso em: 13/09/2022.

BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro (Lei 13.105, de 2015). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 12/09/2022.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça 4.0: Inteligência Artificial está presente na maioria dos tribunais brasileiros. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/justica-4-0-inteligencia-artificial-esta-presente-na-maioria-dos-tribunais-brasileiros/. Acesso em: 13/09/2022.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça 4.0. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/. Acesso em: 12/09/2022.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Pauta de julgamentos de 30 de agosto de 2022 355ª sessão ordinária. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pauta-suplementar-de-julgamentos-de-30-de-agosto-de-2022-355a-sessao-ordinaria/. Acesso em: 18/09/2022.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 332 de 21/08/2020. Disponivel em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429. Acesso em: 14/09/2022.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 345 de 09/10/2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3512. Acesso em: 12/09/2022.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 372 de 12/02/2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3742. Acesso em: 12/09/2022.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 385 de 06/04/2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3843. Acesso em: 12/09/2022.

Brasil. Lei 11.419, de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11419.htm. Acesso em 12/09/2022.

  BRASIL. Nações Unidas. Pesquisa identifica 111 projetos de inteligência artificial no Judiciário. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/188306-pesquisa-identifica-111-projetos-de-inteligencia-artificial-no-judiciario. Acesso em: 15/09/2022.

  PEIXOTO, Ravi M. Superação do precedente e segurança jurídica Conforme Novo CPC. 2ª ed. rev. amp. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2016.

 


[1] Brasil. Lei 11.419, de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11419.htm. Acesso em 12/09/2022.

[2] BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro (Lei 13.105, de 2015). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 12/09/2022.

[3] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Pauta de julgamentos de 30 de agosto de 2022 – 355ª sessão ordinária. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pauta-suplementar-de-julgamentos-de-30-de-agosto-de-2022-355a-sessao-ordinaria/. Acesso em: 18/09/2022.

[4] BRASIL. Nações Unidas. Pesquisa identifica 111 projetos de inteligência artificial no Judiciário. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/188306-pesquisa-identifica-111-projetos-de-inteligencia-artificial-no-judiciario. Acesso em: 15/09/2022.

[5] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça 4.0. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/. Acesso em: 12/09/2022.

[6] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 372 de 12/02/2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3742. Acesso em: 12/09/2022.

[7] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 345 de 09/10/2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3512. Acesso em: 12/09/2022.

[8] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 385 de 06/04/2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3843. Acesso em: 12/09/2022.

[9] Idem.

[10] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 332 de 21/08/2020. Disponivel em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429. Acesso em: 14/09/2022.

[11] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça 4.0: Inteligência Artificial está presente na maioria dos tribunais brasileiros. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/justica-4-0-inteligencia-artificial-esta-presente-na-maioria-dos-tribunais-brasileiros/. Acesso em: 13/09/2022.

[12] BRASIL Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 21, de 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2236340. Acesso em: 13/09/2022.

[13] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça 4.0: Inteligência Artificial está presente na maioria dos tribunais brasileiros. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/justica-4-0-inteligencia-artificial-esta-presente-na-maioria-dos-tribunais-brasileiros/. Acesso em: 13/09/2022.

[14] Idem.

[15] Idem.

[16] PEIXOTO, Ravi M. Superação do precedente e segurança jurídica — Conforme Novo CPC. 2ª ed. rev. amp. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2016.

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