Diário de Classe

Levando Dworkin a sério: um guia de leitura

Autor

  • Luã Jung

    é graduado em Direito mestre e doutor em Filosofia professor do PPG Direito Unesa-RJ professor convidado da ABDConst membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

24 de setembro de 2022, 8h00

Ronald Dworkin foi um dos mais relevantes filósofos do direito do século 20. Suas críticas ao positivismo jurídico, bem como teses e conceitos tornaram-se paradigmáticos tanto no âmbito da teoria jurídica como na jurisprudência de supremas cortes. Apesar de seu estilo de escrita claro, sem apelo a conceitos filosóficos obscuros, a teoria do direito de Dworkin não deixa de apresentar ideias complexas. Isto ocorre pela própria natureza das questões às quais o autor buscou responder. A cada texto, Dworkin acrescentou uma nova camada teórica aos problemas jurídicos, estabelecendo ou aprofundando a relação do direito com a filosofia política e moral, a hermenêutica ou teoria da interpretação e, nesse sentido, com a epistemologia, bem como com a metaética e a ontologia. Em sua obra póstuma, Religião sem Deus, Dworkin chega a desenvolver considerações sobre a tradição teológica e como esta poderia se relacionar com nossas convicções práticas acerca de problemas éticos, morais e jurídicos.

Tal resgate de problemas filosóficos centrais e ancestrais se justifica, nas palavras do autor, na medida em que a filosofia do direito "não tem um núcleo central próprio de problemas filosóficos, como outros campos da filosofia têm, mas se sobrepõe a todos esses campos" [1]. De acordo com Dworkin, "mesmo o debate sobre a natureza do direito, que dominou a filosofia do direito por muitas décadas, é, no final, um debate da filosofia da linguagem e da metafísica" [2]. Podemos afirmar, nesse sentido, que Dworkin concordaria com a advertência feita pelo professor Lenio Streck, de que é necessário fazer filosofia no Direito.

A trajetória teórica de Dworkin pode ser definida pelo conceito de dialética ascendente, apresentado pelo professor Carlos Cirne-Lima: a partir da conexão entre problemas e teses pontuais, almeja-se atingir a totalidade. "O múltiplo é reduzido ao uno" [3]. A referência a esta ideia nos ajuda a compreender a expansão dos temas abordados por Dworkin desde o início de sua produção bibliográfica. Em seu último livro publicado em vida, Justiça para ouriços, valendo-se da distinção entre o ouriço e a raposa (the fox knows many things but the hedgehog knows one big thing), Dworkin defende a "unidade do valor", ou seja, a ideia de que "a verdade sobre viver bem e ser bom e sobre o que é belo não é apenas coerente, mas suportada mutuamente: aquilo que pensamos sobre qualquer um destes assuntos tem de resistir, no fim, a qualquer argumento referente aos demais que nos pareça atraente" [4]. Esta unidade do domínio valorativo reflete, também, o holismo interpretativo proposto por Dworkin. Holos é a palavra grega para totalidade e, filosoficamente, holismo é a postura teórica segundo a qual a determinação e sentido das partes de um ou mais fenômenos é obtida através de suas relações com os demais [5].

Em termos bibliográficos, o autor inicia a sua vasta produção a partir da obra Levando os direitos a sério, de 1977. Principalmente nos artigos iniciais, modelo de regras I e II, ele desenvolve uma crítica contundente ao positivismo de H.L.A Hart. Nestes textos, Dworkin apresenta teses que até hoje repercutem na teoria do direito e na jurisprudência. Por exemplo, (a) a crítica à discricionariedade judicial; (b) a exposição de padrões normativos distintos das regras e que seriam ignorados pelos positivistas, os princípios jurídicos; (c) a distinção entre estes princípios, de caráter deontológico, em relação às policies, ou seja, argumentos consequencialistas; (d) a apresentação de Hércules, o juiz sobre-humano que serve de ideal regulativo em atenção às exigências da interpretação e aplicação do direito e, por fim, (e) a tese da única resposta correta em casos difíceis.

Estes temas estabeleceram marcos no debate teórico do direito e foram incorporados ou criticados por relevantes autores. Em virtude da notoriedade atingida por tais ideias, o restante da obra, composta por artigos que tratam de problemas políticos como a crítica de Dworkin ao véu da ignorância de Rawls (A justiça e o direito), a desobediência civil ou a defesa do conceito de liberdade positiva, vinculada ao direito à igual consideração e respeito, em detrimento da liberdade negativa, defendida pelos libertários, é, no entanto, praticamente ignorado por leitores e comentadores brasileiros.

A segunda obra que gostaria de indicar é Uma questão de princípio, de 1985. Nela, Dworkin desenvolve em sua primeira parte a ideia de que o direito é um trunfo contra maiorias. Tal postura está conectada com a defesa de Dworkin do judicial review ou, nas palavras do autor, do fórum do princípio. Na segunda parte da obra, Dworkin desenvolve a tese de que o direito, enquanto fenômeno interpretativo, deveria se aproximar de áreas afins, especialmente a literatura. Para Dworkin, a interpretação literária busca pelo propósito das obras. Mas este propósito não se confunde com a empoeirada tese da intenção do autor (Paul Ricoeur chama de falácia intencionalista). Nas palavras de Dworkin, "a interpretação de uma obra literária tenta mostrar que maneira de ler (ou falar, dirigir ou representar) o texto revela-o como a melhor obra de arte" [6]. Ao transpor este modelo para o direito, Dworkin conclui que, no caso jurídico, o propósito que guia a interpretação jurídica é político: ao interpretarem dispositivos, documentos legais ou o próprio sistema jurídico, os juristas justificam suas repostas a partir de certos princípios políticos. A partir do material normativo bruto a ser interpretado, pressupomos certos princípios aos quais este material atenda. Na medida em que tais princípios são explicitados, retornamos aos dados legislativos e aos precedentes e avaliamos se os princípios utilizados justificam a lei e os precedentes da melhor maneira possível. Neste movimento está contido o que chamamos de círculo hermenêutico: a reiterada determinação das partes pelo todo e do todo pelas partes.

No entanto, como afirma Dworkin, "as proposições de Direito não são meras descrições da história jurídica, de maneira inequívoca, nem são simplesmente valorativas, em algum sentido dissociado da história jurídica. São interpretativas da história jurídica, que combina elementos tanto da descrição quanto da valoração, sendo porém diferente de ambas" [7]. Isso nos leva à analogia feita pelo autor entre a interpretação jurídica e o exercício literário do romance em cadeia. Neste exercício, escritores são responsáveis por cada capítulo de um romance, de maneira que a obra como um todo deva ter coerência, como se tivesse sido escrita por apenas um autor. Da mesma maneira, para Dworkin, a interpretação de cada caso concreto do direito deve respeitar a estrutura narrativa estabelecida pelos precedentes. Assim, ao mesmo tempo em que os juízes são responsáveis por realizar a melhor interpretação do direito em cada caso individual, preocupando-se, portanto, com a substância valorativa de suas decisões, esta interpretação deve ser adequada ao sentido previamente conferido pelas decisões institucionais anteriores. Eis o esboço daquilo que o autor chamará posteriormente de Direito como integridade.

Na terceira parte e seguintes de Uma questão de princípio, Dworkin desenvolve a sua concepção de liberalismo político e suas consequências para o debate público norte-americano. O liberalismo político de Dworkin [8] consiste na distinção entre a dimensão moral, deontológica e universal, a partir da qual o Estado deve guiar a maneira como age em relação aos indivíduos, e a dimensão ética, contingente e particular, que consiste nas mais distintas teorias e crenças acerca do bem-viver. A precedência do nível moral em relação ao ético é uma face do princípio da igual consideração e respeito. Na medida em que age por princípios deontológicos e universais, o Estado deixa de se imiscuir em projetos individuais de vida, permitindo, assim, que as distintas concepções religiosas e culturais coexistam nos limites estabelecidos pela tolerância. A igualdade de direitos e a liberdade ética confere, assim, a unidade político-moral em meio à diversidade ética.

O Império do Direito, de 1986, é a principal obra de filosofia do direito de Dworkin, onde os conceitos apresentados em textos anteriores são conectados e desenvolvidos detalhadamente. Para reintroduzir a tese previamente abordada de que a interpretação jurídica gira em torno de um propósito político, o autor desenvolve no primeiro capítulo uma teoria dos desacordos jurídicos. Para ele, o positivismo jurídico padece de um aguilhão semântico, segundo o qual as divergências entre juristas sobre o sentido de uma determinada norma teria por base o nível semântico e os diferentes significados possíveis de um mesmo conceito. A partir da análise de casos, Dworkin revela que os desacordos jurídicos não são apenas linguísticos, mas fundamentalmente desacordos acerca do propósito político ao qual o Direito atende no geral e em cada caso concreto. Mais tarde, o autor afirma, nesse sentido, que "os advogados que discordam sobre a melhor concepção de democracia tendem a discordar, por esse motivo, sobre a melhor interpretação da cláusula de igual proteção ou mesmo do código comercial" [9].

Ao estabelecer a prática jurídica como um fenômeno político e interpretativo (nesse sentido, o capítulo conceitos interpretativos estabelece fortes vínculos entre a teoria da interpretação de Dworkin e a hermenêutica filosófica), o autor reintroduz personagens e figuras como o juiz Hércules e o romance em cadeia para defender a concepção de Direito como integridade, em contraposição ao convencionalismo e ao pragmatismo. A integridade como ideal político que serve de propósito à prática jurídica, nas palavras de Dworkin, "insiste em que as pessoas são membros de uma comunidade política genuína apenas quando aceitam que seus destinos estão fortemente ligados da seguinte maneira: aceitam que são governadas por princípios comuns, e não apenas por regras criadas por um acordo político. […] Os membros de uma sociedade de princípio admitem que seus direitos e deveres não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem, em termos mais gerais, do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam" [10].

Como afirmei, Império do direito é a obra central em que Dworkin reúne elementos prévios de teoria do direito, filosofia política e teoria da interpretação. O livro não é, no entanto, o fim da obra de Dworkin e tampouco das polêmicas geradas por sua argumentação afiada. Nesse sentido, as publicações seguintes, incluindo Domínio da vida (1993), O direito da liberdade: a leitura moral da constituição norte-americana (1996), Virtude soberana: a teoria e prática da igualdade (2002) e A justiça de toga (2008), desenvolvem a interconexão da teoria do Direito com o liberalismo político, tendo como pressuposto a sua teoria da interpretação.

Em sua última obra publicada em vida, Justiça para ouriços (2013), Dworkin faz um esforço de síntese para apresentar a sua teoria integrada, dando ênfase ao tema que transpassa a defesa da interpretação como forma de racionalidade no âmbito das humanidades em geral. Na obra, o autor refina a tese apresentada no artigo Objectivity and truth: you'd better believe it (1996), em que faz instigantes objeções ao ceticismo pressuposto por correntes metaéticas como o emotivismo, expressivismo ou quase-realismo, sem se submeter, no entanto, a qualquer outro "ismo" [11].

Na medida em que redefine conceitos relevantes como o de objetividade e verdade, Dworkin, ao estabelecer a possibilidade de objetividade interpretativa, toma o caminho inverso ao que foi percorrido desde a publicação de Levando os direitos a sério. Se, ao longo de sua vida, o autor partiu de problemas particulares da teoria do direito, passando pela filosofia moral e política, filosofia da linguagem e epistemologia, chegando a questões metafísicas, em Justiça para ouriços o direito surge como o resultado de todos estes níveis teóricos analisados de maneira encadeada.

O Direito é considerado, portanto, como um ramo da moralidade política, entendida, por sua vez, como uma ramificação da moral em sentido geral. Isso significa, em síntese, que os compromissos legais estabelecidos entre o Estado e seus indivíduos representam promessas que conferem a estes um direito político em relação àquele. Em outras palavras, demandamos do Estado, ou da comunidade personificada, o mesmo que das demais pessoas: que seja íntegro em relação às suas promessas.

Encerra-se, assim, a trajetória do ouriço, movendo-se na circularidade holística na qual a interpretação das práticas humanas se dá, na busca pela unidade ante à multiplicidade e infinitude do mundo da vida.

A partir deste texto, gostaria de convidar os interessados na obra de Dworkin para o grupo de estudo Ronald Dworkin — uma introdução, promovido pelo grupo de pesquisa Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos), coordenado pelo professor Lenio Streck. Em sua obra, o professor Streck denuncia a apropriação equivocada da teoria de Dworkin por parte considerável da doutrina jurídica nacional. No sentido em que destaca o professor em diversos textos, a leitura de Dworkin desindexada de questões filosóficas é responsável pelo desenvolvimento distorcido de temas como, por exemplo, os princípios jurídicos e seu papel na teoria da decisão judicial.

Diante deste cenário, Luísa Giuliani e eu, coordenadores desta edição do grupo de estudo, pretendemos, por meio de (re)leituras de Dworkin, proporcionar o diálogo acerca de pontos relevantes de sua obra e, nesse sentido, contribuir para a revisão e aprofundamento de certas pré-compreensões acerca da mesma. Aos interessados, basta solicitar informações a [email protected]. Levemos Dworkin a sério, pois!


[1] Dworkin, Ronald.The philosophy of law.Oxford. Oxford University Press, 1977, p. 1.

[2] Dworkin, Ronald.The philosophy of law.Oxford. Oxford University Press, 1977, p. 1.

[3] CIRNE-LIMA, Carlos. Depois de Hegel: uma reconstrução crítica do sistema neoplatônico. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006, p. 14.

[4] DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 1.

[5] Para uma introdução ao holismo, ver: FODOR, Jerry, LEPORE, Ernst. Holism: A shopper’s guide. Cambridge: Blackwell, 1992.

[6]DWORKIN, Ronald. A matter of principle. London: Harvard University Press, 1985.

[7] DWORKIN, Ronald. A matter of principle. London: Harvard University Press, 1985.

[8] JUNG, Luã. Jung. A Filosofia Política de Ronald Dworkin: Objetividade Moral, Liberalismo Político e Crítica Comunitarista ao Atomismo Liberal. Intuitio, 9 (1), 111-130. https://doi.org/10.15448/1983-4012.2016.1.20512.

[9] DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 133.

[10] DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Harvard University Press, 1986, p. 211.

[11] Ver nesse sentido, texto de minha autoria neste espaço – Filosofia no Direito: teorias do Direito e metaética https://www.conjur.com.br/2021-dez-04/diario-classe-filosofia-direito-teorias-direito-metaetica.

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em filosofia pela PUC-RS (bolsa Capes), pós-doutorando em Direito Público pela Unisinos, professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Unesa, advogado e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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