Opinião

Frustração social, institucionalidade patológica e processo administrativo

Autor

23 de setembro de 2022, 20h32

A vida política de uma sociedade é cíclica e, no caso do Brasil, encontra-se num momento de apuração de haveres. Todos estamos  uns mais, outros menos  às voltas com o balanço entre o que se esperava e o que realmente foi feito pelos ocupantes do poder. Essa avaliação não chega a se submeter à exigência de aproveitamento máximo, pois, por mais habilidade que se possa ter, num cenário complexo, nem todas as variáveis políticas são controláveis e, portanto, nem tudo é exequível [1]. Por isso, inclusive, se diz que democracia é e exige lidar com frustrações. No entanto, a questão é de grau: as falhas são pontuais e, como tais, toleráveis, ou, ao contrário, de tão profundas, chegam a comprometer o saldo do período? Ao se considerar a experiência recente, tal critério leva à constatação de que o País tem tido uma sequência de governos "no prejuízo".

Reprodução
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
Reprodução

Obviamente, os saldos negativos do ciclo atual decorrem, em parte, de fatores conjunturais que não coincidem com aqueles levaram ao déficit do ciclo anterior. Entretanto, nem tudo é conjuntura. Existe uma gama de fatores estruturais que, linearmente, têm dificultado (se não inviabilizado) a execução de bons mandatos. Um deles é a própria ideia de reeleição, pois, segundo o "desabafo" de Fernando Henrique Cardoso, "é ingenuidade imaginar que os presidentes não farão o impossível para se reelegerem" [2]. E, de fato, essa inclinação conduz os políticos à utilização de seus cargos não para realizar o interesse público, mas para se manter no poder, "que, de meio, passa a ser o fim real da sua ação"[3]. Daí as incontáveis práticas não republicanas, que vão do exercício abusivo de competências legais a trocas escusas entre os Poderes e, no limite, a medidas populistas aprovadas a toque-de-caixa para influir nas urnas. Tudo a impedir um debate sincero a respeito do que é melhor para o País e a promoção das mudanças de que todos necessitamos, enquanto sociedade.

Noutras palavras, a forma como o poder se encontra organizado (distribuído) em nosso país favorece a frustração de expectativas legítimas como regra, não como exceção, o que compromete a confiança "dos cidadãos nas instituições políticas e [em] seus representantes" e fragiliza o regime democrático, que, aliás, tem sido posto em xeque [4]— [5]. Nessa "escassez de crédito" para as instituições, os procedimentos democráticos (administrativos, legislativos e judiciais) tornam-se incapazes de legitimar os atos que por meio deles são produzidos, ou seja, de transformar as desilusões, que são inevitáveis, num "ressentimento particular difuso", com a consequente neutralização de conflitos [6]. E essa incapacidade inviabiliza a manutenção de um clima de discordância obediente, isto é, de acatamento "tranquilo" aos atos estatais [7].

Coincidência ou não, parte das expectativas legítimas que continuam frustradas ao término do presente ciclo político diz respeito à reforma tributária e à reforma administrativa, que, além de dependerem de procedimentos estatais democráticos (edição de emendas constitucionais, leis e regulamentos), teriam, elas mesmas, de fazer alterações em matéria de procedimentos, para torná-los mais democráticos, em termos substantivos. Realmente, a mensuração adequada da receita e dos gastos públicos, sem a correção dos mecanismos pelos quais os tributos são exigidos e as decisões estatais são tomadas/discutidas, equivaleria a apenas uma fração das medidas necessárias para colocar o país "no prumo". Afinal, instituições legítimas não só tributam e gastam bem; elas também interagem de modo justo com seus cidadãos e empresas. Daí a necessidade de processos administrativos transparentes, céleres, sujeitos a contraditório e (se o caso) duplo grau, bem como capazes de produzir decisões satisfatoriamente motivadas (CF, artigo 5º, LIV c/c artigo 37). 

É justamente nesse contexto que se insere o recém apresentado Parecer do Senador Federal nº 1 de 2022, elaborado pela Comissão de Juristas para a reforma do processo administrativo (lato sensu) e do processo tributário brasileiro, cujas propostas incluem medidas para dinamizar, unificar e modernizar a legislação sobre procedimentos. O relatório é extenso, sólido e, no geral, ataca problemas importantes do sistema atual, razão pela qual sua aprovação, com ajustes pontuais, pode contribuir para melhorar a forma como o Estado se relaciona com os cidadãos e empresas. Algumas de suas previsões, como a relativa ao instituto da mediação em matéria tributária, por implicarem a criação de algo relativamente sem precedentes no Direito Público pós Constituição de 1988, merecem reflexões mais detidas, que certamente virão. Por outro lado, seriam cabíveis algumas inclusões, sobretudo para que não se perca a oportunidade de solucionar tantos problemas do sistema atual quantos forem passíveis de enfrentamento. Em suma, o conjunto da obra é adequado e digno de se tornar lei. Diante das limitações de espaço inerentes a um artigo, as considerações a seguir ficarão restritas a alguns poucos aspectos considerados sensíveis no que tange à reforma da Lei nº 9.784/99 (processo administrativo).  

O Relatório prevê a inclusão de um §7º no artigo 49-A do diploma, segundo o qual "a anulação de decisão coordenada dependerá da manifestação das mesmas autoridades que a editarem, sob pena de apenas produzir efeitos em relação ao órgão ou entidade que reconheceu sua nulidade". Ocorre, entretanto, que o instituto da decisão coordenada, aquela tomada em conjunto por três ou mais setores/órgãos/entidades do Poder Executivo Federal, sem prejuízo das respectivas competências administrativas originárias, atende ao imperativo de unidade e coerência interna das decisões da Administração Pública. Não fosse assim, ela não seria admitida apenas em situações que tornem a medida justificável pela relevância da matéria e sujeitas a discordâncias prejudiciais ao processo decisório, "com a finalidade de simplificar o processo administrativo mediante a participação de todas as autoridades e agentes" competentes (artigo 49-A, I e II, §1º, 4º).

Nesse sentido, a ideia de que uma das autoridades possa "anular" a decisão coordenada em relação a si mesma, sem afetar as demais, implicaria que um ato conjunto fosse invalidado e sem efeitos para a um autor, mas válido e com efeitos para aos demais (coautores), quando o exercício coordenado de competências administrativas foi deflagrado diante de circunstâncias de fato que, segundo reconhecido pelas próprias autoridades envolvidas, exigiriam atuação coordenada, por coerência / unidade / eficiência. Contudo, como a competência para decisão conjunta é excepcional e condicionada a motivos de fato específicos, a "anulação" do ato não pode ser exercida livremente, como se a autoridade que pretenda realizá-la tivesse atuado sozinha ab initio. A exceção a essa máxima são os casos de incompetência absoluta, em que a autoridade sequer poderia ter se pronunciado sobre a matéria, sozinha ou em conjunto com as demais. Salvo essa hipótese, estando em jogo interesses de terceiros, o ato deve ser preservado em relação a todos os coautores, limitando-se a possibilidade de anulação a um novo ato conjunto ou, em caso de insistência de um dos coautores, à decisão do superior hierárquico imediato aos envolvidos. Por isso, a regra deve ser reelaborada, prevendo-se que a anulação só poderá ser realizada de modo coordenado ou, quando for o caso, pela autoridade imediatamente superior aos coautores (por exemplo, o presidente, para as decisões conjuntas de ministros), mediante decisão motivada e especificação dos efeitos daí decorrentes. Isso, para evitar arbítrios no âmbito da Administração, bem como a judicialização de temas que podem ser resolvidos interna corporis e a criação de passivos para a União, inclusive indenizatórios (CF, artigo 37, §6º).

O Relatório também prevê a inclusão de um artigo 49-H na Lei nº 9.784/99. O caput estabelece, como regra, que "a omissão ou recusa da autoridade" em decidir no prazo legal "transferirá, pelo mesmo prazo, a competência para a autoridade superior". No entanto, em caráter excepcional, o §5º da norma preceitua que, nos processos que impliquem transferência de domínio / serviço público, envolvam atividades lesivas ao meio ambiente e/ou gerem responsabilidade patrimonial ou compromissos financeiros para a Administração, o silêncio da autoridade implica "indeferimento tácito do pedido formulado pelo interessado", passível de recurso, a ser decidido dentro do prazo legal (§6º), sem prejuízo da judicialização da matéria (§7º e §8º). O objetivo pretendido com essa norma é imprimir dinamismo ao processo administrativo, permitindo que, superados os prazos legais, o particular se submeta a um regime definido (indeferimento) e, caso queira, exercite seus direitos pelas demais vias cabíveis (por exemplo, recurso administrativo ou ação judicial).

Entretanto, embora a regra de que o silêncio para além do prazo implica indeferimento realmente possa acelerar as fases iniciais do processo administrativo, sua aplicação às fases seguintes tende a gerar efeitos adversos, dentre eles a transformação das instâncias iniciais em meras instâncias de passagem e o abarrotamento das instâncias seguintes. Além disso, poderão ocorrer situações kafkianas em que o recurso contra o indeferimento tácito na origem seja tacitamente negado na instância final de julgamento. E, sem dúvidas, uma situação como essa violaria direito de petição dos administrados, cuja contrapartida lógica é o seu direito a uma resposta fundamentada da Administração (CF, artigo 5º, XXXIV) [8]. Afinal de contas, isso forçaria o particular, mesmo sem nenhuma resposta / decisão motivada, a ter de assumir a negativa de seu pedido e, em último caso, se socorrer do Poder Judiciário. Além disso, a ideia de indeferimento automático daí decorrente subverte o próprio sentido democrático e republicano do processo administrativo (enquanto instituto), que, de tão ineficaz, passaria a ser simbólico. Por isso, deve-se garantir ao particular o direito a uma posição fundamentada da Administração, pelo menos na fase de recurso administrativo.

Há, ainda, a previsão de um artigo 49-I, segundo o qual, em caso de omissão reiterada da autoridade, qualquer administrado poderá "exigir" a apresentação, pela autoridade superior, de um plano de ação para que o quadro seja sanado. Porém, não são previstas sanções nem para a autoridade superior que deixe de apresentar esse plano de ação, nem para a autoridade inferior que deixe de executá-lo. Com isso, o problema é remetido para a responsabilidade funcional genérica, com os problemas de ausência de enforcement daí decorrentes. Nesse sentido, seria importante especificar consequências às autoridades faltosas, para tornar a norma eficaz, ou, então, suprimi-la, pois sua existência sem eficácia não faz sentido e tende a prejudicar a institucionalidade brasileira, ao invés de fortalecê-la.

Por fim, pretende-se inserir uma norma que faculte à Administração suspender processo administrativo em curso quando houver outros processos administrativos ou judiciais que possam repercutir na decisão a ser tomada nos autos. Entretanto, a  norma deixa de fazer a necessária distinção entre processos judiciais em geral, em relação aos quais sua aplicação "a critério" da autoridade julgadora pode fazer sentido (sempre mediante motivação), e determinadas classes de processos judiciais, como as ações constitucionais e os recursos de caráter repetitivo no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça cujo desfecho possa interferir na solução a ser dada administrativamente ao caso (mesmas questões de direito). Em tais situações, o recomendável seria, até para evitar mobilização desnecessária da máquina administrativa, explicitar que a suspensão do processo administrativo é obrigatória, a menos que, de comum acordo, Administração e administrado optem por prosseguir com a discussão administrativa.

Em suma, o processo administrativo deve ser estruturado de modo tal que, pela forma como ele é instaurado, instruído, processado e julgado, isto é, pelo seu modo "racional" e "justo" de tramitação, as decisões que por meio dele são produzidas sejam consideradas legítimas pelos interessados, no sentido de passíveis de uma "discordância obediente". Por isso, tanto quanto possível, a reforma da legislação aplicável deve ordená-lo para evitar que ele gere situações de absurdidade que levem o cidadão a questionar ou mesmo desafiar autoridade subjacente aos atos por meio dele produzidos. Nesse sentido, apesar de a maioria das alterações à Lei nº 9.784/99 propostas pela Comissão de Juristas se afinarem com esse imperativo, sugerem-se os referidos ajustes, a bem de uma interação mais saudável do Estado com seus cidadãos e empresas.

 


[1] Sobre a "contingência" presente na vida política de uma sociedade, ver: LUHMANN, Niklas. Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral. Petrópolis: Vozes, 2016, p. 167, pp. 322-328 e p. 43.

[2] CARDOSO, Fernando Henrique. Reeleição e crises, 05/09/2020. In: opiniao.estadao.com.br. Acesso em 24/11/2021.

[3] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007, pp. 530 e ss.

[4] BAQUERO, Marcello. Democracia formal, cultura política informal e capital social no brasil. Revista Opinião Pública, v. 14, nº 2, nov/2008, pp. 380-413.

[5] ONU. Relatório das Nações Unidas para o desenvolvimento, 2004, p. 23.

LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Brasília: UnB, 1980, pp. 30 e ss, bem como pp. 95-98.

[7] Idem, p. 34.

[8] RE 1159559, relator ministro Ricardo Lewandowski, j. 19/08/2019.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!