Opinião

Programas de diversidade em escritórios de advocacia: por onde começar?

Autor

  • Lucas Módolo

    é advogado consultor nos temas de Diversidade e Inclusão (D&I) e mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP).

23 de setembro de 2022, 15h03

Muitos escritórios de advocacia iniciaram mobilizações em torno da instituição de programas de diversidade, principalmente para diversificação do quadro de colaboradores, tornando-o mais negro e mais feminino. Os últimos anos têm provocado uma reflexão coletiva a respeito da ausência de representatividade no mercado de trabalho, notadamente o jurídico, que ao longo da história preserva uma estrutura sólida de discriminação, de maioria branca e masculina.

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Apesar da nobre motivação que justifica a instituição de programas dessa natureza no ambiente de trabalho jurídico, avalio a necessidade de amadurecer a metodologia utilizada para esse fim. Na prática, há uma série de escritórios que passaram a criar processos seletivos destinados ao recrutamento de profissionais negros, por exemplo, mas sem que esta movimentação venha acompanhada de discussões sobre o racismo no ambiente de trabalho, o que considero uma tática infrutífera para instituição de diversidade no mundo corporativo.

Este breve artigo tem como propósito apresentar uma sugestão de metodologia para instituição de programas de diversidade nos escritórios de advocacia, de modo a estimular encaminhamentos necessários ao avanço dessas iniciativas. Neste texto, a discriminação racial será utilizada como principal referência teórica e prática, não obstante a maior parte das considerações possa ser aplicada a outras formas de discriminação no Brasil.

Passo 1: elaboração de um calendário
Embora sejam conhecidos os possíveis impactos que uma palestra sobre racismo possa operar na vida de alguns indivíduos, tenho para mim que atividades isoladas não são suficientes para estruturar um programa de diversidade dentro de um escritório de advocacia. Seria ingenuidade pensar que uma palestra sobre um ou outro aspecto do racismo seja capaz de fornecer todo o instrumental para prevenir e solucionar conflitos raciais que possam vir a existir em um escritório de advocacia.

Pensar o compliance antidiscriminatório  isto é, a estratégia de governança corporativa pautada pela diversidade e pelo combate à discriminação  envolve necessariamente um calendário de perspectiva global e permanente, que contemple projetos de conscientização, palestras, formações e outras iniciativas que aproximem os membros do escritório da pauta de diversidade.

Com essa premissa, podemos considerar um bom programa de diversidade aquele que constrói um calendário efetivo, cujo período varia de acordo com a estrutura do escritório e a quantidade de colaboradores nele alocada, mas que demonstre capacidade de instalar a discussão no ambiente de trabalho, preenchidos de atividades periódicas e contando com o envolvimento de uma parcela significativa de interessados. Já um excelente programa de diversidade exige perenidade, de forma que a discussão sobre as desigualdades não esteja mais resumida em uma agenda específica do escritório, mas se ancore no imaginário cotidiano de todo o quadro de colaboradores.

Passo 2: recrutamento
O recrutamento especializado para contratação de mulheres e de pessoas negras tende a ser o primeiro passo idealizado pelas pessoas que demonstram o interesse inicial em debater o tema da diversidade e, em geral, iniciativas dessa natureza nascem a partir da percepção de que o quadro de colaboradores de determinado lugar é majoritariamente branco e masculino. Contudo, nem sempre a proposta de recrutamento vem acompanhada da percepção de que os processos seletivos nesses locais são historicamente enviesados, com direcionamentos que facilitam a contratação de profissionais que já possuem uma entrada facilitada no mercado.

É muito comum, por exemplo, escritórios de advocacia divulgarem chamadas de currículos para ocupação de uma vaga de estágio jurídico indicando como requisitos 1) a graduação em "universidade de primeira linha" e 2) a fluência em uma ou duas línguas estrangeiras. Nesse cenário, existe uma tendência muito grande de o perfil dos candidatos à vaga ser o de uma pessoa branca, com graduação em curso em uma universidade pública, onde a desigualdade racial é conhecida por todos, ou em uma universidade privada cuja mensalidade tende a ser inacessível a pessoas negras, que não eventualmente acumulam a característica de serem pessoas de baixa renda. É ainda recorrente que pessoas negras que ocupam universidades "de primeira linha" também tenham tido a experiência de estudar em escolas públicas durante o ensino básico, onde a experiência com línguas estrangeiras não é priorizada, o que faz com que muitas delas partam para o ensino superior sem ter a fluência no inglês ou o conhecimento em outros idiomas.

A discussão sobre o recrutamento se torna ainda mais crítica quando pensamos que, em geral, os requisitos divulgados para preenchimento de uma vaga são escolhidos considerando a imagem pública que o escritório deseja construir, e não a real demanda para desempenho da atividade jurídica. Parece óbvio, mas só faz sentido exigir a fluência em inglês do candidato quando a falta de domínio da língua representar um real empecilho para a realização das atividades no escritório. Em todas as demais hipóteses, o requisito da vaga pode e deve ser contornado, do contrário, o processo seletivo estará fadado a abraçar candidaturas já conhecidas no mercado jurídico.

Isso tudo deve desembocar na seguinte conclusão: o processo de recrutamento de pessoas negras conduzido por escritórios de advocacia demanda reflexões mais aprofundadas do que simplesmente "escolher" direcionar determinadas vagas para pessoas negras. É preciso que o escritório manifeste a disposição de refletir sobre os aspectos que condicionam mecanismos de exclusão de determinados grupos de seu processo seletivo, para somente então implementar as adaptações necessárias.

Passo 3: ciclo de formações internas focadas em letramento racial
O racismo e o machismo não se esgotam a partir da presença de pessoas negras e de mulheres no ambiente de trabalho. A presença desses sujeitos pode ser capaz de abrir os olhos para perspectivas transformadoras, mas o mote "representatividade importa" só faz sentido quando acompanhado de uma agenda mais ampla, que debata a representatividade (ou sua falta) diante dos fenômenos discriminatórios que atuam para afastar determinados sujeitos de determinados lugares.

E mais: não são raras as experiências de escritórios de advocacia que articulam recrutamentos especializados em corrigir o déficit de representatividade e, em pouco tempo, passam a perceber que seus ambientes estão novamente desiguais. Isso porque, para além da representatividade, o mundo corporativo dedicado ao enfrentamento da desigualdade precisa encarar o racismo impregnado em suas estruturas e manifesto nos comportamentos individuais e coletivos de seus colaboradores, que reproduzem esse fenômeno na forma de socializar, de fazer humor, de opinar sobre determinados conflitos etc.

Desse contexto surge a necessidade de os escritórios de advocacia implementarem ciclos de formações internas sobre o tema das relações raciais, junto de todos os seus colaboradores (ou ao menos, aqueles com uma real disposição de transformar o seu ambiente de trabalho). Garantir que, de forma periódica, as pessoas do escritório tenham a oportunidade de aprender sobre o racismo no Brasil possibilita que o tema esteja presente de forma constante no imaginário de todos e, consequentemente, diminua as chances de o racismo ser reproduzido de forma direta ou indireta naquele espaço.

É de se esperar que muitas das pessoas que ocupam o mundo corporativo não tenham tido a experiência de aprender sobre o tema das relações raciais, uma vez que isso raramente é ensinado no ambiente escolar, na televisão ou nos espaços sociais frequentados por pessoas brancas. Arrisco dizer que muitas dessas pessoas jamais ouviram falar sobre racismo recreativo, identidade negra brasileira, a importância das ações afirmativas e os desdobramentos da tese da branquitude no Brasil. E, sem esse conhecimento, infelizmente o processo de letramento racial será mais longo e tortuoso.

Passo 4: iniciativas pro-bono
Desde o primeiro ano da graduação, é ensinado aos alunos que o Direito representa um potente instrumento de transformação da sociedade, tendo acompanhado os principais acontecimentos ao longo da história. Mesmo diante de grandes referências que corroboram essa visão, parte dos juristas de hoje em dia desenvolveu uma falsa percepção de que escritórios de advocacia não desempenham função significativamente útil para contribuir com a tarefa de superar as assimetrias enfrentadas no país.

Avalio que essa falsa percepção se dá por conta de uma acomodação desse segmento diante das desigualdades enfrentadas na sociedade, o que faz com que a maior parte não queira se arriscar nesse campo, dando maior atenção a temas considerados mais "lucrativos". No entanto, se olharmos atentamente para a maneira como o tema da diversidade e inclusão está se desenvolvendo no último período, é fácil notar que, 1) de uma forma ou de outra, a falta de diversidade em determinado segmento do mundo corporativo tem ocasionado impactos significativos, inclusive financeiros, no âmbito das empresas que não iniciaram os trabalhos dentro desse campo; e 2) toda e qualquer pessoa, seja ela física ou jurídica, tem potencial para contribuir com a transformação social, mesmo a partir de pequenos passos, mas sempre em direção à superação de assimetrias existentes na sociedade.

São muitos os exemplos.

Tive a feliz oportunidade de acompanhar um grande escritório de advocacia que, tendo suas atividades profissionais focadas majoritariamente em temas de direito societário, aproveitou a experiência acadêmica de sua equipe multidisciplinar de advogados para acolher gratuitamente um coletivo formado por pessoas negras que tinha como propósito formalizar sua existência jurídica por meio da edição de um estatuto social.

Também já tive contato com escritórios de advocacia que dedicam suas atividades ao ramo do Direito Penal que, empenhados na defesa das garantias individuais, foram provocados a reservar parte de seus esforços para reverter judicialmente erros cometidos pelo Poder Judiciário brasileiro, que, em geral, faz de refém um número expressivo de pessoas negras e de baixa renda.

Um outro cliente, um escritório de advocacia focado exclusivamente no direito praticado em Nova York, passou a financiar, sem qualquer contrapartida, bolsas de estudos em renomada escola de idioma para estudantes negros de cursos de Direito. Embora o escritório não possa contratar estes jovens como estagiários, visto que o modelo de trabalho por ele praticado não comporta a contratação de nenhuma pessoa que não tenha sido aprovada no Bar Exam New York (exame equivalente ao da Ordem dos Advogados do Brasil), ele estruturou um modelo de programa de diversidade que certamente tem transformado por completo o futuro de pessoas negras, que poderão utilizar este conhecimento na língua estrangeira para disputar vagas em outros escritórios e em suas próprias vidas acadêmicas.

Estes poucos exemplos servem para mostrar que qualquer escritório de advocacia, independentemente de sua natureza ou escopo de trabalho, é capaz de reservar uma parte de seu tempo para promover uma real transformação na sociedade, sem que essa concessão resulte em contrapartida financeira. Basta a obstinação e a criatividade, assessoradas pelo conhecimento nos temas de diversidade e inclusão, e assim todo escritório de advocacia será capaz de desenvolver práticas de interesse público, focando na missão de contribuir com pessoas, grupos, movimentos e organizações que buscam ter impacto social.

Passo 5: mentorias
Por fim, sobretudo para aqueles escritórios de advocacia que desenvolvem um relacionamento mais próximo com os beneficiários do programa de diversidade, é recomendada a adoção de mentorias. As mentorias nada mais são do que um processo de acompanhamento periódico dos beneficiários do programa, com a finalidade de monitorar e avaliar o desenvolvimento do projeto e o nível de aproveitamento do programa pela pessoa diretamente afetada pela iniciativa.

A mentoria serve como ferramenta para potencializar as experiências profissionais e acadêmicas do beneficiário do projeto, visto que, em geral, envolve a aproximação desses sujeitos com profissionais do escritório que possuem um sólido histórico de atuação naquele ou em outros ambientes de trabalho.

O acompanhamento ativo do programa de diversidade por meio das mentorias também representa um excelente exemplo de como as etapas articuladas neste artigo devem caminhar em conjunto. Pensemos no exemplo de um escritório de advocacia que almeja contratar pessoas negras para compor o seu novo quadro de estagiários e, em paralelo ao recrutamento, se comprometem a implementar reuniões mensais de mentoria para garantir que os novos estagiários se sintam confortáveis no ambiente de trabalho. Se o mentor participante da reunião for pouco empático para com o tema das relações raciais no Brasil, pouco saberá lidar com eventuais conflitos que poderão se manifestar no âmbito desses encontros. Ou pior: poderá, na condição de mentor, ser o próprio autor de manifestações preconceituosas e discriminatórias, que trarão um desconforto ainda maior para o estagiário mentorado.

Daí é reforçada a importância da construção de um processo seletivo acolhedor e sensível às vulnerabilidades dos possíveis beneficiários, bem como das formações internas focadas em letramento racial.

Considerações finais
A promoção da diversidade se instalou como tema central em todo e qualquer ambiente de trabalho no país e, por meio dela, é possível garantir sustentabilidade, qualidade reputacional e, o mais importante, a transformação da sociedade, ainda duramente impregnada pela reprodução de desigualdades.

Este artigo teve como propósito apresentar sugestões de metodologia para implementação de programas de diversidade nos escritórios de advocacia, e, para tanto, colocou em questão algumas práticas usualmente desenvolvidas pelas bancas que têm atuado nesta direção. Avalia-se que, por meio da estrutura aqui apresentada, seja possível identificar os problemas e as potencialidades no âmbito de determinados programas de diversidade e inclusão, bem como avançar em ideias ainda não postas em práticas pela maior parte das bancas do país.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP e cofundador do Comitê Antifraude às Cotas Raciais na USP.

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