Opinião

Sociedade Anônima do Futebol: um ano de vigência da Lei nº 14.193

Autor

  • Hugo Leonardo Lippi Areas

    é advogado sócio-diretor da área de inteligência forense e negociação do escritório Medina Guimarães Advogados mestrando em Ciências Jurídicas pela Unicesumar especialista em gestão empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e em Direito Civil Processual Civil e do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

23 de setembro de 2022, 21h33

No último mês, a Lei nº 14.193/2021, que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol, completou um ano de vigência. Nestes poucos mais de 365 dias, a SAF ganhou adeptos de grande relevância no cenário nacional, como o Cruzeiro Esporte Clube e o Club de Regatas Vasco da Gama, ambos disputando a Série B do Campeonato Brasileiro, assim como o Botafogo de Futebol e Regatas, o Coritiba Foot Ball Club, o Cuiabá Esporte Clube e o América Futebol Clube, estes no certame da série A. Outros clubes ainda estudam a possibilidade de adesão ao modelo societário.

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Cruzeiro Esporte Clube, que acabou de voltar à elite do futebol brasileiro
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Os clubes de futebol brasileiros, desde os primórdios, nunca tiveram como característica preponderante uma gestão profissional ou traços de uma estrutura empresarial efetivamente organizada, mas nasceram do amadorismo e se constituíram por intermédio de associações civis, sendo este o modelo societário ainda vigente em inúmeros clubes tradicionais.

O futebol, como noticiam historiadores — sem adentrar às controvérsias quanto ao tema —, teria chegado ao Brasil em 1894, pelas mãos do filho de ingleses Charles Miller, com uma roupagem elitista, caracterizado pelo desporto praticado pela alta sociedade, identificado como um evento festivo, muito mais do que um desporto propriamente competitivo. O futebol amador teria começado a ganhar traços profissionais em 1920, a partir de um movimento em que as fábricas formavam times de futebol com seus operários, atribuindo-lhes salários maiores e outros benefícios em razão da participação nos jogos (VOGEL NETO, 2013, p. 75).

No ordenamento jurídico brasileiro, o Decreto-Lei nº 3.199/1941 ditava os primeiros contornos do profissionalismo, tratando em alguns dispositivos sobre exibições desportivas públicas de profissionais (artigo 32) e entidades desportivas que abranjam desportos de prática profissional (artigo 53). Alguns anos depois, o Decreto-Lei nº 5.342/1943 passou a tratar, ainda de maneira bastante comedida, sobre as relações contratuais dos atletas profissionais. Passadas duas décadas, o Decreto-Lei nº 53.820/1964, trouxe disposições sobre o hoje extinto "passe" do atleta profissional de futebol, atribuindo ao jogador um percentual pela sua transferência a outro clube.

A Lei nº 8.672/1993, denominada Lei Zico, por sua vez, passou a tratar de forma mais incisiva sobre a prática do desporto profissional. Nesta, os clubes eram simplesmente designados como entidade de prática desportiva, tratando-se de pessoas jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos (artigo 10). No caso dos clubes que optassem pelo modelo sem a finalidade lucrativa, nos moldes do artigo 11, precisariam (1) transformar-se em sociedade comercial com finalidade desportiva; (2) constituir sociedade comercial com finalidade desportiva, controlando a maioria de seu capital com direito a voto; ou (3) contratar sociedade comercial para gerir suas atividades desportivas.

A Lei nº 9.615/1998, intitulada Lei Pelé, revogou a Lei Zico, trazendo uma nova e valorosa base principiológica e conceitual com o objetivo de sistematizar, organizar e estruturar o desporto nacional. No que tange à estrutura societária prevista em lei, na redação original, inúmeros dispositivos versavam apenas sobre a constituição de clubes pelo modelo associativo. Apenas com a edição da Lei nº 10.672/2003, que incluiu o §9º no artigo 27, o modelo de sociedade empresária foi expressamente consignado na Lei Pelé. Ainda assim, mesmo após referida alteração, inúmeros dispositivos que posteriormente viriam a ser modificados ainda faziam previsões aderentes ao modelo associativo.

Muito embora a legislação tenha avançado — ainda que timidamente — no que tange à possibilidade de se estruturar um clube de futebol nos moldes empresariais, pouquíssimos clubes acabaram por aderir a esta estrutura. A exemplo disto, dos vinte clubes que disputam o Campeonato Brasileiro Série A, com a exceção de América Mineiro, Botafogo, Coritiba e Cuiabá, que já aderiram à SAF, bem como do clube-empresa Red Bull Bragantino, todos os demais clubes adotam o modelo associativo.

Se no país do futebol a "moda" do modelo empresarial ainda "não pegou", no velho continente este é o padrão que dita os rumos do futebol há alguns anos.

Uma amostra deste contexto é o futebol português. Os patrícios eram adeptos ao modelo associativo sem fins lucrativos, assim como tem-se preponderantemente no futebol brasileiro. No ano de 1995, publicou-se o Decreto-Lei nº 146/95, que acabou por instituir um regime jurídico próprio para as sociedades desportivas, cuja adesão era optativa. Em 1997, editou-se o Decreto-Lei nº 67/97, constituindo a Sociedade Anônima Desportiva (SAD), condicionando os clubes que tivessem o intuito de participar de competições profissionais à adesão de referido regime ou a um regime especial de gestão. Em 2013 expediu-se o Decreto-Lei nº 10/2013, tornando obrigatória a adesão dos clubes portugueses que tivessem o intuito de participar de competições profissionais ao regime da SAD ou ainda à Sociedade Desportiva Unipessoal por Quotas (SDUQ, Lda.), extinguindo o regime especial de gestão anteriormente citado (VEIGA, 2021).

Em um estudo realizado pela Ernst & Young envolvendo as principais ligas europeias de futebol — inglesa, francesa, italiana, espanhola e alemã —, constatou-se que na primeira divisão dos campeonatos nacionais destes países 92% dos clubes adotam o modelo empresarial, sendo 33% dos clubes controlados por estrangeiros, em grande escala americanos ou chineses. Ainda, o estudo aponta que, desde 1990, as receitas dos clubes teriam aumentado de 600 milhões de euros para números entre 1,9 bilhão e 5,8 bilhões de euros (EY, 2021). As últimas décadas testemunharam um processo de mercantilização do futebol mundial sem precedentes. Tem-se, hoje, para além do esporte das multidões, objeto de paixão mundial, um desporto que movimenta cifras incontáveis.

No contexto futebolístico, enquanto desporto de alto rendimento, indubitavelmente os clubes com maior capacidade de investimento têm melhores condições de formar elencos campeões, de proporcionar uma estrutura de qualidade na condução do futebol profissional e na formação de atletas na base, dentre outros aspectos, o que acaba se tornando um círculo virtuoso, considerando que, no cenário de conquistas, o clube valoriza sua marca, aumenta a receita com premiações e direitos de transmissão, consegue explorar patrocínios com maior relevância financeira, alavanca o crescimento de sua torcida, edificando uma estrutura vitoriosa.

Em compensação, os clubes de futebol — especialmente os brasileiros — vêm sofrendo severamente com dívidas impagáveis, provenientes de uma gestão amadora, agravados pela recessão econômica dos últimos anos e, ainda mais, pelos efeitos da pandemia. O endividamento de Atlético Mineiro e Cruzeiro chegaria a R$ 1,31 bilhão e R$ 1,02 bilhão respectivamente (LIMA, 2022).

Considerando este conjunto de fatores, a promulgação da Lei nº 14.193/2021 pode ser uma "virada de chave" para os clubes brasileiros, eis que admite a abertura de capital para a recepção de investidores, proporciona aos times o cumprimento de suas obrigações pelo regime centralizado de execuções ou mesmo pela adesão à recuperação judicial ou extrajudicial (artigo 13), possibilitando o pagamento a longo prazo com a aplicação de deságio, oportuniza a suspensão de medidas constritivas em processos ajuizados em seu desfavor enquanto o clube estiver adimplente com o plano (artigo 23), bem como permite a adesão a um regime diferenciado de tributação, o regime de tributação específica do futebol (TEF), com alíquotas reduzidas (artigo 31 e ss.).

Em contrapartida, alguns fatores podem ser determinantes para que o novo modelo não seja adotado pelos clubes. Estariam os dirigentes abertos à ideia de renunciar a uma gestão caseira — com forte viés político — em detrimento de uma administração realmente profissional, mais voltada à política do que à gestão, nem sempre movidas pelo melhor interesse de seus adeptos? Estariam os clubes prontos para promover sua governança com maior transparência, a instituir os Programas de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE) e a manter estruturas hígidas para alojamento dos atletas em formação, conforme preveem os dispositivos legais?

Não obstante, além destes fatores, existem aspectos de ordem prática que podem afastar a aderência dos clubes ao modelo das SAFs. Não se discute que a adesão ao modelo traz inúmeros benefícios, a exemplo da possibilidade de recorrer ao regime centralizado de execuções ou à recuperação judicial ou extrajudicial (artigo 13). Todavia, nota-se na jurisprudência a interpretação no sentido de que não se faz necessária a adesão ao regime da SAF para que se possa gozar dos benefícios previstos no dispositivo em comento.

O Tribunal de Justiça de São Paulo vem entendendo pela possibilidade de associações civis aderirem ao regime centralizado de execuções (RCE), conforme decisão proferida pelo desembargador Ricardo Anafe, presidente do TJ-SP, nos autos n.º 2049891-87.2022.8.26.0000, envolvendo Sport Club Corinthians Paulista, e nos autos nº 2072297-05.2022.8.26.0000, envolvendo o Santos Futebol Clube. Segundo o desembargador, as entidades se enquadrariam naquelas circunstâncias descritas no artigo 13, inciso I — clube ou pessoa jurídica original — e, neste contexto, fariam jus ao RCE, considerando que, em sua interpretação, a possibilidade de adesão a referido regime não seria exclusividade dos clubes que optaram por se transformar em SAF, estendendo-se estes benefícios também aos clubes associativos.

Ora, uma vez conferido o benefício da adesão ao regime centralizado de execuções ou ao processo de recuperação judicial ou extrajudicial pelos clubes que atuam no modelo tradicional associativo, não necessariamente se submetendo às várias obrigações impostas pela novel legislação, a única vantagem de os clubes aderirem ao modelo SAF seria a abertura de capital para buscar investidores e tentar viabilizar uma administração profissional. Ocorre que os grandes clubes do futebol nacional já contam com fontes de renda que lhes permitem a formação de times competitivos e a manutenção de uma estrutura de primeiro mundo, sem a patente necessidade de buscar grandes investidores com a abertura de capital.

A par de todas estas questões, o fato é que ainda há uma certa desconfiança com a nova proposta societária e sobre quais serão as repercussões práticas após a sua adesão. Ainda é muito cedo para falar sobre o sucesso ou insucesso das SAFs no futebol brasileiro. A grande certeza que se tem é que os clubes que já aderiram ao modelo servirão como um excelente laboratório para a futura tomada de decisão de outras equipes.


Referências:
Estudo da EY traz panorama da gestão dos clubes europeus quanto à transformação em clube-empresa e analisa perspectivas para o Brasil. EY, 2021. Disponível em: https://www.ey.com/pt_br/news/2021-press-releases/01/estudo-da-ey-traz-panorama-da-gestao-dos-clubes-europeus. Acesso em 11 set. 2022.

LIMA, Monique. Atlético-MG, Cruzeiro e Corinthians são os times mais endividados; veja a lista. Forbes. Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-money/2022/05/endividamento-times-brasileiros-2021/. Acesso em: 10 set. 2022.

VEIGA, Maurício Corrêa da. Análise comparada das Sociedades Desportivas: a SAF no Brasil e o contexto europeu. Lei em campo. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/analise-comparada-das-sociedades-desportivas-a-saf-no-brasil-e-o-contexto-europeu. Acesso em: 13 set. 2022.

VOGEL NETO, Gustavo Adolpho. Direito Desportivo: Aspectos Críticos – Origem e Formação dos Clubes de Futebol no Brasil. In: BELMONTE, Alexandre Agra, et. al. (Org.). Direito do Trabalho Desportivo: os aspectos jurídicos da Lei Pelé frente às alterações da Lei nº 12.395/2011. São Paulo: LTr, 2013.

Autores

  • é advogado, sócio-diretor da área de Inteligência Forense e Negociação do Escritório Medina Guimarães Advogados, mestrando em Ciências Jurídicas pela Unicesumar, especialista em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em Direito Civil, Processual Civil e do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

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