Opinião

Tema 1.155 do STF: cancelamento e consequências

Autores

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

  • Rodrigo Nery

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

23 de setembro de 2022, 13h05

Neste artigo pretendemos fazer algumas reflexões acerca do cancelamento do Tema 1.155 do Supremo Tribunal Federal. Manifestaremos, entre outros pontos, algumas preocupações acerca do que estava sendo ali discutido, bem como sobre os reflexos desse debate no que diz respeito ao acesso recursal ao STF (e também STJ).

Não é de hoje que se discute a quantidade (aliado ao pequeno percentual de êxito meritório) de agravos em recurso especial e em recurso extraordinário, que são interpostos em face de decisões locais que inadmitem os recursos de fundo (artigo 1.030, V, §1º c.c 1.042, do CPC) por aspectos formais. Apenas a título de exemplo, vale mencionar aqui a constante incidência prática dos enunciados de Súmula 5/STJ, 7/STJ, 279/STF, 280/STF, 282/STF, 356/STF (reexame de provas/fatos, direito local, falta de prequestionamento etc.) como óbices ao acesso aos tribunais superiores.

Por sua vez, o agravo interno no âmbito dos tribunais locais, interpostos em face de decisões que negam seguimento ao REsp e RE (artigo 1.030, I, a e b, além do §2º) funcionam como poderoso (ainda que polêmico) instrumento para, de um lado, obstar o acesso aos superiores e, de outro, sedimentar o controle e a aplicação de precedentes qualificados.

A própria leitura do artigo 1.030 do CPC nos permite fazer essas assertivas. Lá consta, por exemplo a diferenciação entre negar seguimento (hipóteses dos incisos I e II) e inadmitir (inciso V), inaugurando a possibilidade, no primeiro caso, de interposição de agravo interno, obstando, portanto, o acesso ao STJ ou STF; e, no segundo caso, de interposição de agravo em recurso especial ou extraordinário (artigo 1.042, do CPC), com trânsito recursal junto aos tribunais superiores.

A implementação (e ampliação) do sistema de processos repetitivos, de repercussão geral e, mais recentemente, de relevância da questão federal (advinda da EC 125), nos permite afirmar que, em muitos casos, a última instância recursal é o Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, com óbices à chegada de REsp e RE aos tribunais superiores.

Aliás, em termos procedimentais, parece-nos ser coerente esperar que seja estabelecido, na futura lei que irá regulamentar o instituto da relevância da questão federal,  um diálogo com o CPC, com o objetivo de acrescentar nova hipótese de negativa de seguimento de recurso especial (artigo 1.030, I, a, do CPC) como tratado em texto anterior[1].

Nesse caso, a inserção citada poderá seguir uma dinâmica semelhante à que ocorre com o recurso extraordinário, que pode ter seguimento negado quando afrontar entendimento firmado pelo STF em regime de repercussão geral ou quando versar sobre matéria cuja ausência de repercussão geral já foi reconhecida por esta corte (artigo 1.030, I, a, do CPC), propiciando um aumento na atuação dos tribunais estaduais e regionais no âmbito de agravos internos.

Uma conclusão parcial deve ser feita, para que possamos refletir sobre o objetivo e o cancelamento do Tema 1.150/STF: com a negativa de seguimento relacionado aos casos sem repercussão geral, sem relevância ou em aplicação de tese firmada em RE ou REsp repetivos, o legislador impede a interposição de ARE ou AREsp, sendo cabível agravo interno na própria corte local (artigo 1.030, I, do CPC). A interposição de agravo em recurso extraordinário ao invés de agravo interno permite flexibilizando o teor do enunciado de Súmula 727/STF [2], que o tribunal de origem não encaminhe o recurso (errado) à Corte Suprema [3].

No tema:

"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NA RECLAMAÇÃO. EMBARGOS CONHECIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. ARTIGO 1.024, §3°, DO CPC. AUSÊNCIA DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 727/STF. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – Não usurpa competência do Supremo Tribunal Federal a decisão do Tribunal de origem que não conhece de agravo manifestamente incabível, interposto com base no artigo 1.042 do CPC, para combater decisão a qual aplicou a sistemática da repercussão geral, nos termos do artigo 1.030, I, a, do CPC. II – A Súmula 727/STF é inaplicável em casos como o presente. III – Embargos de declaração conhecidos como agravo regimental, a que se nega provimento". (STF Rcl 31118 ED  2ª Turma  relator ministro Ricardo Lewandowski – J. 31. 05.2019. DJe 10.06.2019).

"AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL. APLICAÇÃO DO TEMA 295 DA REPERCUSSÃO GERAL PELA CORTE DE ORIGEM. INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ARTIGO 1042 DO CPC. NÃO CABIMENTO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA NÃO CONFIGURADA. PET 8.292/SP. PERDA DE OBJETO. REVOGAÇÃO DE TUTELA PROVISÓRIA ANTERIORMENTE CONCEDIDA. INSUBSITÊNCIA DO PARADIGMA DE CONTROLE INVOCADO. 1. Na forma do artigo 1.042 do CPC, cabe agravo em face da decisão singular do Presidente ou do vice-presidente do Tribunal recorrido que não admite recurso extraordinário, excetuados os casos em que fundada a decisão na aplicação de entendimento firmado em regime de repercussão geral. 2. O não encaminhando de agravo em recurso extraordinário manejado contra decisão da Presidência da Corte de origem que aplica a sistemática da geral não configura usurpação da competência desta Suprema Corte, por se tratar de erro grosseiro. Flexibilização da Súmula 727/STF. Precedentes. 3. Insubsistente o paradigma de controle invocado, fica prejudicada a reclamação. 4. Agravo interno conhecido e não provido, com aplicação da penalidade prevista no artigo 1.021, §4º, do CPC/2015, calculada à razão de 1% sobre o valor arbitrado à causa, se unânime a votação". (STF  Rcl 42132 AgR  1ª Turma  relatora ministra Rosa Weber  J. em 23.08.2021 – DJe 27.08.2021).

Aliás, o STJ tem entendimento contrário à fungibilidade entre o o agravo interno e o agravo em recurso especial interpostos contra decisões da vice-presidências dos tribunais locais que apreciam, com fundamentos diferentes, os recursos especiais, configurando erro grosseiro o manejo do recurso incabível e, como consequência, inexistindo a interrupção do prazo recursal [4].

Outro aspecto discutível é se, após o acórdão em Agravo Interno, é possível o manejo de reclamação junto ao tribunal superior, visando controlar a correta aplicação do precedente qualificado que serviu de fundamento para a negativa de seguimento do recurso (artigo 1.030, I, do CPC). A Corte Especial do STJ, ao apreciar a reclamação 36.476 (DJe 6/3/2020), por maioria, decidiu pelo seu não cabimento, entendimento este que não está imune à crítica [5].

Neste momento vale fazer duas indagações: qual o ambiente de debate do Tema 1155/STF? Qual a razão para o seu recente cancelamento?

A primeira indagação, embora pareça simples, provoca muita reflexão: o tema objetivou análise e possível alteração da localização do filtro ligado aos óbices de tramitação recursal, com a ampliação da competência dos tribunais locais visando inadmitir RE em questões que antes eram hipóteses de negativa de seguimento recursal.

O Tema 1.155/STF estava afetado ao ARE 1.325.815, assim intitulado: "Tema 1155 — Inadmissibilidade de recurso extraordinário por ofensa reflexa à Constituição e/ou para reexame do quadro fático-probatório".

Como se pode perceber, o debate travado diz respeito a óbices (ofensa reflexa e reexame de quadro fático-probatório  Súmulas 7/STJ, 279/STF, 280/STF) que atualmente são hipóteses de inadmissão e interposição de agravos em recurso extraordinário (artigos 1.030, V, §1º c.c 1.042, do CPC). Ou seja, se fosse fixada a tema de inexistência de repercussão geral em tais situações, seria transferida para a instância local (tribunais de Justiça e regionais federais), em decorrência da interpretação do próprio STF, um controle maior quanto à utilização dos óbices recursais, significando, na prática, uma significante diminuição das hipóteses de incidência do agravo previsto no artigo 1.042, do CPC.

É que, não obstante as hipóteses objeto do Tema 1.155/STF serem (nos dias atuais) de inadmissibilidade do recurso extraordinário (artigo 1.030, V, do CPC), se elas forem consideradas como situações em que também não haveria repercussão geral na questão recursal, a sua constatação, pela presidência do tribunal local, passaria a ser uma hipótese de negativa de seguimento, pronunciamento este sujeito apenas ao agravo interno no próprio tribunal da origem. Depois do julgamento desse agravo interno, ao menos conforme se adiantou acima, não haveria abertura recursal para os tribunais superiores  sendo passível de análise quanto ao cabimento (ou não) de reclamação.

Contudo, ao cancelar o tema, entendeu o excelentíssimo ministro Luiz Fux (despacho datado de 8/9/2022  DJ de 12.09.2022 — no RE 1.325.815):

"Considerando a relevância e a peculiaridade da proposta de tese no Tema 1.155, a necessidade de aprimoramento no que concerne à eficiência do sistema de precedentes na realidade brasileira, como se observa pela provocação temerária do Poder Judiciário até a 'última instância' para rediscussão de questões já decididas, entendo que a construção de uma tese como a propugnada nestes autos demanda maior reflexão e amadurecimento da comunidade jurídica."

Qual a consequência desse cancelamento da proposta vinculada ao Tema 1.155/STF? Afastamento da alteração da localização do filtro recursal ligado à grande quantidade de casos concretos.

É necessário refletir seriamente sobre o futuro desse filtro de acesso. A tendência, inclusive em razão da recente EC 125, é a ampliação da competência dos Tribunais Locais e a diminuição da chegada recursal aos Superiores. Será que estaríamos no caminho certo?

Todos sabemos a quantidade de situações concretas envolvendo óbices ligados à questão fático-probatória ou mesmo violação reflexa ao texto constitucional. Estas, por estarem sujeitas à inadmissão recursal pelas cortes locais (artigo 1.030, V, do CPC), permitem, pelo menos em tese e na sistemática atual, a interposição do agravo do artigo 1.042, do CPC, e a apreciação (com pouca chance de êxito) recursal pelo tribunal superior.

Contudo, se o tema em questão passasse a consagrar que tais situações não teriam repercussão geral, praticamente impediria a subida de recursos extraordinários ou dos respectivos agravos, ao STF —  considerando que boa parte destes envolvem os óbices em questão —  ampliando a atuação dos tribunais locais na filtragem.

Logo, o debate constante no Tema 1.155/STF pretendia ampliar o filtro ligado a precedente qualificado pautado na repercussão geral que, se negativa fosse, iria transformar os órgãos locais em última instância, aumentado (ainda mais) o óbice de efetivo acesso ao STF.

Nada impede que em futuro próximo este assunto volte a tona. Importante acompanhar o seu desenrolar.


[1] ARAÚJO, José Henrique Mouta e NERY, Rodrigo. Questões sem "relevância": jurisdição cooperada e redefinição de competência. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-ago-22/araujo-nery-ultima-palavra-questoes-relevancia. Acesso em 15.09.2022.

[2] "O Supremo Tribunal Federal tem decidido pela flexibilização de sua Súmula nº 727 nos casos de recursos manifestamente incabíveis, permitindo aos tribunais que não encaminhem ao próprio STF recursos que configurem evidente erro grosseiro, sem que isso importe em usurpação de sua competência. Precedente". AgRg no RO no AgRg no RHC 141534 / RS — relator ministro Humberto Martins — Corte Especial — J. em 22/06/2021 – DJe 25/06/2021.

[4] ARE no RE no AgRg no AREsp 1128.907/RS — relator ministro João Otávio de Noronha — Corte Especial — J. em 7/11/2018, DJe de 20/11/2018.

[5] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Se reclamação não é admitida, como recorrer de decisão sobre precedente qualificado? Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jun-11/artx-jose-mouta-mandado-seguranca-reclamacao-instrumentos-visando-aplicacao-precedentes-qualificados. Acesso em 08.09.2022.

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    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), doutor e mestre (Universidade Federal do Pará), professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), procurador do estado do Pará e advogado.

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    é doutorando e mestre em Direito pela UnB, com ênfase em Direito Processual Civil, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito, bacharel em Direito pela UnB, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Processual Civil da UnB (GEPC-UnB) e membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

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