Opinião

Acordo de não persecução penal e o Supremo Tribunal Federal

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22 de setembro de 2022, 13h06

O Supremo Tribunal Federal vai julgar o Habeas Corpus nº 185.913, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, no qual se discutem dois pontos relevantes sobre o acordo de não persecução penal (ANPP), introduzido no processo penal pela Lei Anticrime (Lei 13.964/2019). Primeiro: o ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no artigo 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado? Segundo: é potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo?

O remédio constitucional foi afetado pelo relator ao Pleno da Corte Suprema em razão da relevância da matéria em termos de segurança jurídica e previsibilidade das decisões. Trata-se de postura adotada pelo Supremo Tribunal em casos pontuais, no quais têm se utilizado do habeas corpus para resolver questões penais, processuais penais e execução penal de grande relevo para a sociedade ainda que em um processo meramente individual, permitindo a formação de teses que orientarão o Poder Judiciário. Isso ocorreu no HC 166.373 (ordem das alegações finais); RHC 163.334 (criminalização do não recolhimento do ICMS); e HC 176.473 (interrupção da prescrição pelo acórdão em segundo grau), mostrando-se uma tendência importante de pôr fim às divergências de entendimento pelas instâncias superiores de forma mais célere, mormente porque o recebimento dos writs costuma ser mais rápido que ações de controle concentrado de constitucionalidade e/ou recursos extraordinários.

Nesse sentido, a doutrina tem alertado para o fenômeno de que os grandes debates dos últimos anos nas ciências criminais ocorreram em sede de Habeas Corpus [1] e não em controle concentrado de constitucionalidade ou nas vias recursais devidas, o que reforça o papel do instrumento processual, voltado precipuamente às discussões individuais, para formação de precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal [2], que serão estendidos a diversas outras situações similares.

O Habeas Corpus referente ao ANPP já foi incluído em pauta virtual e física anteriormente, tendo tramitado sem julgamento desde 2020 por conta de adiamentos decorrentes de outros julgamentos relevantes na Corte Suprema. Esperava-se o julgamento do processo no dia 21 de setembro, no entanto, a presidente da corte excluiu o caso da pauta disponibilizada, não existindo, até o momento, definição sobre a nova data.

Para fins de melhor compreensão do assunto, existem posições importantes no âmbito do Superior Tribunal de Justiça [3] e da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal [4] para orientar o debate iniciado na doutrina [5], entendendo-se pela retroatividade do acordo quanto aos fatos praticados antes da Lei 13.964/2019, desde que não recebida a peça acusatória. Em linhas gerais, a retroatividade do dispositivo foi limitada à etapa processual da admissibilidade da acusação.

Por outro lado, o momento e necessidade da confissão também foi discutido [6], existindo precedente recente do Superior Tribunal de Justiça acerca da etapa processual [7] e que poderá colaborar com a discussão.

Nesse contexto, a questão jurídica posta é relevante porque define, finalmente, duas controvérsias ainda pendentes de exame quanto ao ANPP, apesar de aproximadamente três anos de experiência com o instituto. É inegável que a justiça penal negociada é realidade consolidada no ordenamento jurídico, pois com ao ANPP grande parcela das infrações penais existentes pode ser objeto de negociação entre as partes. Por isso, interpretações mais ampliativas quanto ao emprego do acordo devem ser adotadas e valorizadas pelo Poder Judiciário, com o escopo de estimular medidas despenalizadoras.

Dito isso, dois fatores merecem ser levados em consideração pela Corte Suprema: 1) a população carcerária (mais de 900 mil presos [8]), que pode ser diminuída em razão do aumento de ANPP formalizados e não aplicação das penas privativas de liberdade; 2) incentivo ao ANPP com o propósito de redução de custos do Ministério Público e Poder Judiciário, buscando maior eficiência e celeridade do sistema de justiça criminal, além da destinação de recursos para o julgamento de casos selecionados a partir da política criminal adotada pelos órgãos públicos.

Ainda que sem data de julgamento, a expectativa é que o Supremo Tribunal Federal defina em breve e de uma vez por todas pela retroatividade do ANPP, ante o seu caráter de norma processual penal mista, bem como entenda como desnecessária a confissão prévia para formalização do ajuste entre as partes do processo penal.

Portanto, a apreciação do tema é urgente e merece apreciação da mais alta corte do país com a celeridade devida diante do impacto que a decisão poderá causar ao sistema de justiça criminal.

 


[1] Sobre a importância do habeas corpus na história do sistema judiciário do país, ver: TORON, Alberto Zacharias. Habeas corpus: controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

[2] GALVÃO, Danyelle. Precedentes judiciais no processo penal. São Paulo: Editora Juspdovm, 2022, p. 218.

[3] (…) O dispositivo que regulamenta o acordo de não persecução penal não é norma penal, mas, sim, processual, com reflexos penais, uma vez que pode ensejar a extinção da punibilidade. Nessa linha de intelecção, não é possível que se aplique com ampla retroatividade norma eminentemente processual, que segue o princípio do tempus regit actum, sob pena de se subverter não apenas o instituto, que é pré-processual e direcionado ao investigado, mas também a segurança jurídica. (…) – Agravo regimental não provido. (AgRg no HC nº 722.434/GO, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 6/9/2022, DJe de 13/9/2022.).

[4] DIREITO PROCESSUAL PENAL. SEGUNDO AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRARDINÁRIO. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. RETROATIVIDADE. DENÚNCIA JÁ RECEBIDA. INAPLICABILIDADE. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. O acordo de não persecução penal "instituído pela Lei nº 13.964/19 esgota-se na fase pré-processual, não incidindo em casos em que, como o presente, já ocorreu o oferecimento da denúncia" (ARE 1.293.627-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli). Precedente. 2. Agravo interno a que se nega provimento. (RE 1.339.284 AgR-segundo, relator(a): ROBERTO BARROSO, 1ª Turma, julgado em 11/11/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-236 DIVULG 29-11-2021 PUBLIC 30-11-2021)

[5] DAGUER, Beatriz; SOARES, Rafael Junior. A necessidade de confissão para formalizar o acordo de não persecução penal. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-02/soares-daguer-necessidade-confissao-anpp. Acesso em: 21 set. 2022.

[6] Ver: VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Acordo de não persecução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 86-92. de DAGUER, Beatriz. SOARES, Rafael Junior. O momento da confissão e o acordo de não persecução penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-05/opiniao-momento-confissao-acordo-nao-persecucao-penal. Acesso em: 21 set. 2022.

[7] (…) 2. A ausência de confissão, como requisito objetivo, ao menos em tese, pode ser aferida pelo Juiz de direito para negar a remessa dos autos à PGJ nos termos do art. 28, § 14, do CPP. Todavia, ao exigir a existência de confissão formal e circunstanciada do crime, o novel art. 28-A do CPP não impõe que tal ato ocorra necessariamente no inquérito, sobretudo quando não consta que o acusado – o qual estava desacompanhado de defesa técnica e ficou em silêncio ao ser interrogado perante a autoridade policial – haja sido informado sobre a possibilidade de celebrar a avença com o Parquet caso admitisse a prática da conduta apurada. 3. Não há como simplesmente considerar ausente o requisito objetivo da confissão sem que, no mínimo, o investigado tenha ciência sobre a existência do novo instituto legal (ANPP) e possa, uma vez equilibrada a assimetria técnico-informacional, refletir sobre o custo-benefício da proposta, razão pela qual o fato de o investigado não ter confessado na fase investigatória, obviamente, não quer significar o descabimento do acordo de não persecução? (CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal à luz da Lei 13.963/2019 (Pacote Anticrime). Salvador: JusPodivm, 2020, p. 112) (…) (HC nº 657.165/RJ, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 9/8/2022, DJe de 18/8/2022.).

[8] FERNANDES, Maíra. Brasil chegou a mais de 900 mil presos durante a Covid-19. ConJur. https://www.conjur.com.br/2022-jun-08/escritos-mulher-sistema-prisional-durante-covid. Acesso em: 21 set. 2022.

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