Opinião

STF no julgamento da Lei de Improbidade: pressa como inimiga da perfeição

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  • é sócia fundadora na PGD Sociedade de Advogadas mestranda em Direito Processual Civil pela USP e pós-graduada em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP-Cogeae).

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22 de setembro de 2022, 7h03

Nos últimos anos muito se discutiu sobre a modificação da Lei de Improbidade Administrativa (8.429/1992), que em 2 de junho completou seus 30 aniversários.

Ao longo de sua vigência, a LIA teve poucas mudanças em seu texto original. No entanto, uma alteração bastante polêmica foi a Medida Provisória 1.984-16, de 2000, que semelhante ao que acontece no Processo Penal, estabelecia um rito "pré-processual" de defesa prévia. Na época muito se discutiu sobre a previsão que acabou se consolidando ao menos até a Lei 14.230/2021, que extirpou a previsão da defesa preliminar.

A principal (e relevante) mudança ocorreu somente em 2021, em um momento político tenso, após uma verdadeira caça às bruxas pelo Judiciário, Ministério Público e órgãos de controle, decorrente das operações como a "lava jato".

Dentro desse contexto, a modificação da lei trouxe muita discussão sobre a intenção dos legisladores, os quais eram constantemente alvo desse tipo de ação, com matérias bastante sensacionalistas sobre os riscos da reforma legislativa. Contudo, muitas das mudanças proposta na legislação partiram não só de entendimentos consolidados pelos Tribunais Pátrios, como ainda em decorrência da positivação, após 1992, de outras normas que disciplinam questões semelhantes às que eram tratadas na LIA, como, por exemplo, a própria Lei Anticorrupção que traz em sua disciplina a positivação de penalizações civis por atos de corrupção.

A principal premissa para qualquer jurista que estude ou atue com Improbidade é a base de que ela difere da ilegalidade: nem todo ato ilegal é em si um ato ímprobo. O ato de improbidade é aquele que decorre de uma conduta voltada ao cometimento de práticas que, com dolo, culminem em enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário e/ou violem os princípios da administração pública.

Sempre teve que se avaliar a intenção daquele que cometeu o ato para se aferir a presença ou não do ato ilegal qualificado para fins de reconhecimento da improbidade administrativa e esse foi um dos principais temas positivados pela Lei 14.230/2021.

E como era de se esperar, esta como outras modificações legais já são objeto de decisões judiciais pelos tribunais brasileiros, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal que, para além de reconhecer a existência de repercussão geral sobre a matéria, enfrentará ADIs sobre alguns dos dispositivos legais.

Entre os dias 3 e 18 de agosto, o STF julgou o Tema de Repercussão Geral 1.199, a partir do julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo 843.989, considerando a repercussão geral reconhecida em 25/2/2022, ou seja, o julgamento se deu de forma expedita.

Neste primeiro julgamento realizado sobre as reformas legislativas, limitado aos temas que eram debatidos no recurso extraordinário que originou a repercussão geral, o julgamento teve como base central a aplicação (ou não) do princípio da retroatividade da norma, tanto sobre o aspecto dos atos culposos, como da questão prescricional.

A discussão surgiu em decorrência da inexistência de um dispositivo legal expresso que trate da possibilidade de aplicação retroativa da Lei aos casos já julgados e aos casos em andamento.

Apesar de pouco se discutir que, de fato, a lei de improbidade engloba o direito administrativo sancionador, o que é expresso hoje pelo parágrafo 4º ao artigo 1º da lei, tal posicionamento passou a consolidar a defesa da retroatividade da norma com fulcro no direito penal, que assegura a retroatividade da norma mais benéfica ao acusado.

Assim, se no direito sancionador penal cabe a aplicabilidade do instituto, da mesma forma este deve ter espaço também no direito administrativo sancionador, de forma a atingir os atos ímprobos praticados antes da vigência da reforma legislativa naquilo que beneficie ao acusado.

É importante mencionar que o próprio STF, quando apreciou o tema da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário, estabeleceu que ocorreria a prescrição nos casos de ilícito civil, mas não nos casos de improbidade administrativa dolosa (Tema 666), de forma que reconhecia que a lei de improbidade era espécie de ilícito civil vinculado ao direito sancionador. Contudo, e acredita-se, pautado nesse clamor social em tempos de corrupção e as críticas realizadas pelo possível "esvaziamento" da Lei de Improbidade, que, na prática, somente seria aferível empiricamente após alguns anos de sua vigência, o STF, em 18 de agosto, concluiu o primeiro julgamento que trata da reforma legislativa de 2021, criando entendimento "vinculante" sobre a retroatividade da norma aos casos em andamento e aos casos já julgados.

Pode-se dizer que uma das principais críticas sobre a reforma legislativa foi a "revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa". Aqui, importante mencionar que das três modalidades de atos de improbidade administrativa previstos na legislação  artigo 9, que causam enriquecimento ilícito, artigo 10 que causam danos ao erário e, artigo 11, que violam os princípios da administração pública , somente no caso do artigo 10 a legislação expressamente trazia a modalidade de "culpa" em seu caput, o que já não existia para as hipóteses dos artigos 9 e 11.

Com relação ao artigo 10, não eram raras as decisões judiciais que expressamente indicam que a culpa não seria simplesmente para os casos de negligência, imprudência e imperícia: ela seria uma culpa qualificada, o ato praticado com má-fé, inclusive a partir da própria impossibilidade de responsabilidade objetiva para os atos de improbidade administrativa.

Ainda assim, a exclusão do termo culpa do caput da legislação trouxe a discussão sobre a existência de um verdadeiro abolitio criminis e, assim, a retroatividade da norma para os casos em julgamento ou já julgados em que reconhecida a culpa para fins de condenação. Sobre o tema, em votação não unânime foi apreciada a aplicabilidade da nova disposição aos casos já transitados em julgado e aos casos ainda em andamento, sendo que a maioria votou pela irretroatividade da norma para os casos já transitados em julgado e pela retroatividade da norma para os casos em andamento.

Isso significa dizer que, quem foi condenado com decisão final transitada em julgado deverá cumprir as penalidades aplicadas, sem direito de ter sua pena revista, por exemplo, por uma ação rescisória ou, como já havia sido suscitado por alguns, a exclusão das penalidades ao ensejo do pedido de cumprimento de sentença.

Quem foi condenado ou está sendo processado com fulcro no artigo 10, com indicação de cometimento de ato culposo, poderá ter eventual decisão revista, bem como a extinção do processo pela extinção da penalidade. Ou, poderá também ter a decisão reformada para reconhecer a presença de dolo do agente, a depender dos limites da ação proposta e a existência de recursos pelas partes.

Não se sabe o efeito desta recente decisão para os processos em curso (assim como não se conhecia os efeitos da própria reforma legislativa), pois desconhecemos pesquisas empíricas que apontem as ações de improbidade em curso, seus fundamentos, ou mesmo se a modalidade culposa então existente antes da reforma ensejava na prática um volume de condenações.

O que se sabe até o momento é que qualquer pessoa ou empresa condenada com fundamento na existência de culpa que o processo tenha transido em julgado as vésperas da legislação, a princípio não terá direito a ter sua penalidade afastada pelo reconhecimento da irretroatividade da norma em uma decisão não unânime proferida pelo STF.

No que diz respeito ao tema da prescrição, a legislação, para além de majorar o prazo prescricional de cinco para oito anos, criou uma hipótese de prescrição intercorrente, com diversos marcos temporais capazes de suspender e interromper a prescrição nas ações. A prescrição intercorrente não é uma novidade na legislação brasileira, existindo tanto para os processos criminais, como para os casos de execução fiscal.

Por seu histórico de longos anos de tramitação, a positivação da prescrição intercorrente para as ações de improbidade busca atribuir celeridade aos processos, o que é um princípio constitucional assegurado a todos os cidadãos, mas pouco cumprido pelo Judiciário brasileiro. Contudo, novamente, o legislador silenciou sobre o marco inicial do prazo prescricional intercorrente aos processos em curso, muitos deles que tramitam há mais de quatro anos, por exemplo, sem sentença, ou seja, que estariam abarcados pela prescrição intercorrente.

Aqui, ao contrário do que decidiu sobre a modalidade culposa, reconheceu-se que a prescrição intercorrente não retroagirá para atingir os processos em curso, mas os seus marcos temporais começarão a contar da promulgação da lei, impedindo assim que processos que correm há anos no Judiciário, parados, sem decisão, assim continuem por pelo menos mais quatro anos. Mantendo pelo menos um mínimo de coerência, também decidiu o STF que a lei não retroagirá para majorar o prazo prescricional dos processos já em curso, ou dos atos praticados antes da vigência da reforma legislativa, de forma a majorar o prazo prescricional de cinco para oito anos, o que, aliás, seria reconhecer uma possibilidade ilegal de violação à vedação do reformatio um pejus.

O julgamento se deu pela técnica da repercussão geral, criada pela Emenda Constitucional 45/2004 e disciplinada pela Lei 11.418/2006. Originalmente, as decisões exaradas em sede de repercussão geral, de acordo com a disciplina do Código de processo Civil de 1973, não teriam aplicação futura obrigatória, mas a aplicação para os demais casos sobrestados quando da realização do julgamento. Desde 2015, contudo, com a reforma do Código de Processo Civil, os acórdãos exarados dos julgamentos de repercussão geral têm força de precedente vinculante (ainda que o tema seja também muito debatido no Poder Judiciário, em geral, o que se percebe é que existe um respeito pelas decisões emanadas pela Corte).

Tanto a criação da repercussão geral, como a atribuição de força vinculante para as decisões proferidas decorreram de reformas legislativas que buscavam não só desafogar o Poder Judiciário, como, em alguma medida, criar uma coerência do direito e fortalecer a segurança jurídica. Apesar disso, quando se acompanha um julgamento como este, realizado pelo STF, não há como se garantir nem a coerência e nem a segurança jurídica, pois para nenhum dos temas decididos houve minimamente a coerência entre os julgadores, sendo a tese fixada a partir de uma votação não unânime.

Não gostamos de comparações com sistemas legais de outros países, apesar de muitos de nossos institutos jurídicos terem como fonte primária legislações estrangeiras, como no caso do próprio recurso extraordinário e da repercussão geral, em que a doutrina aponta sua proximidade com o writ of certiorari previsto na Suprema Corte dos Estados Unidos da América.

Sobre o mencionado recurso, diversos estudos apontam que as decisões emanadas pelos "ministros" (justices) somente ocorreram quando 1) a questão está madura para julgamento, ou seja, apreciada a controvérsia nos tribunais de origem, e 2) as votações são em sua grande maioria unânimes, para garantir a integralidade do direito e a segurança jurídica, por representarem um precedente de vinculação obrigatória.

Não se desconhece que temos sistemas legais totalmente diversos, nada obstante, a segurança jurídica proveniente de uma decisão exarada por votação unânime não pode ser comparada a uma decisão em que se tem divergências de votos fundamentada, de forma que no mínimo nos permite acreditar (e esperar) que inexiste um posicionamento em definitivo pelo STF quanto ao tema.

O direito evoluiu com a sociedade, novas discussões podem ser feitas, novas pesquisas aparecerão, em especial considerando que a decisão, mesmo que proferida pela Corte Suprema, foi exarada de forma prematura, sem que a comunidade jurídica ou mesmo o Poder Judiciário pudesse debater com afinco para amadurecer sua apreciação. Ainda, se trata de uma decisão em que não há sequer entre os ministros a coerência de entendimentos sobre o tema. Nos próximos (dias, anos, semanas), serão julgadas as Ações que pedem a inconstitucionalidade de alguns dispositivos da reforma legislativa. São ações de competência originária do STF e que a apreciação se dá à luz da Constituição, de forma que seguiremos acompanhando a reação do STF sobre a legislação.

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  • é sócia fundadora na PGD Sociedade de Advogadas, mestranda em Direito Processual Civil pela USP e pós-graduada em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP-Cogeae).

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