Opinião

Limites da retroatividade do acordo de não persecução penal em pauta

Autor

  • é advogado criminalista sócio da banca Leonardo Bandeira Sociedade de Advogados em Minas Gerais com mestrado pela PUC-MG em Direito Processual e pós-graduação em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra em parceria com o IBCCrim.

    Ver todos os posts

19 de setembro de 2022, 6h05

O acordo de não persecução penal (ANPP) foi introduzido no Código de Processo Penal (artigo 28-A) com a chamada "lei anticrime" (Lei 13.964/19). A entrada em vigor da Lei 13.964/19 deu ensejo à divergência jurisprudencial acerca da natureza do instituto e, consequentemente, com a possibilidade de sua aplicação aos processos já em curso quando do advento da lei.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a 5ª Turma fixou o entendimento que a aplicação do ANPP é possível em processos em curso, desde que não tenha ocorrido o recebimento da denúncia.[1] Já a 6ª Turma do STJ, inicialmente, aceitou a aplicação do ANPP para processos em curso até o trânsito em julgado da condenação.[2] Contudo, no julgamento do Habeas Corpus nº 628,647, por maioria de votos, a 6ª Turma se alinhou ao entendimento da 5º Turma, admitindo a retroatividade somente até o recebimento da denúncia.[3]

Diferentemente da posição adotada pelo STJ, alguns Tribunais de 2º grau autorizaram a aplicação do ANPP em processos em curso até o trânsito em julgado da condenação, como é o caso do Tribunal de Justiça de São Paulo[4] e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.[5] Igualmente, o enunciado 98 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), que é o órgão incumbido da coordenação, integração e revisão do exercício funcional dos membros do MPF na área criminal, previu a aplicação do ANPP até o trânsito em julgado, desde que preenchidos uma série de requisitos.[6]

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a 1ª Turma adotou o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, autorizando a aplicação do ANPP somente até o recebimento da denúncia.[7] Por sua vez, a 2ª Turma, já reconheceu a possibilidade da celebração do ANPP em um caso no qual o Ministério Público requereu a desclassificação da conduta de tráfico para tráfico privilegiado em sede de alegações finais. [8]

 Diante de toda a discordância entre os tribunais superiores e ordinários, o ministro Gilmar Mendes afetou a problemática ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus nº 185.913/DF, a fim de sanar a divergência jurisprudencial e possibilitar a eventual fixação de tese a ser replicada em outros casos e juízos.

Entre as principais questões a serem definidas, o ministro Gilmar Mendes destacou as seguintes:

(a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado?
(b) É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo?

E, em voto proferido em setembro de 2021, no Habeas Corpus afetado ao Plenário, o ministro Gilmar Mendes propôs a fixação da seguinte tese acerca do ANPP ao Pleno do STF:

É cabível o acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento. Ao órgão acusatório cabe manifestar-se motivadamente sobre a viabilidade de proposta, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle, nos termos do artigo 28-A, § 14, do CPP. [9]

Passados dois anos desde a afetação da questão ao plenário do STF, a recém-empossada presidente do Tribunal, ministra Rosa Weber pautou para o dia 22 de setembro de 2022 o julgamento da matéria.

Espera-se que prevaleça no âmbito da Suprema Corte a tese proposta pelo ministro Gilmar Mendes. E, para sua compreensão, apresenta-se aqui alguns esclarecimentos.

Tal como a colaboração premiada, transação penal e suspensão condicional do processo, o acordo de não persecução penal é negócio jurídico processual, em que se busca a conformidade do imputado à acusação, ou seja, sua aceitação às sanções pactuadas e a sua submissão, sem resistência, à pretensão punitiva estatal.[10] Por isso, é um instituto de direito processual penal. Contudo, como ressalva o ministro Gilmar Mendes, o ANPP tem um impacto direto em relação ao poder punitivo estatal, que diz respeito à dicotomia "lícito-ilícito".[11] É dizer, interfere na prestação do poder punitivo estatal, e não apenas regula um procedimento, porquanto, nos termos do artigo 28-A, § 13 do CPP, "[…] cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade".

Desta forma o ANPP se caracteriza como norma processual de conteúdo material. Sobre a temática, Renato Brasileiro esclarece que:

[…] normas processuais materiais (mistas ou hibridas): são aquelas que abrigam naturezas diversas, de caráter penal e de caráter processual penal. Normas penais são aquelas que cuidam do crime, da pena, da medida de segurança, dos efeitos da condenação e do direito de punir do Estado (v.g., causas extintivas da punibilidade). De sua vez, normas processuais penais são aquelas que versam sobre o processo desde o seu início até o final da execução ou extinção da punibilidade. Assim, se um dispositivo legal, embora inserido em lei processual, versa sobre regra penal, de direito material, a ele serão aplicáveis os princípios que regem a lei penal, de ultratividade e retroatividade da lei mais benigna[12]

Especificamente sobre o conteúdo material do ANPP, De Bem e Martinelli esclarecem que o instituto "[…] embora formalmente esteja inserido no Código de Processo Penal, artigo 28-A, também se reveste de conteúdo de direito material no que tange às suas consequências, apresentando-se como verdadeira norma de garantia e, assim, retroativa."[13] Portanto, como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício (artigo 5º, XL, da CF e artigo 2º, parágrafo único, do CP).

Em contornos semelhantes, em relação à suspensão condicional do processo e à transação penal (Lei 9.099/95), a natureza processual com conteúdo material foi reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.[14]

Na mesma medida, entende-se que a aplicação do ANPP deve retroagir mesmo para processos já em curso por fatos cometidos antes da sua vigência, porquanto se trata de medida despenalizadora mais benéfica ao réu.[15] Contudo, resta delimitar qual seria o limite temporal desta retroatividade.

Quanto ao limite temporal da retroatividade do ANPP, surgiram algumas correntes, a saber: (i) aplicação até o oferecimento da denúncia (aderida pelo STJ); (ii) até a sentença; (iii) até o trânsito em julgado e (iv) após o trânsito em julgado.

Para a primeira corrente (i), a limitação da retroatividade até o recebimento da denúncia decorre do fato de que o benefício a ser eventualmente ofertado ao agente se aplica ainda na fase pré-processual, com o claro objetivo de mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal. Com efeito, a consequência jurídica do descumprimento ou da não homologação do acordo é exatamente a retomada do curso do processo, com o oferecimento da denúncia, nos termos dos §§ 8º e 10 do artigo 28-A do Código de Processo Penal. Nesse contexto, se, por um lado, a lei nova mais benéfica deve retroagir para alcançar aqueles crimes cometidos antes da sua entrada em vigor, por outro lado, há de se considerar o momento processual adequado para sua incidência, sob pena de se desvirtuar o instituto despenalizador.[16]

Por sua vez, a segunda corrente (ii) sustenta que "[…] já proferida a sentença, esgotada está a jurisdição ordinária, não podendo os autos retornar ao 1º Grau, mesmo porque a sentença jamais poderia ser anulada, uma vez que hígida; […]"[17] e que "[…] uma vez já tendo sido proferida sentença (condenatória), o acusado não poderia mais colaborar com o Ministério Público com a sua confissão, que é, como já visto, um importante trunfo político-criminal para a celebração do acordo."[18]

Em especial, a crítica que se faz à primeira (i) e à segunda (ii) correntes, conforme sustenta o Min. Gilmar Mendes, decorre do fato de que não há como conciliar o reconhecimento da natureza processual, com o conteúdo material sobre ANPP e com a aplicação da regra de retroatividade do artigo 2º do CPP, restrita a normas processuais.[19] O Ministro ainda destaca que, nos termos da doutrina majoritária e da jurisprudência consolidada do Supremo, no caso de normas de natureza mista e processuais de conteúdo material, deve-se aplicar a regra de retroatividade de direito penal material (artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal).[20]

A terceira corrente (iii) – que se mostra mais adequada — sustenta que "[…] o limite temporal para obstar o oferecimento do ANPP em processos em curso quando da vigência da Lei 13.964/2019 seria somente o trânsito em julgado da sentença penal condenatória."[21]

Entende-se como adequado este marco temporal, porquanto, "[…] com o trânsito em julgado, inicia-se a execução da pena e encerra-se a persecução penal, perdendo sentido o ANPP em sua função essencial de simplificar e antecipar a sanção ao imputado com a sua conformidade."[22]

E, por fim, a quarta corrente (iv) sustenta que "[…] nem mesmo o trânsito em julgado da sentença condenatória impede a aplicação retroativa de lei posterior favorável (artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal"[23]; e que o argumento de que a condenação compromete a finalidade precípua para a qual o ANPP foi concebido, não pode representar um impedimento à retroatividade, visto que a mesma restrição não consta dos textos constitucional e legal.[24]

Em limitação à argumentação proposta, a doutrina sustenta que a coisa julgada material figura óbice intransponível ao oferecimento de proposta de acordo, verbis: "[…] aos casos em que houve trânsito em julgado, a aplicação da mitigação não poderá ter ultratividade, uma vez que o fundamento para a redução da pena é a colaboração durante o processo, possibilidade de que fica absolutamente superada a formação da coisa julgada material".[25]

Pelos fundamentos expostos, compreende-se como mais acertado o entendimento de que é cabível o ANPP em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente a confissão do réu até aquele momento. Daí se espera que o Plenário do Supremo Tribunal Federal siga a proposta de fixação de tese proposta pelo ministro Gilmar Mendes no Habeas Corpus nº 185.913.

 


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Seção). Embargos de Declaração no Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial nº 1.681.153/SP.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 575.395/RN.

[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 628.647/SC.

[4] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça (Décima Segunda Câmara de Direito Criminal). Apelação Criminal nº 0000414-33.2018.8.26.0530. Relatora: Des. Angélica de Almeida, 18 maio 2021. São Paulo: Tribunal de Justiça de São Paulo, [2021].

[5] BRASIL. Tribunal Regional Federal (4. Região). Correição Parcial nº 5009312-62.2020.4.04.0000. Processual penal. Correição parcial. Art. 164, RITRF4. Relator: Des. João Pedro Gebran Neto, 13 maio 2020. Porto Alegre: Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

[6] BRASIL. Ministério Público Federal. Enunciado nº 98. Brasília: 2ª Câmara Criminal, 2020b.

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 191.464/SC.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2ª Turma) Habeas Corpus 194.677/SP. Relator ministro Gilmar Mendes, j. 11.5.2021, DJe 13.8.2021.

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Habeas Corpus 185.913/DF. Relator: Min. Gilmar Mendes, 22 set. 2020. Brasília: STF.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem. No mesmo sentido, GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemin; GUARAGNI, Fábio André. Acordo de não persecução penal e sucessão temporal de normas processuais penais. In: DE BEM, Leonardo Schimitt de; MARTINELLI, João Paulo. (Orgs.). Acordo de não persecução penal. 2. ed., São Paulo: D'Plácido, 2020. cap. 7, p. 145-169. p. 167.

[12] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 4. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 96.

[13] DE BEM, Leonardo; MARTINELLI, João Paulo. O Respeito à Constituição Federal na Aplicação Retroativa do ANPP. In: DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo (Orgs.) Acordo de não persecução penal. 2. ed. São Paulo: D'Plácido, 2020. cap. 6, p. 127-139. p. 128.

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Questão de Ordem no Inquérito nº 1.055/AM. Relator: Min. Celso de Mello, 24 abr. 1996. Brasília: STF.

[17] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: JusPodivm, 2020b. p. 213.

[18] Ibidem, p. 213.

[19] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Habeas Corpus 185.913/DF. Relator: Min. Gilmar Mendes, 22 set. 2020. Brasília: STF.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.

[24] Ibidem, p. 139.

[25] DE-LORENZI, Felipe da Costa. Justiça negociada e fundamentos do direito penal: pressupostos e limites materiais para os acordos sobre a sentença. São Paulo, SP: Marcial Pons, 2020. p. 208.

Autores

  • é advogado criminalista, sócio da banca Leonardo Bandeira Sociedade de Advogados em Minas Gerais, com mestrado pela PUC-MG em Direito Processual e pós-graduação em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra em parceria com o IBCCrim.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!