Opinião

Proteção de dados: entre público e privado, naufrágio do Direito

Autor

  • é professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP-RS) e da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) palestrante da Escola dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Esmafe-RS) e Escola da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Su (Ajuris) e autor do livro Direito Constitucional – organização do estado brasileiro (Editora Almedina).

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18 de setembro de 2022, 6h32

Em outubro de 2019, o governo federal editou o Decreto nº 10.046, dispondo sobre a governança no compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal, além de instituir o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados. Objeto de uma ADI e de uma ADPF, o referido decreto põe em causa o tratamento adequado dos dados e a violação ao direito fundamental à proteção de dados.

O objetivo do decreto, conforme seu primeiro artigo, é simplificar a oferta de serviços públicos, orientar e otimizar a formulação, a implementação, a avaliação e o monitoramento de políticas públicas, possibilitar a análise das condições de acesso e manutenção de benefícios sociais e fiscais, promover a melhoria da qualidade e da fidedignidade dos dados custodiados pela administração pública federal e aumentar a qualidade e a eficiência das operações internas da administração pública federal. Para tanto, estabelece um conjunto de regras para o compartilhamento de dados. O escopo da legislação é possibilitar aos cidadãos o acesso a serviços públicos federais e constituir um cadastro unificado a ser compartilhado por órgãos federais.

O tema da concentração de dados sob o controle da Administração Pública não é novo. Nos anos 1960, nos Estados Unidos, o debate se deu em torno da constituição de uma central unificada de armazenamento de informações pessoais, o denominado National Data Center, que reuniria os cadastros do Censo, dos registros trabalhistas, do fisco e da previdência social. Desde logo, surge a preocupação em relação ao poder do governo diante da concentração de dados em suas mãos.[1] Preocupação que, diante do avanço tecnológico, há de ser mais considerada no século 21.

Em seu duvidoso poder regulamentar, o Decreto no. 10.046 estabelece, conforme dispõe seu artigo 2º., inclusive, o compartilhamento de "características biológicas e comportamentais mensuráveis da pessoa natural que podem ser coletadas para reconhecimento automatizado, tais como a palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar". Isto é, dados sensíveis.

Com clareza, percebe-se nesse decreto o desrespeito aos princípios básicos em matéria de proteção de dados. Ancorado nas precisas palavras do ministro Luis Roberto Barroso, no julgamento da ADI 6.393, que reconheceu a fundamentalidade do direito à proteção de dados, o "compartilhamento de dados pessoais (…) será compatível com o direito à privacidade se: 1) a finalidade da pesquisa for precisamente delimitada; 2) o acesso for permitido na extensão mínima necessária para a realização dos seus objetivos; 3) forem adotados procedimentos de segurança suficientes para prevenir riscos de acesso desautorizado, vazamentos acidentais ou utilização indevida".[2]

No recorte da jurisprudência, sobressaem os princípios da finalidade, da necessidade e as incontornáveis salvaguardas para minimizar os riscos aos titulares dos dados. Afinal, o direito à proteção de dados impõe aos que operam o seu tratamento elementos procedimentais vinculados à segurança da informação e aspectos relativos a um necessário accountability.

Com base nesse decreto, houve a tentativa governamental de compartilhar dados dos registros de carteiras de habilitação entre o Serviço Federal de processamento de Dados (Serpro) e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Um volume indiscriminado de dados, como nome, filiação, endereços, telefones, dados dos veículos e fotos de todo titular de Carteira Nacional de Habilitação seriam objeto desse compartilhamento.

Dados de milhões de brasileiros seriam compartilhados com a Abin sem a definição de sua finalidade, de sua proporcionalidade e igualmente sem a definição dos propósitos legítimos desse compartilhamento. Diante disso, houve a promoção da ADPF 695. Nada obstante, a União revogou o termo de autorização para o compartilhamento dos dados sem que este se concretizasse.

Mas a adequação do decreto à normatividade constitucional foi decidida pelo Poder Judiciário, que definiu parâmetros para o compartilhamento de dados.[3]  Assim como o Poder Judiciário declarou inconstitucional a Medida Provisória 954/20, que obrigava as empresas de telefonia a disponibilizarem ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) dados como nome, números de telefone e endereços dos usuários, pessoas físicas e jurídicas com a finalidade de realizar entrevistas em caráter não presencial no âmbito de pesquisas domiciliares.

Mas o ponto que chama a atenção é: sim, há medidas jurídicas efetivas para o controle do tratamento de dados indiscriminado quando oriundo de atos do poder público. ADPF's, ADI's e outras medidas judiciais são meios hábeis para impedir atividades dos governos quando violam o direito fundamental à proteção de dados. Contudo, o direito se torna meio ineficaz quando tais atividades são realizadas por agentes privados — pense-se, por exemplo, nas big techs.  

O denominado capitalismo de vigilância[4] permanece com sua prática que expropria a própria personalidade humana. As violações promovidas à proteção de dados por grandes empresas que atuam no mercado digital passam alheias às medidas jurídicas e à própria legislação. O direito é utilizado para evitar ou disciplinar o controle de dados pelos governos, mas vacila diante da concentração de dados que são operados sem a necessária transparência por agentes privados.

Na era digital, a história, a vida e sua projeção são absorvidas e modeladas por algoritmos. Os smartphones, como novos dispositivos formadores da sociedade contemporânea, popularizam-se. E, embora permitam o acesso à virtualidade constitutiva do universo digital e existencial humano, mantêm a pessoa à margem do controle organizacional da sociedade em rede.[5] O que há de orgânico e comum na polis é produzido tecnologicamente em um espaço sem território e onde não há nem tempo. Há uma nova arquitetura do modelo econômico, que usa a tecnologia para capturar a existência humana, que se torna a matéria-prima a ser extraída. Engendra-se uma nova ordem econômica baseada em "uma lógica econômica parasítica na qual a produção de bens e serviços é subordinada a uma nova arquitetura global de modificação de comportamento".[6]

O controle total torna-se possível a partir do tratamento de dados de localização, compartilhados entre agentes privados e governamentais. A privacidade é fragilizada e se possibilita controlar o uso das informações que dizem respeito a cada sujeito. Há um excedente de dados coletados e processados por máquinas capazes de prever o que se fará. Há muitas camadas imbricadas nessa sociedade de vigilância (Stefano Rodotà) que produzem consequências políticas e resultam na ascensão de palhaços líderes [que] brotaram macabros no império e nos seus vastos quintais, como canta Caetano Veloso em Anjos tronchos.

Nesse estado de vigilância, rastreia-se a participação política, o que se fala, o que se pensa, o que se propõe e ao que se resiste. Dominado por processos automatizados, o espaço democrático é comprometido. As tecnologias da informação incidem sobre a formação da opinião pública e comprometem a liberdade de decisão necessária para constituir o espaço pragmático da cidadania. O ódio, sentimento humano que se (com)partilha, preenche o vazio discursivo anônimo das redes digitais que o propulsionam e alimentam a insociável sociabilidade humana (Immanuel Kant). No mundo digital, as instâncias tradicionais de mediação da coexistência são suprimidas e a verdade factual cede diante de monetizadas narrativas. O discurso de ódio, disparado nas telas digitais, projeta a sombra de uma sociedade incivil, como destaca o livro já referido de Muniz Sodré.

Paralelo ao desenvolvimento da economia globalizada, percebe-se o tráfego do poder: antes concentrado nas estruturas estatais, é transferido para agentes privados,[7] que concentram os mecanismos concorrenciais do próprio capitalismo. A coleta e o tratamento de dados são fatores decisivos para o comando da economia contemporânea e do próprio exercício do poder em um mundo digital.[8] E o que se assiste, nessa quadra, é uma relação assimétrica de poder, onde agentes privados atuam de forma descontrolada a partir de um modelo negocial calcado na expropriação de dados pessoais e que renova a lógica colonialista. Só que, agora, um colonialismo de dados.[9] É a tecnologia algorítmica, com sua inerente lógica de vigilância, que ameaça o paradigma de uma democracia constitucional estremada por direitos e garantias fundamentais.

E o direito, como uma instância crítica de validade do poder, abdica de sua racionalidade axiológica e de seu espaço normativo diante da imposição de uma tecnologia instrumentalizada por um modelo econômico. O que implica uma opção não pelo justo, mas pela realização de algum interesse programável por meio de algoritmos e os modos de realizar ou evitar consequências desejadas.   

A circulação dos dados na sociedade hiperconectada é inexorável. Contudo, não há inexorabilidade no modelo econômico forjado a partir da dataficação, posto ser uma escolha — tanto quanto se escolheu, em um dado momento histórico, escravizar e comercializar seres humanos.


[1] Nesse sentido, ver Doneda, Danilo Cesar Maganhoto. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados. Edição do Kindle.

[3] Ver julgamento da ADI 6.649 e da ADPF 695.

[5] Nesse sentido, ver Muniz Sodré, A sociedade incivil – mídia, liberalismo e finanças. Rio de Janeiro: Vozes, 2021.

[6] Zuboff, Shoshana (2021-02-07T22:58:59.000). A Era do Capitalismo de Vigilância . Intrínseca. Edição do Kindle.

[7] Sobre o tema e as consequências do mundo digital sobre a liberdade humana, ver, de André Perin Schmidt Neto, O livre-arbítrio na era do big data. S.Paulo: Tirant lo blanch, 2021.

[8] Sobre o tema, entre outros, Algoritarismos, obra coletiva coordenada por Jesús Sabariego, Augusto Jobim do Amaral e Eduardo Baldissera Carvalho Salles. Valencia: Tirant lo blanch, 2020.

[9] Nesse sentido, A hipótese do colonialismo de dados e o neoliberalismo, de Sérgio Amadeu da Silveira, in Colonialismo de dados – como pera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal. Org. João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.

Autores

  • é professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS) e da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), palestrante da Escola dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Esmafe/RS) e Escola da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Su (Ajuris) e co-organizador do livro Proteção de Dados – Temas Controvertidos da Editora Foco.

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