Garantias do Consumo

A atuação das lawtechs e seus serviços na sociedade consumerista

Autores

  • Keila Pacheco Ferreira

    é professora dos cursos de graduação e mestrado em Direito da Universidade Federal de Uberlândia doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e associada ao Brasilcon.

    View all posts
  • Túlio Rezende Teixeira

    é advogado em Minas Gerais e graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia.

    View all posts

14 de setembro de 2022, 8h11

O conceito de startup se popularizou no Brasil a partir do início dos anos 2000, consagrando um modelo de estruturação de empresas voltado à aplicação de tecnologia e inovação sobre serviços repetíveis e escaláveis, a baixos custos de manutenção. No mercado jurídico, desenvolveram-se duas categorias, que guardam singelas diferenças — as legaltechs, cujos serviços se destinam ao aprimoramento da lucratividade de escritórios e empresas que atuam no mercado jurídico, e as lawtechs, que têm como destinatário final os consumidores, atuando diretamente na desburocratização de serviços jurídicos [1]. O presente ensaio tem como enfoque a atuação das lawtechs, avaliando exclusivamente as repercussões de seus serviços na sociedade consumerista.

Conforme dados da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L) [2], de 2017 a 2019, houve um acréscimo de 300% no número de startups jurídicas brasileiras, e grande parte dessas empresas se desenvolveram a partir da resolução de demandas de consumo, sustentando as teses de facilitação do acesso à justiça, redução da litigiosidade e celeridade.

As lawtechs são startups que têm como escopo o aprimoramento de serviços jurídicos, por meio da tecnologia. Para além do desempenho de serviços repetíveis e escaláveis, a baixos custos de manutenção, o que de fato consagra a expressividade das lawtechs é a revolução sobre métodos e procedimentos tradicionais, consubstanciando a chamada "inovação disruptiva" [3]. O conceito se popularizou a partir das obras do professor norte-americano Clayton Christensen, caracterizando produtos e serviços inovadores que surgem como aplicações simples sobre determinados mercados, mas que, rapidamente, se demonstram promissores e aptos a substituir os concorrentes que compunham o mercado tradicional.

No Brasil, o impacto gerado pelo surgimento de startups jurídicas consumeristas trouxe evidência à atuação dessas empresas, como prestadoras de serviços alternativos à advocacia e às assessorias tradicionais. Por meio de softwares capazes de analisar documentos e promover sua utilização digital, efetuar previsões, mensurar estatísticas sobre decisões judiciais e até mesmo efetuar a plena resolução de conflitos através de plataforma online, as lawtechs foram capazes de se posicionar no mercado jurídico com notável êxito, promovendo, inclusive, uma integração cooperativa entre profissionais do direito e do âmbito da tecnologia de informação [4].

Outra característica das lawtechs que contribuiu para sua aclamação e prestígio é a adoção de uma postura "client-friendly", com o desenvolvimento de procedimentos destinados a garantir a melhor experiência possível ao consumidor. Empresas e organizações mais tradicionais, sobretudo aquelas já consolidadas no mercado, nem sempre privilegiam a experiência dos clientes como um aspecto primordial da prestação de serviços. As startups jurídicas, diferentemente, contornam as dificuldades de aceitação do público em relação às novas tecnologias [5], cativando-o pelo bom atendimento, pelo uso de linguagem acessível e pelo oferecimento de soluções rápidas e precisas.

Nesta perspectiva, têm se destacado as empresas que atuam sobre o setor aéreo, seja por meio da compra de direitos expectativos, como as startups jurídicas Liberfly e QuickBrasil, seja por meio da intermediação de demandas consumeristas, como as lawtechs Indenizar e NãoVoei.

As startups jurídicas Liberfly [6] e QuickBrasil [7] oferecem, em suas plataformas online, a verificação gratuita de um eventual direito de indenização por parte dos consumidores visitantes, por meio do preenchimento de dados cadastrais e do relato dos problemas por eles experimentados, como atrasos excessivos, cancelamento de voos, ocorrência de overbooking e extravio de bagagem. Nessas plataformas, a proposta é que o consumidor adira a um contrato de cessão de direitos, cedendo integralmente à lawtech contratante o direito de recebimento de créditos e direitos futuros, relacionados à demanda consumerista. Como contraprestação, recebe o consumidor cedente um valor previamente estabelecido, que varia entre R$ 1 mil e R$ 1.200, renunciando a qualquer montante, posteriormente adquirido, a título de indenização.

Por óbvio, a lucratividade dessas lawtechs reside na possibilidade de aquisição de valores indenizatórios superiores àqueles fornecidos aos consumidores em cessão de crédito onerosa. Nota-se, porém, que os montantes adquiridos podem superar consideravelmente a contraprestação fixa oferecida. Há julgados cujo arbitramento de valores varia entre R$ 5  mil [8] a R$ 10 mil [9], para casos de cancelamento de voo internacional, atraso de voo ou overbooking, com a configuração do chamado dano moral presumido ou "in re ipsa".

Igualmente interessante evidenciar a existência de lawtechs que também solucionam demandas consumeristas, porém, com um modelo de atuação diverso da aquisição de ativos judiciais, sob a forma de direitos indenizatórios expectativos. Trata-se, aqui, das startups jurídicas que postulam em favor dos consumidores, conectando-os a uma rede de advogados. Objetivando angariar uma porcentagem determinada sobre o valor final das indenizações concedidas, lawtechs como a Indenizar [10] e a NãoVoei [11] facilitam a realização de acordos extrajudiciais entre as empresas aéreas e os consumidores lesados, ou promovem o ajuizamento de ações judiciais para a resolução das demandas.

De forma idêntica ao serviço inicial prestado pelas plataformas Liberfly e QuickBrasil, as plataformas Indenizar e NãoVoei efetuam uma análise gratuita sobre o transtorno sofrido pelo consumidor visitante e coletam seus dados cadastrais. Todavia, o objetivo posterior é que o consumidor lesado contrate a lawtech para auxiliá-lo com a demanda, intermediando o conflito, facilitando a ocorrência de um acordo extrajudicial com a companhia aérea, ou acionando advogados parceiros para pleitear a indenização em juízo. Trata-se, portanto, de um sistema de remuneração vinculado ao êxito, recebendo a startup de 20% a 30% do valor total da indenização adquirida [12], similarmente aos honorários de êxito advocatícios.

Independentemente do modelo de atuação das lawtechs consumeristas, identifica-se em suas plataformas o enfoque sobre a eficiência na resolução de problemas experimentados pelos consumidores, como alternativa à morosidade e excessiva burocracia dos procedimentos judiciais tradicionais. Como recursos de persuasão, as startups jurídicas mantêm registrado em seus sites textos como "evite burocracia e papelada" [13], "não espere para ser indenizado" [14] e "é fácil rápido e sem burocracia" [15], enaltecendo a acessibilidade de seus serviços e o impacto de sua atuação sobre a apreciação de demandas reprimidas.

Há que se ressaltar, no entanto, que a acepção de acesso à justiça, consagrada pelo ordenamento jurídico brasileiro, não corresponde à simples recepção de demandas pelo Poder Judiciário, ou a qualquer pagamento de valores compensatórios em acordos extrajudiciais. Enfim: "[…] não se trata […] de apenas assegurar o acesso, o ingresso, ao controle jurisdicional. Os mecanismos processuais (i.e., os procedimentos, os meios instrutórios, as eficácias das decisões, os meios executivos) devem ser aptos a propiciar decisões justas, tempestivas e úteis aos jurisdicionados – assegurando-se concretamente os bens jurídicos devidos àquele que tem razão" [16].

A garantia fundamental prevista no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição, não se consubstancia por qualquer alternativa ágil que gere compensações ao consumidor lesado. No que tange à intermediação de demandas consumeristas, com a atuação das lawtechs como verdadeiros procuradores, a controvérsia cinge-se à qualidade do serviço prestado pela startup, em comparação aos serviços prestados por qualquer escritório de advocacia. Diferentemente, no que diz respeito à compra de direitos expectativos, mediante a cessão de direitos indenizatórios por uma contraprestação fixa, não é prudente assegurar que se promove, de fato, o acesso à justiça. Afinal, acesso à justiça em âmbito consumerista corresponde à efetivação de direito fundamental, que varia conforme as circunstâncias fáticas e não suporta a substituição por valores previamente definidos e diminutos.

O desenvolvimento e a consagração das startups jurídicas brasileiras têm exercido impactos relevantes sobre o mercado tradicional. Por meio de procedimentos que caracterizam a chamada tecnologia disruptiva, as lawtechs têm revolucionado seu nicho de atuação, consagrando-se como alternativas à resolução de conflitos consumeristas através do Poder Judiciário.

Em que pese a argumentação de eficiência defendida pelas startups jurídicas e por seus apoiadores, práticas como a cessão de ativos judiciais consumeristas, por uma contraprestação monetária antecipada e fixa, nem sempre se prestará como a melhor alternativa à jurisdição estatal, considerada a vulnerabilidade do consumidor. A proposta de inafastabilidade da jurisdição, consagrada pela Constituição, não diz respeito somente à recepção das demandas individuais pelo Poder Judiciário, mas, sim, à efetiva apreciação e resolução justa dos litígios, em observância às circunstâncias fáticas.

Em prol de uma atuação não-exploratória por parte das lawtechs, faz-se necessário observar os princípios da vulnerabilidade, como um critério objetivo e de presunção absoluta, previsto no artigo 4º, inciso I, do CDC, e da hipossuficiência, como um critério subjetivo, verificado conforme as particularidades de cada caso. Aqui, a proposta é que as startups jurídicas reconheçam sua posição dominante em relação aos consumidores e utilizem desta perspectiva como orientação a uma atuação mais transparente. Em prol do cumprimento do dever de informação, o ideal é que os consumidores clientes estejam cientes das repercussões da cessão de direitos indenizatórios, bem como da possibilidade de o valor indenizatório final ultrapassar em muito a contraprestação oferecida. Ainda, que as startups jurídicas que intermedeiam litígios evitem o estímulo à judicialização excessiva.

Há que se verificar, ainda, que os benefícios assegurados pelo desenvolvimento da tecnologia e a promoção da livre concorrência devem ser conciliados com a primazia da função social dos contratos. Sobretudo em seu aspecto público, que diz respeito à distribuição de riquezas e à garantia de observância aos direitos metaindividuais, o princípio da função social dos contratos deve sempre orientar a atuação das lawtechs consumeristas, estabelecendo a proporcionalidade nas condições negociadas como um elemento indispensável. Assim, sugere-se, quanto à compra de direitos indenizatórios expectativos, que a contraprestação varie conforme a média da indenização que se pretende obter, em prol da mais justa antecipação de valores e o cumprimento da função da indenização a título de danos morais.

No que tange às empresas que atuam por meio da intermediação de litígios, a atuação não-exploratória se consuma pelo desestímulo à litigância excessiva, bem como se vincula diretamente à caracterização ou não de serviços advocatícios, que não poderia ser mercantilizada para fins de captação de clientela. Havendo o preenchimento dessa hipótese (que, via de regra, tem se assentado por meio de ações civis públicas [17]), deve-se buscar a adequação frente ao Estatuto da Advocacia, Lei 8.906/94, primando-se pela prestação de serviços pelos escritórios de advocacia tradicionais.

A revolução digital vivenciada pode exacerbar a vulnerabilidade informacional e assimetrias em ambientes negociais de resolução de controvérsias promovidos pelos diversos modelos de lawtechs. Fachin e Silva observam que "ainda que se celebrem acordos e o consumidor se dê por satisfeito, se a normativa consumerista não estiver sendo cumprida em plenitude, haverá uma negativa do Estado de Direito Constitucional".

Vale reafirmar que a efetividade da tutela e promoção do direito fundamental de defesa do consumidor se projeta a partir dos valores da justiça e equidade, restando à eficiência um papel ainda residual na matriz constitucional brasileira.

 


[1] Diferença entre lawtech e legaltech. Disponível em: https://fintech.com.br/blog/startup/diferenca-entre-lawtech-legaltech/. Acesso em 13 de julho de 2022.

[2] Em dois anos, número de startups jurídicas cresce 300% no Brasil. Disponível em: https://ab2l.org.br/noticias/em-dois-anos-numero-de-startups-juridicas-cresce-300-no-brasil/. Acesso em 13 de junho de 2022.

[3] CHRISTENSEN, Clayton. The innovator's dilemma: when new technologies cause great firms to fail. New York: Harvard Business Review Press, 1997.

[5] REED, Jeff. FinTech financial technology and modern finance in the 21st century. Kindle Edition, 2016.

[6] Disponível em: https://liberfly.com.br. Acesso em 15 de julho de 2022.

[7] Disponível em: https://indenizacao.quickbrasil.org. Acesso em 15 de julho de 2022.

[8] Ilustrativamente: TJ-SP – AC: 10120183220208260003 SP 1012018-32.2020.8.26.0003, Relator: JAIRO BRAZIL FONTES OLIVEIRA, data de julgamento: 15/2/2021, 15ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 15/2/2021.

[9] Nesse sentido: TJ-SP – AC: 10238743020198260002 SP 1023874-30.2019.8.26.0002, relator: Afonso Bráz, data de julgamento: 07/11/2019, 17ª Câmara de Direito Privado, data de publicação: 07/11/2019.

[10] Disponível em: https://www.indenizar.com. Acesso em 16 de julho de 2022.

[11]Disponível em: https://naovoei.com. Acesso em 16 de julho de 2022.

[12]SIMÕES GOMES, Helton. Perdeu o voo? Startups ajudam a conseguir indenizações de até R$ 12 mil. UOL Notícias, julho de 2018. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2018/07/30/voo-cancelado-startups-ajudam-a-conseguir-indenizacoes-de-ate-r-12-mil.htm. Acesso em 16 de julho de 2022.

[13] Disponível em: https://liberfly.com.br. Acesso em 17 de julho de 2022.

[14] Disponível em: https://indenizacao.quickbrasil.org. Acesso em 17 de julho de 2022.

[15] Disponível em: https://www.indenizar.com. Acesso em 17 de julho de 2022.

[16] WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de, e TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo civil: teoria geral do processo e processo do conhecimento. v. 1, 8ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

[17] A título de exemplo, as ações civis públicas de números 5018420-66.2018.4.02.5101, 5013015-15.2019.4.02.5101 e 5018409-37.2018.4.02.5101, todos sob jurisdição do Tribunal Regional Federal da 2ª Região

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!