Direito Eleitoral

Emenda Constitucional 111/21 e a cautela necessária à sua interpretação

Autores

  • Juliana Rodrigues Freitas

    é doutora em Direito Público pela Universidade Federal do Pará com pesquisa sanduíche na Università di Pisa (Itália) e na Universidad Diego Portales (Chile) mestra em direitos humanos pela Universidade do Pará pós-graduada em Direito do Estado pela Universidade Carlos III de Madri (Espanha) professora do Programa de Mestrado em Direito da Graduação e Especializações do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) advogada e consultora jurídica na área de Direito Público fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e titular da Comissão Especial de Direito Eleitoral OAB Nacional (2022-2024).

  • Nelson Rodrigues Gomes

    é advogado especializando em Direito Eleitoral no IDP/DF.

12 de setembro de 2022, 9h12

A Emenda Constitucional nº 111, de 28 de setembro de 2021, foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro para alterar a Constituição com o fito de disciplinar a realização de consultas populares concomitantes às eleições municipais, dispor sobre o instituto da fidelidade partidária, alterar a data de posse dos chefes do Executivo estadual, distrital e federal, portanto, governadores e presidente da República, além de estabelecer regras transitórias para a distribuição, entre os partidos políticos, dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e para o funcionamento desses partidos políticos.

Neste breve ensaio, traremos algumas reflexões acerca das regras transitórias para a distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).

As ações afirmativas no âmbito eleitoral visam remover barreiras, formais e informais, que impedem o acesso de certos grupos, historicamente excluídos, aos cargos de tomada de decisão, espaços públicos e de poder, de modo a determinar aos partidos políticos e entes federativos que promovam a maior inserção de camadas mais vulneráveis e sub representadas nos espaços de poder.

Diante disso, é indispensável estar presente na discussão a reflexão acerca do impacto que as ações afirmativas provocam na efetivação do princípio da igualdade, seja formal ou material. Isto é, deve funcionar como um instrumento para a concretização não somente das mesmas oportunidades de acesso, mas também impor resultados semelhantes para as situações que assim se apresentam, sob a perspectiva jurídica

Portanto, muito mais que meros e importantes instrumentos de inserção social, tais ações devem atender a uma lógica de reparação histórica de grupos estrutural e institucionalmente excluídos dos espaços de decisão, inclusive sobre seus próprios corpos. No entanto, a compreensão de que o racismo e o machismo são opressões estruturais não isenta as instituições do dever de pensar e implementar políticas internas que objetivem promover a diversidade e o combate às violências institucionais que estes grupos comprovadamente sofrem, por meio da adoção de medidas que os insira nos ambientes de poder decisório, tais como a instituição de ações afirmativas.

Neste contexto, a Emenda Constitucional nº 111/2021, estabelece regras transitórias para a distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), os quais favorecem o fortalecimento das candidaturas de mulheres e negras, uma vez que prevê que, nas eleições realizadas de 2022 a 2030, como política de efetivação da igualdade material, que é uma das bases axiológicas mais densas do Estado Democrático de Direito brasileiro, a distribuição das referidas verbas entre os partidos, adotando como base o cômputo em dobro dos votos em candidatos negros e em candidatas mulheres, para a Câmara dos Deputados.

É inegável que a implementação da EC nº 111/2021 inaugura um novo patamar nas políticas de efetivação da representatividade em relação às candidaturas negras e de mulheres, sobretudo pelo fato de que os partidos se sentem incentivados financeiramente a torná-los(as) eleitos(as). A despeito disso, alerta-se que a medida, por si só, é insuficiente para reparar danos causados historicamente pela exclusão destes grupos dos espaços de decisão, sendo necessário que outras medidas surjam para garantir não somente a proporcionalidade de chances, mas também a igualdade no alcance dos resultados.

A alteração concebida pela EC 111/2021 é importantíssima na trajetória de luta por igualdade política de mulheres e pessoas negras e, de fato, contribui para o fortalecimento de suas candidaturas, fomentando um maior número de concorrentes provindos destes grupos e, talvez, por consequência, induz um crescimento no índice de eleitos. Entretanto, não necessariamente resulta na obtenção de maior quantidade de mandatos eleitorais, uma vez que objetiva intervir, a partir da discriminação positiva, somente no momento de garantir a igualdade de oportunidades entre os candidatos.

Portanto, a referida emenda representa um incentivo financeiro aos partidos para fortalecerem as candidaturas de negros e mulheres, sendo um grande passo que complementa a obrigação de preenchimento dos 30% de cotas de gênero, inserida pela Lei nº 12.034/2009. Contudo, é necessário alertar que, para além destas importantes medidas que visam garantir proporcionalmente as mesmas oportunidades de acesso, precisa-se implementar ações que promovam a igualdade de resultados, no intuito de efetivar o princípio constitucional da igualdade, nas suas esferas formal e material, no sentido de garantir a plena soberania popular por meio do alcance da ideal representatividade política.

Fundamental, portanto, que esse valor referente ao cômputo em dobro dos votos destinados para as pessoas negras seja investido em educação política e na inclusão de outros vários segmentos que seguem fortemente invisibilizados, como o dos povos indígenas, quilombolas, …, e que precisam, tanto quanto os demais, de representatividade.

O que não pode ocorrer é que esse valor, sob o argumento de autonomia partidária, seja utilizado de forma ilimitada, inclusive ignorando os termos estabelecidos pela Constituição Federal, norma que deve nos obrigar a todos, inclusive os próprios partidos políticos. Não podemos permitir que as candidaturas de pessoas negras sejam vistas, como uma isca para o ingresso de um volume maior de dinheiro, sem a contraprestação pública: investir na democracia no nosso país e, com isso, minimizar os impactos nefastos que essa verticalização e hierarquização histórica a que os grupos que integram a nossa sociedade estão submetidos, em uma relação de opressão, em muitos vieses.

E, então, assim a partir do reconhecimento, da visibilidade e da conscientização necessária para essa manifestação plural e diversa, seja ativa que passivamente, começaremos a nos deparar com uma democracia mais sólida e justa, porque a democracia é para todos, não devendo estar limitada às imposições de debates advindos do eixo centro-sul do Brasil.

Precisamos perceber que as alterações legislativas, ainda que tenham proporcionado algum avanço, são insuficientes para impactar nos históricos desníveis estruturais que embasam a nossa sociedade estruturada em um patriarcado e racismo que impõem a hierarquização de núcleos sociais e seres humanos que, apesar de igualmente titulares direitos, os que se situam nas camadas oprimidas e subalternizadas são tolhidos do exercício dos seus direitos e prerrogativas mais fundamentais, imprescindíveis para a garantia da sua dignidade e da sua cidadania.

Repensemos a estrutura das nossas bases sociais e da exclusão de quem integra o núcleo subjetivo, formador do nosso Estado nacional: o povo brasileiro; repensemos a arrogância e o autoritarismo de quem se supõe superior aos demais em razão do acesso ao que nos faz iguais: a titularidade de direitos por todos nós, indistintamente, independentemente de quem somos ou da região brasileira onde moramos!

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