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Câmara arbitral de GO: inconsistências e inconstitucionalidades

11 de setembro de 2022, 8h00

Por Gustavo Justino de Oliveira, Flávio Buonaduce Borges, Matheus Teixeira Moreira

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Em 24 de julho de 2018, foi publicada no estado de Goiás a controversa Lei Complementar 144 [1], responsável por instituir, no âmbito daquele ente federativo, a Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Administração Estadual (CCMA) [2]. Ainda durante os debates legislativos que precederam a criação da lei havia certa preocupação em relação às normas que ela iria instituir, mas, a partir de sua vigência, sedimentou-se um verdadeiro temor em relação aos impactos nas boas práticas da arbitragem com o poder público.

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É importante frisar, desde já, que este artigo não tem o propósito de criticar a integralidade da norma; grande parte das previsões, especialmente aquelas relacionadas à conciliação e à mediação, são assaz bem-vindas. Contudo, o foco nesta oportunidade será demonstrar a problemática da LC-GO 144/2018 — e de seu Decreto regulamentador 9.929/2021[3] — no que tange tão somente ao instituto da arbitragem.

Assim sendo, uma primeira controvérsia surge antes mesmo de nos debruçarmos sobre a análise dos artigos da lei em si: a criação de uma câmara "pública" de arbitragem, isto é, procedimento heterocompositivo.

A iniciativa do poder público em instituir câmara pública para processamento de arbitragens é incomum e abertamente inconstitucional; por se tratar de método heterocompositivo de solução de conflitos inserido na função jurisdicional do Estado [4], a instituição de câmara pública de arbitragem não guarda consonância com as boas práticas e não encontra guarida na doutrina especializada — ao contrário de procedimentos autocompositivos, cuja aderência a câmaras públicas não somente existe, como deve ser incentivada [5].

Para além dessa problemática introdutória, logo no caput do artigo 1º da LC-GO 144/2018 há um trecho que introduz uma das maiores preocupações e inconsistências relativas a essa norma, a qual "[…] dispõe sobre a criação da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Administração Estadual (CCMA), vinculada à Procuradoria-Geral do Estado […]". Na sequência, o artigo 13 escancara a polêmica:

"Art. 13. A CCMA será composta por Procuradores do Estado, Procuradores da Assembleia Legislativa e por advogados regularmente inscritos na OAB-GO, os quais integrarão as listas abertas públicas para escolha das respectivas Comissões, sendo estas compostas sempre em número ímpar maior ou igual a 3 (três) integrantes, podendo ser assessorados por servidores efetivos, de acordo com a necessidade do serviço, mediante designação do Procurador-Geral do Estado." (grifo dos autores)

Como se vê, a lei autoriza expressamente que procuradores do estado de Goiás atuem como árbitros da CCMA em questões envolvendo a própria administração pública do estado de Goiás, o que evidencia o explícito e insanável conflito de interesses. A própria natureza do cargo de procurador estadual — servidor público concursado para defender os interesses do Estado ao qual é vinculado — torna clara a relação de dependência funcional e financeira do procurador-árbitro.

Importa frisar que, em detrimento da mesma lei prever mecanismos de controle ao conflito de interesses (artigo 5º), tais dispositivos não se revelam suficientes porque limitam-se aos procuradores que estejam atuando ativamente em processo administrativo e/ou judicial em defesa da administração — concomitantemente à atuação na CCMA —, sendo certo que, de toda maneira, as atividades inerentes ao cargo giram em torno da defesa do ente público, razão pela qual o conflito de interesses sempre será presumido.

Assim, é possível antever que em toda arbitragem envolvendo a administração estadual goiana que seja submetida à CCMA haverá algum nível de discussão envolvendo conflito de interesses, dependência econômico-financeira, parcialidade, prejuízo ao devido processo legal, insegurança jurídica e outros elementos que, sem dúvidas, irão abalar a confiança das partes no procedimento e a reputação da própria câmara. Este cenário é em si suficientemente contraditório, e gera um ambiente desfavorável à segurança jurídica e estabilidade decisória que se pretende sempre obter como premissa para o desenvolvimento adequado da arbitragem.

O cenário se torna ainda mais controverso com a previsão do artigo 27 da lei complementar:

"Art. 27. Os contratos, convênios e demais instrumentos congêneres firmados pelas pessoas jurídicas de direito público ou privado, integrantes da Administração Pública estadual, conterão, preferencialmente, cláusula compromissória de submissão dos conflitos ao procedimento arbitral perante a Câmara de que trata esta Lei Complementar, caso em que deverá ser previsto no instrumento convocatório e no respectivo contrato administrativo ou ajuste de parceria, por escrito, em documento anexo ou redigida em negrito, com assinatura ou visto aposto especialmente para essa cláusula, segundo modelo-padrão a ser disponibilizado pela Procuradoria-Geral do Estado." (grifo dos autores)

Ao que parece, trata-se de uma tentativa do legislador de direcionar os eventuais conflitos para uma câmara de preferência da administração pública — justamente a câmara na qual procuradores de estado e procuradores da assembleia funcionam como mediadores, conciliadores e árbitros. Com o objetivo de solidificar essa matéria, o decreto regulamentador 9.929/2021 traz dispositivo semelhante:

"Art. 2º. § 1º — Os integrantes da administração pública estadual optarão preferencialmente pela submissão de conflitos ao procedimento arbitral perante a Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Administração Estadual – CCMA, cuja cláusula compromissória será acostada aos instrumentos obrigacionais por escrito, em documento anexo ou redigida em negrito, com assinatura ou visto aposto especialmente para essa cláusula, segundo modelo padrão a ser disponibilizado pela Procuradoria-Geral do Estado — PGE." (grifo dos autores)

Sob pena de provocarem uma hecatombe nuclear no instituto da arbitragem, nos termos delineados pelo Direito brasileiro, indubitavelmente essas e outras regras da legislação goiana — por padecerem de flagrante inconstitucionalidade relacionadas à competência (inconstitucionalidade formal) e por afronta a princípios constitucionais (inconstitucionalidade material) — deverão constituir objeto de ADIn no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Assim, premente e urgente o controle de constitucionalidade da LC-GO 144/2018, com a declaração de inconstitucionalidade, indispensável para defesa das boas práticas da arbitragem no Brasil e no mundo, com a consequente supressão dos artigos de lei e decreto estaduais que afrontam esse estado da arte.

Para além desses pontos, convém mencionar que a legislação ora em análise também prejudica em demasia o enforcement dos contratos firmados com o poder público estadual e as relações negociais no estado de Goiás.

Essas são possíveis consequências advindas tanto do panorama mais geral — isto é, no qual empresas deverão direcionar ou responder a conflitos cujo sentenciamento será dado por agente público vinculado ao Estado — quanto em relação a temas mais específicos, inclusive pecuniários, como o artigo 9º do Decreto, segundo o qual "[a]s sentenças arbitrais que imponham obrigação pecuniária à administração pública estadual serão cumpridas conforme o regime de precatórios ou de obrigações de pequeno valor, nas mesmas condições impostas aos demais títulos executivos judiciais".

Portanto, em que pese a iniciativa (digna de aplausos) de incorporar ao âmbito estadual novas disposições acerca da solução negociada de conflitos envolvendo a administração pública — tendência cada vez mais maximizada —, é de extrema importância que haja uma estrita consonância com o estado da arte e a normatividade federal sobre o tema, sob o risco de serem causados danos irreparáveis às partes envolvidas e ao próprio instituto da arbitragem no Brasil.

 


Referências

OLIVEIRA, Gustavo Justino de; ESTEFAM, Felipe Faiwichow. Curso prático de arbitragem e administração pública. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

 


[2] Disponível em: https://www.procuradoria.go.gov.br/atuacao/camara-conciliacao.html. Acesso em: 2 set. 2022.

[4] Há valiosos precedentes do STJ que confirmam a função jurisdicional da arbitragem. A Corte considera que "a atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza jurisdicional, sendo possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral" (CC 113.260, DJe: 7/4/2011). Também foi o entendimento majoritário no REsp 1.550.260, ressaltando-se o princípio da Kompetenz-Kompetenz; nas palavras do min. Villas Bôas Cueva, "[…] a competência do juízo arbitral precede, em regra, à atuação jurisdicional do Estado para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. A sentença arbitral produz entre as partes envolvidas os mesmos efeitos da sentença judicial e, se condenatória, constitui título executivo" (REsp 1.550.260/RS, DJe: 20/3/2018). Cf., também, Conflito de Competência 111.230/DF, REsp 1.864.686/SP e Conflito de Competência nº 165.678/SP.

[5] Um dos mais notáveis exemplos de câmara pública de autocomposição é a Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Federal (CCAF), vinculada à Advocacia-Geral da União. Instituída pelo Ato Regimental AGU nº 5, de 27 de setembro de 2007, inicialmente era denominada "Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal", nomenclatura que foi posteriormente alterada para evitar uma equivocada hermenêutica a respeito de seu escopo de atuação, à medida que a atuação arbitral da CCAF limita-se ao arbitramento — poder de decisão de órgão ou agente de alto escalão — efetivado por meio da atividade parecerista do consultor-geral da União, não se confundindo, pois, com o instituto previsto na Lei 9.307/1996 (Lei de Arbitragem). Essa também é a inteligência do novo Decreto 11.174, de 16 de agosto de 2022, que diz competir à CGU "promover, por meio de conciliação, de mediação e de outras técnicas de autocomposição, a solução dos conflitos, judicializados ou não, de interesse da administração pública federal" (art. 10, VI) e atribui à AGU o dever de "homologar termo de conciliação firmado no âmbito da Advocacia-Geral da União" (art. 17, XII).