A notória ministra Rosa Weber e a grande Ruth Bader Ginsburg
10 de setembro de 2022, 13h44
Continuando os ensaios comparatistas entre grandes vultos da Suprema Corte americana e do Supremo Tribunal Federal brasileiro, iniciados a partir de texto anterior que espelhou Marshall e Aquino e Castro, sequenciado pelo reflexo espelhado de Story e Gilmar, sempre buscando ressaltar a fundamental relevância das instituições, especialmente daquela que é vocacionada à defesa de todas as demais, sobre a qual Ruy Barbosa escreveria, na edição número um da antiga (e extinta) Revista do Supremo Tribunal, que a Corte Suprema representava: "não só a 'viva vox juris civilis', senão a voz viva da nossa Constituição" [1].
Essa "viva vox constitutionis" precisa ser sensível (sem tibieza) e dura (sem perder a ternura), em se tratando do texto constitucional da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, que menciona Estado Democrático de Direito baseado na cidadania e na dignidade humana (artigo 1º, II e III), para uma sociedade livre, justa e solidária com a erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e com a inclusão radical de todos sem qualquer tipo de preconceitos, sejam eles de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º), com a promessa constitucional de "proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas" (artigo 23, VI), sobretudo num país historicamente marcado pela pesada destruição ambiental aliada à discriminação com recortes de raça, classe e gênero, dificultando (se não impedindo) pretensões de igualdade e democracia.
Com essa diretriz incontornável é que se pode evocar a função política do Supremo Tribunal Federal, na pena forte de Seabra Fagundes [2], ao dizer que "da presença afirmativa e enérgica do mais alto tribunal da República dependerá, nos regimes presidencialistas, em parte substancial, o êxito prático das instituições políticas". E não podia ser diferente.
Aliado a esse aporte de advertência aos desavisados, também recordemos a robusta passagem de A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional, de José Adércio, assinalando que "as Cortes são instrumentos sistêmicos especializados para reunir as dispersões do texto constitucional sobre o horizonte possível das forças políticas, convertendo em código jurídico e idealmente dialógico os embates do mundo da política, por meio da fina membrana porosa entre os dois mundos, a que chamamos de Constituição" [3].
A propósito, quem se der ao trabalho de consultar as primeiras páginas do famoso livro Por Detrás da Suprema Corte (tradução de "The Brethren") [4], de Woodward e Armstrong, observará uma narrativa dinâmica e eletrizante sobre a escolha do presidente da Suprema Corte americana, após o então Chief Justice Earl Warren renunciar, de modo a garantir que o presidente Lyndon Johnson, em final de mandato, pudesse nomear algum nome progressista para sua vaga.
Como se sabe, a escolha recaiu num dos Justices que já integrava a Suprema Corte, Abe Fortas, mas sua indicação foi rejeitada pelo Senado, causando um problema adicional: o próximo presidente eleito, Richard Nixon, pertencente a espectro político diverso, tinha naquele momento de presente, sob sua mesa, a renúncia de Earl Warren, com a possibilidade de indicação conservadora e republicana para a presidência da Suprema Corte, e uma outra vaga que se abriria a partir da aposentadoria do próprio Abe Fortas, demonstrando a complexidade dos arranjos institucionais e de estratégias de decisão para escolha de juízes da Corte Suprema, muitas vezes decorrentes de uma mistura incrível de malícia política aliada a alguma ingenuidade institucional.
No Brasil, a casuística da chamada "PEC da Bengala", aprovada em 7 de abril de 2015, aumentou de 70 para 75 anos a idade de aposentadoria dos ministros dos Tribunais Superiores, do Tribunal de Contas da União e do Supremo Tribunal Federal, para que a então presidente da República Dilma Rousseff não indicasse os próximos cinco ministros da Corte Suprema em substituição aos ministros Celso de Mello (que se aposentaria em novembro de 2015); Marco Aurélio Mello (em julho de 2016); Ricardo Lewandowski (em maio de 2018); Teori Zavascki (em agosto de 2018); e Rosa Weber (em outubro de 2018).
Nesta linha, um terrível acidente aéreo vitimaria fatalmente o saudoso ministro Teori, abrindo uma vaga para a qual seria indicado o ministro Alexandre de Moraes, e as aposentadorias postergadas dos ministros Celso de Mello e Marco Aurélio dariam lugar às indicações, respectivamente, dos ministros Kássio Marques e André Mendonça, após o impeachment de Dilma Rousseff da Presidência da República. Nova casuística "PEC da Bengala" está em discussão no Congresso Nacional para reduzir novamente para 70 anos a idade de aposentadoria dos ministros, o que causaria a aposentadoria imediata dos ministros Lewandowski e Rosa Weber, além de trazer ao próximo presidente eleito em 2022 a possibilidade de indicação das vagas da futura aposentadoria do ministro Luiz Fux (em 2023, ao invés de 2028), da ministra Cármen Lúcia (em 2024, ao invés de 2029) e do ministro Gilmar Mendes (em 2025, ao invés de 2030). Ou seja, cinco indicações, decorrentes de manipulação chapadamente inconstitucional.
É no meio desse caldo de cultura constitucional, de intrincadas e complexas vias político-jurídicas, que será exercida a Presidência da ministra Rosa Weber.
Por este motivo, optamos por espelhar duas grandes juízas da Suprema Corte (americana e brasileira): Ruth Bader Ginsburg (1933-2020) e Rosa Weber, que bem vocalizam toda a exigida sensibilidade constitucional em termos especiais de proteção democrática e de defesa dos direitos fundamentais. A primeira não foi presidente da Suprema Corte, enquanto a segunda inicia um merecido mandato Presidencial agora em setembro de 2022, dois anos após o falecimento de Ruth, numa conexão que desafia obviedades e simplificações, algo que o senso comum teórico dos juristas adora [5].
Mulheres que fazem a diferença, considerado o espectro e o âmbito das batalhas "para alterar o seu próprio destino", com "posicionamentos de radical aversão sócio-política contra padrões e imposições de desigualdade, como a Justice Ruth Bader Guinsburg da Suprema Corte Americana, merecem muito mais que respeito e deferência, como os que foram prestados em dois filmes recentes ('Suprema' e 'A Juíza')" [6], que seguramente sugere a mesma dedicação narrativa à ministra Rosa Weber.
Nascida no Brooklyn, Nova York, Ruth foi indicada pelo então presidente Bill Clinton como Justice da Suprema Corte 1993, em substituição ao Justice Byron White, quando já era uma experimentada advogada defensora dos direitos civis.
Tendo nascido em um ambiente político de pesada desigualdade, "no qual as mulheres valiam muito menos do que os homens, com salários, direitos e garantias incompatíveis, estudou na mais tradicional faculdade de direito dos Estados Unidos (Harvard Law School), sendo uma das nove mulheres entre 500 homens, tendo ouvido do diretor da faculdade a pergunta inescrupulosa, muito embora honesta para o período: 'o que você tem de especial para ocupar uma vaga que deveria ser destinada a um homem'?", e a época não era tão distante.
Mesmo sendo a aluna mais qualificada, não conseguiu a vaga de estagiária-assessora (law clerk) de um dos juízes da Suprema Corte que, ao entrevistá-la, lhe disse que não estavam preparados para contratar uma mulher. Cursou a faculdade cuidando de uma filha pequena, e do marido doente, que ainda demandava a feitura de seus trabalhos de classe, como colega do marido no curso de Direito. Depois de formada, não conseguiu ser contratada pelos escritórios de advocacia, que possuíam política de não contratação de mulheres.
Mesmo com todas essas desigualdades, verdadeira corrida de obstáculos, erigida ao padrão de "política pública nacional" de discriminação, Ruth assumiu como advogada a defesa de causas importantes na defesa dos direitos das mulheres na década de 1970, ganhando importantes vitórias que pavimentaram o caminho para que seu nome fosse equivalente à luta contra a discriminação, até ser nomeada em 1993 para a Suprema Corte como a segunda juíza na história da Corte, fato noticiado pelo The New York Times com a chamada: "Recusada como estagiária-assessora, escolhida como Juíza" [7].
Inúmeros são os casos de impacto emanados da Notória RBG, em analogia ao apelido do rapper Notorious BIG, como passou a ser batizada pela cultura pop. Pela limitação de espaço, escolhemos sua manifestação relevante no pouco lembrado caso "Friends of Earth, Inc. v. Laidlaw Environmental Services, Inc.", (2000), que cuida de um importante caso de defesa ambiental e proteção ao meio ambiente. A decisão, estabelecida pelo placar de 7-2, foi redigida pela Justice Ruth Bader Ginsburg, acompanhada pelos Justices Rehnquist, Stevens, O'Connor, Kennedy, Souter e Breyer. Os Justices Stevens e Kennedy apresentaram uma opinião concorrente, com motivos diversos. A seu turno, o Justice Scalia redigiu uma opinião radicalmente divergente, acompanhado pelo Justice Thomas.
A maioria da Suprema Corte decidiu que os demandantes não precisavam provar um dano real (particular) aos moradores da área poluída por uma fábrica. Escrevendo para a maioria, Ruth Bader Ginsburg sustentou que a lesão adviria da diminuição dos "valores estéticos e recreativos da área" para os moradores e usuários do rio por causa de seu conhecimento das repetidas violações da água potável. Além disso, o caso considerou que uma penalidade civil poderia ser aplicada contra uma empresa mesmo que os interesses protegidos fossem privados, quando a Corte Suprema concordou com o fato de que as penalidades civis nos casos da Lei da Água Limpa "fazem mais do que promover o cumprimento imediato, limitando o incentivo econômico do réu para atrasar a obtenção dos limites de permissão; elas também impedem futuras violações".
Pois bem, espelhando-se a ministra Rosa Weber, podemos fazer algumas reflexões sobre sua importante judicatura, que se torna ainda mais relevante diante da assunção do cargo de presidente do Tribunal, iniciando a "Corte Rosa Weber". Por ocasião da despedida do ministro Luiz Fux da Presidência da Suprema Corte, a ministra Rosa Weber fez uso da palavra para dizer que sua assunção ao cargo "realça a instituição, a instituição Supremo Tribunal Federal, que sobrepaira sobre todos nós", e concluiu, pautando sua perspectiva: "sempre na defesa da integridade e da soberania da Constituição e do regime democrático".
Nascida em Porto Alegre, em 2 de outubro de 1948, possui uma sólida formação acadêmica. Aprovada em primeiro lugar em exame vestibular, ingressou em 1967 na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para bacharelar-se em Ciências Jurídicas e Sociais, igualmente em primeiro lugar, em 1971 como aluna laureada. Ingressa na qualidade de Inspetora do Trabalho do Ministério do Trabalho (DRT-RS), mediante concurso público, de 1975 a 1976, e posteriormente ingressa na magistratura trabalhista em 1976, como juíza substituta, passando por todos os degraus da carreira até ser nomeada ministra do Tribunal Superior do Trabalho, em 2006. Chega ao Supremo Tribunal Federal em 2011, após indicação da presidente Dilma Rousseff.
Dentre os diversos importantes votos da ministra Rosa Weber perante STF, podemos citar, apenas lateralmente, sua manifestação na ADC 44 (sobre a presunção de inocência), na qual disse que os problemas e as distorções "decorrentes da estrutura normativa (…) devem ser resolvidos não pela supressão de garantias, e sim mediante o aperfeiçoamento da legislação processual". Também seria possível citar dezenas e dezenas de outros casos, como sua decisão liminar na ADPF 854 (suspensão do repasse das emendas do orçamento secreto), ou no RE 898.450 (sobre a questão da problematização da tatuagem e da liberdade de expressão nos concursos públicos), ou ainda seu voto vencido no caso do RE 760.931 (sobre a preocupação com os trabalhadores no caso da terceirização) [8].
Contudo, escolhemos sua manifestação nas ADPFs 747, 748 e 749, que suspendeu resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que liberava a exploração de manguezais, citando em diálogo das fontes a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, prestigiando o comando constitucional de proteção do meio ambiente, deferindo a liminar naquele momento para evitar a "degradação de ecossistemas essenciais à preservação da vida sadia", evitando o "comprometimento da integridade de processos ecológicos essenciais e perda de biodiversidade".
Se Rosa Weber for comparada à RBG, em contraste que prestigie um olhar sensível de proteção aos direitos fundamentais, cada uma brilhará com luz própria, é certo, muito embora seja possível perceber que o lenço de Rosa e o colar de Ruth destaquem duas grandes mulheres que enfrentaram desafios grandiosos, e encontraram na "instituição Suprema Corte" o caminho para pavimentar o fortalecimento do direito constitucional, enfrentando violações e desigualdades, afirmando a gramática das liberdades civis e jusfundamentais, protegendo a democracia, o meio ambiente e o estado de direito. São duas das maiores juízas de seus países da história da Corte Suprema. Portanto, merecem todo respeito, deferência e admiração! São Notórias!
[1] BARBOSA, Ruy. Carta ao Sr. Editor, Seção Doutrina. Revista do Supremo Tribunal Federal, v1, pt2, (abr-jul), 1914, p. 6.
[2] SEABRA FAGUNDES, Miguel. A função política do Supremo Tribunal Federal, Revista de Direito Administrativo, v. 134, 1978, p. 1.
[3] SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 894.
[4] WOODWARD, Bob; ARMSTRONG, Scott. Por Detrás da Suprema Corte. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 11-34.
[5] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Revista Sequência, v. 3, n. 5, 1982.
[6] LIMA, Dinah. (Des)Construindo a Paisagem da (Des)Igualdade: um olhar sobre a (des)igualdade de todas perante a Lei, convertida na (des)igualdade das mulheres perante os Tribunais. Em: MELO, Ezilda. Por uma estética-artística feminista do direito. São Paulo: tirant lo blanch, 2020, p. 91.
[7] Conforme a matéria, Ruth teve sérias dificuldades como Clerk, sendo discriminada com base no gênero. Disponível em: https://www.nytimes.com/1993/06/15/us/rejected-as-a-clerk-chosen-as-a-justice-ruth-bader-ginsburg.html, acesso em 5/7/2021.
[8] No importante voto vencido, o apelo ao respeito a certos direitos fundamentais, num importante diálogo. No voto, dentre diversas citações, a referência ao importante texto de Fredie Didier Jr. e Daniela Bomfim, sobre a carga probatória antecipada pelo legislador. Sobre uma das formas de diálogo, há recente e instigante texto de Paula Pessoa e Maria Letícia Borges. Cfr. DIDIER, Fredie e BOMFIM, Daniela. Prova por amostragem e distribuição do ônus da prova no processo administrativo. In Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, Ano 2, vol. 10, julho/2014, RT, p. 132-3; e, PEREIRA, Paula Pessoa. As virtudes passivas da ADPF versus as virtudes ativas dos precedentes, Conjur de 3/9/2022.
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