Opinião

Prevalência ou não em relação às regras de uso e ocupação do solo

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9 de setembro de 2022, 19h23

Sem prejuízo de a Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979 [1] (Lei de Parcelamento do Solo) ter sido publicada há mais de três décadas, ainda é controversa a questão relativa à prevalência das restrições construtivas estabelecidas pelo loteador quando da aprovação e execução de loteamento, em especial quando diversos anos se passam e essas restrições conflitam com as modificações desejadas para determinada região da cidade, que não mais comportam o uso e ocupação anteriormente pretendidos.

As restrições estabelecidas pelo loteador objetivam padronizar a construção e usos inicialmente idealizados para a gleba loteada, observada a legislação vigente quando da sua aprovação. Entretanto, com o passar dos anos e com o desenvolvimento da cidade, pode ser necessária a revisão dessas restrições para sua adequação à nova realidade da região onde o loteamento se localiza, ao uso dado ou pretendido pela população que o ocupa, etc., conforme estabelecido no plano diretor de cada cidade.

Diante deste cenário, devem prevalecer as restrições convencionais do loteador ou devem elas ser interpretadas de forma a acomodar o que a legislação municipal vigente autoriza? Para entendermos melhor a questão e respondê-la, é necessário analisar brevemente o histórico da legislação aplicável ao parcelamento do solo urbano e às regras de uso e ocupação do solo.

No Brasil, o processo de urbanização se intensificou em meados da década de 30, em resposta à segunda e à terceira revoluções industriais, momento no qual se intensificou o êxodo rural. Neste cenário, o ordenamento jurídico brasileiro a respeito do parcelamento do solo era ínfimo. Portanto, o governo federal editou o Decreto–Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, que à época representava uma revolução na legislação de urbanização — no entanto, este referido dispositivo, tão somente versava sobre aspectos registrais e contratuais.

Com o passar dos anos, e a majoração da população urbana, houve o crescimento desordenado das cidades, com a implantação de loteamentos irregulares e a construção de moradias tumultuosas, de forma que surgiu a necessidade de modernização da legislação, para que nela fossem inseridos os aspectos urbanísticos, registrais, contratuais e até penais.

Após o Decreto-lei nº 58 foi sancionada a Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, à luz da Constituição Federal de 1967, dando uma solução para os problemas urbanísticos, muito embora saibamos que a legislação não tenha acompanhado o ritmo de avanço da sociedade.

Neste cenário, a Lei de Parcelamento do Solo, com caráter urbanístico, permitiu ao loteador que implementasse restrições convencionais, aplicáveis a todos os adquirentes de lotes, visando o bem estar da coletividade e manutenção das características daquele bairro loteado, ou seja, obrigações de natureza propter rem.

Vale ressaltar, contudo, que mencionada lei concedeu a elas caráter supletivo em relação à legislação municipal aplicável, conforme ditames do inciso VII do artigo 26 do referido diploma legal. Por conseguinte, a melhor interpretação, no nosso entendimento, é no sentido que as restrições não podem contrariar eventual legislação municipal.

Com a promulgação da Constituição de 1988, o constituinte originário delegou aos Municípios, através do artigo 30, VIII, a organização de seus territórios, permitindo que o Executivo, em conjunto com o legislativo municipal, versasse sobre a expansão urbana por meio do Plano Diretor, como dispõe o artigo 182 da Carta Magna.

Assim, podemos observar que a Constituição Federal expressamente atribuiu essa competência do ordenamento do uso do solo urbano para o Município, limitando, reflexamente, a aplicação das regras unilateralmente impostas pelo loteador. Ademais, cumpre consignar que as restrições convencionais são impostas unilateralmente pelo loteador, caracterizado como de interesse privado, o que em nenhuma hipótese pode se sobrepor ao interesse público, que é manifestado pela aprovação de leis de zoneamento e uso do solo produzidas pelo poder legislativo municipal após debate com a sociedade.

A esse respeito, cumpre explorar, ainda que brevemente, a legislação decorrente da aplicação dos artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, qual seja, a Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 [2] (Estatuto da Cidade), que disciplina o desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, em detrimento da lógica individualista que era vista no Código Civil de 1916.

Nesse sentido, com o fim de basilar a execução de políticas urbanas pelos municípios, o Estatuto da Cidade determina um arcabouço principiológico que regerá, em muito, as formas de instituição das restrições convencionais, qual seja, a garantia do direito a cidades sustentáveis, no qual se compatibiliza, por exemplo o direito à terra urbana, à moradia, ao transporte, ao saneamento ambiental, dentre outros aspectos que possam compor uma noção de bem-estar na habitabilidade urbana.

Com esse tom, o estatuto da Cidade, já em seu artigo 2º, VI, destaca a vedação da utilização inadequada de imóveis urbanos, a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes do solo, o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivo ou inadequado em relação à infraestrutura urbana, a instalação de empreendimentos ou atividades que funcionem como polos geradores de tráfego sem a previsão de infraestrutura correspondente para este atendimento, a retenção especulativa de imóvel urbano — tão praticada no cenário brasileiro — que resulte na subutilização ou não utilização do espaço urbano, a deterioração das áreas urbanas, a poluição e degradação ambiental e a exposição da população a riscos de desastres.

Conquanto, aqui, estejamos tratando de vedações legais à forma de organização urbana, e não propriamente das restrições convencionais que são possibilitadas dentro da legislação aplicável, é totalmente compreensível que essas terão de respeitar aquelas, com o fim de atender a compreensão exarada pelo legislador originário.

Além disso, o estatuto determina que a política urbana possua uma gestão democrática, acessível à participação popular e às associações com representação da comunidade afetada, além da cooperação entre governos e iniciativa privada, a distribuição espacial da população no planejamento e desenvolvimento das cidades, e a ordenação e controle do uso do solo, a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização, somente para citar alguns exemplos.

Para isso, o Estatuto da Cidade abre sua caixa de ferramentas no que se refere ao planejamento urbano pelos municípios com instrumentos como o plano diretor e a disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo, ambos abordados neste artigo, mas também o zoneamento ambiental, a gestão orçamentária participativa, o plano plurianual, dentre outros.

Também é de grande relevância que o Estatuto da Cidade seja o regulamentador do conceito de "plano diretor", conforme seu Capítulo III, que é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.

O Plano Diretor Municipal é o principal instrumento norteador para o planejamento do desenvolvimento urbano. Esse importante instrumento é regulamentado pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade, conforme já mencionado. Sua principal finalidade é disciplinar a função social da propriedade, organizando e permitindo um bom uso do espaço urbano, zelando pelo desenvolvimento sustentável e abrangendo toda a população. Ainda que se fale em propriedade privada, a propriedade precisa cumprir sua função social, respeitando as restrições impostas pelo Poder Público, que visa atender o bem comum.

Diante disso, entende-se que o principal objetivo do Plano Diretor é assegurar à população uma melhor qualidade de vida, espelhando-se na simetria entre o tamanho populacional e as possibilidades materiais dos espaços urbanos.

Por ser instrumento de grande relevância e impacto, a elaboração do Plano Diretor de um município não é um processo célere, e aqueles já elaborados precisam ser revisados a cada dez anos, para que se possa atender outros planos e projetos que caminham com a evolução da sociedade, por exemplo, habitação, mobilidade urbana, saneamento básico, entre outros.

Em suma, o Estatuto da Cidade busca trazer, para o debate da urbanização, uma perspectiva mais equitativa na busca por qualidade de vida por acesso aos equipamentos de vivência urbana, de forma democrática, para a população que integra a cidade. Esse parece ser um ponto de grande relevância e que dialoga com a lógica de bem-estar social presente na Magna Carta de 1988.

Desta forma, conclui-se que a restrições convencionais podem prevalecer desde que não colidam com a legislação vigente. No Município de São Paulo, por exemplo, o artigo 59 da Lei Municipal nº 16.402/16, que estabelece que, em determinadas regiões, as restrições convencionais de loteamento referentes a dimensionamento de lotes, recuos, taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento, altura e número de pavimentos das edificações, deverão ser atendidas quando mais restritivas que as disposições da lei, enfatizando, portanto, o caráter supletivo dessas restrições.

Assim, considerando todas as etapas e exigências legislativas para a criação das normas de uso e ocupação do solo, não é lógico (e nem constitucional, no nosso entendimento) que elas devam estar subjugadas às restrições convencionais impostas pelo loteador, sob pena de o desenvolvimento urbano estar "engessado" pela vontade do loteador, com nítida desvalorização do interesse público refletido nas leis editadas de acordo com o processo legislativo.

________________ 

[1] Brasil. Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6766.htm. Acesso em 25/08/2022.

[2] Brasil. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em 25/08/2022.

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