Os segregadores efeitos da reversão do caso do aborto nos Estados Unidos
9 de setembro de 2022, 14h03
O delineamento jurídico da celeuma americana à respeito da questão do aborto pode ajudar a discussão brasileira na controversa arena constitucional. Nos Estados Unidos, a reversão do precedente criado pelo caso Roe v. Wade (1973) acarretou reação tanto da fração social favorável à terminação espontânea da gravidez (pro-choice), quando da porção contrária (pro-life). Mais do que uma simples permissão ou negativa para o ato da gravidez indesejada, o tratamento dado pela Suprema Corte ao aborto configura um regramento do escrutínio constitucional da limitação do exercício de direitos fundamentais não expressamente previstos nas dez primeiras emendas à Constituição americana (Bill of Rights).
Num resumo pragmático a reversão aprovada na Supremo Corte americana definiu que: mulheres de boa condição financeira vão fazer aborto em Nova Iorque, enquanto as desfavorecidas do Mississipi terão filhos indesejados. Os efeitos sociais da alteração da legislação nos EUA são segregadoes. Ela cria uma espécie de state shopping.
Em Roe, a Corte determinou que o direito fundamental relevante a ser objeto de proteção constitucional era o da "privacidade". A despeito de tal direito não estar expresso nas dez emendas, ele derivaria de uma teoria chamada "substantive due process", ancorada na defesa à "vida, liberdade e propriedade", prevista na 14ª emenda da Constituição americana. Desde o começo do século, pretensões não enumeradas literalmente nas normas constitucionais, sob tal justificativa, vem sendo colocadas sob o véu de garantias erigido pela Corte Suprema dos EUA. Tais direitos implícitos estariam numa "penumbra" advinda da extensão de várias garantias explícitas (U.S. v. Carolene Products,1938).
Em realidade, ao reverso da privacidade genérica da mulher, Roe garantiu a privacidade decisional do indivíduo (decisional privacy). Antes da viabilidade do feto ter sido alcançada, o que a decisão convencionou ocorrer ao final do primeiro trimestre da gestação, não haveria interesse essencial (compelling interest) de qualquer ente federativo em diminuir o direito da mulher à escolha da interrupção de sua gravidez. Neste interstício, qualquer norma ou decreto oriunda de ente legislativo ou governamental que restringisse o direito ao aborto se submeteria ao escrutínio constitucional estrito (strict scrutiny). Para sobreviver a este teste, estas normas, além de atender a um compelling interest, devem ser o mais específicas possíveis à proteção este interesse (narrowly taylored), o que obsta a edição de normas restritivas genéricas e não atinentes precisamente ao objetivo buscado pelo ente público que as emanou. Assim, o Estatuto do Texas que criminalizava o aborto em qualquer período foi derrubado por inconstitucionalidade, durante a aplicaçao do escrutínio estrito efetuado no caso Roe.
Para um tribunal aplicar o escrutínio estrito, o legislador/administrador deve ter aprovado lei ou decreto que infrinja um direito fundamental ou envolva uma discriminação contra um indivíduo ou classe de indivíduos envolvidos numa das "classificações suspeitas" (suspect classifications) elencadas pela Corte em decisões prévias. Estão entre as classificações suspeitas: discriminações de raça, de nacionalidade e de religião.
Abaixo desse escrutínio, há o teste constitucional de base racional (rational basis). Para passar neste teste, a lei ou ato administrativo deve atender um interesse estatal legítimo (legitimate interest), de menor relevância constitucional que os interesses essenciais, e deve haver uma conexão racional entre os objetivos destas normas e tal interesse. Este controle de constitucionalidade se aplica a casos que não envolvam direitos fundamentais, como os previstos no Bill of Rights ou alçados ao mesmo nível de importância pelo substantive due process. Também não podem envolver as tais classificações suspeitas.
Basicamente, o que o recente caso Dobbs v. Jackson Women's Health Organization decidiu é que o direito à privacidade decisional quanto ao aborto não se insere nas categorias de direitos fundamentais, e, restrições à ele, não atingem uma classificação suspeita. Embora a Suprema Corte não tenha rejeitado completamente o conceito de substantive due process, ela não reconheceu mais categorias de "direitos fundamentais" que não estejam expressas no texto da Constituição ou em tradições históricas enraizadas (deeply rooted historical traditions). O Estatuto do Mississippi analisado no caso que provocou a reversão passou no escrutínio constitucional sob rational basis, sendo certo que sua inconstitucionalidade seria decretada sob o strict scrutiny.
No Brasil, a grave e socialmente relevante discussão do tratamento legal do aborto deve observar os acertos, e os erros, de democracias mais sedimentadas que a nossa, em um contraditório sadio, na sociedade, no Parlamento e no Judiciário. O vínculo dos interesses sociais e políticos envolvidos na sua abordagem pela Constituição deve ser levado em conta para não reforçar a existência de duas classes de mulheres.
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