Democracia brasileira é real ou meramente "pro forma"?
1 de setembro de 2022, 20h34
Li a declaração do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, acerca das manifestações golpistas, proferidas por um grupo de empresários em grupo de WhatsApp. Apesar de salientar, logo de cara, que se trata de um crime, atentar contra democracia, este classificou a atitude como suicida, justificando "seu voto" afirmando que "investidores vão embora, vai gerar desemprego no nosso país, vai gerar saída de capitais, vai fazer com que os nossos capitalistas mandem dinheiro para fora, porque vai ter uma desvalorização brutal da nossa moeda. Isso é loucura…" [1].
Imediatamente, me lembrei da famosa frase de Winston Churchill, primeiro-ministro britânico durante a 2ª Guerra Mundial, de que "a democracia é o pior dos regimes políticos, mas não há nenhum sistema melhor que ela". Em que pese o conceito de democracia não ser mais entendido como uma forma de governo, mas sim um sistema de organização política, a frase tem lá sua validade sócio-jurídica.
Falar em democracia brasileira é se falar numa mentira tão bem construída que se tornou uma verdade. Isto porque o conceito democrático aqui adotado é calcado meramente em duas bases: no conceito de igualdade formal, ou seja, de que todos são iguais perante a lei e, consequentemente, de que todos os votos têm, portanto, o mesmo peso; e na democracia formal, isto é, aquela praticada através de competente processo eleitoral. Mas será que só a igualdade e o voto bastam para afirmamos, de forma segura, justa e equânime de que o Brasil é, de fato, um país democrático? A resposta, me parece, que não.
Um país só será verdadeiramente democrático se houver uma isonomia material, ou seja, em que sejam respeitados e concretamente efetivados os direitos fundamentais individuais e sociais básicos, elencados em nossa Constituição. Por igualdade material, colacionamos trecho do acórdão da lavra do ministro Ricardo Lewandowski, o qual nos elucida com brilhantismo:
"O princípio da igualdade (art. 5º, caput, da CF), considerado em sua dimensão material, pressupõe a adoção, pelo Estado, seja de politicas universalistas, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de políticas afirmativas, as quais atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo-lhes certas vantagens, por um tempo definido, com vistas a permitir que superem desigualdades decorrentes de situações históricas particulares" (ADPF 738 MC-Ref, relator(a): Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 5/10/2020, processo eletrônico DJe-260, divulg.: 28/10/2020, public.: 29/10/2020).
Em que pese não haver hierarquia entre direitos fundamentais, sem igualdade material não há que se falar em liberdade ou, mesmo, em dignidade da pessoa humana, princípio máximo de nosso Estado Democrático e Social de Direito. A igualdade meramente formal não satisfaz mais os anseios sociais para desconstrução de barreiras culturais, sociais e econômicas erguidas em desfavor de determinados e específicos seguimentos sociais considerados mais vulneráveis.
Sem direitos básicos, há desigualdade e, com esta, há não só ausência de participação política das classes mais vulneráveis, mas também em maior risco não apenas de manipulação da vontade das pessoas, como também de compras de votos.
Nossa democracia é, se não uma falácia, no mínimo, frágil, não por ser relativamente nova, já com seus 34 anos de idade. Seus alicerces decorrem dos direitos e garantias dos cidadãos assegurados pela Constituição de 1988. Entretanto, assim, como uma casa mal-acabada, ainda temos tijolos e reboco aparentes, fiação e encanamentos à mostra, janelas e portas que não fecham ou que emperram.
Não basta, portanto, ter uma casa com uma fundação sólida, porém, que não tenha sido devidamente finalizada, sob pena desta apresentar, com o passar dos anos, infiltrações, rachaduras, vazamentos, etc.
É preciso corrigir erros — como, uma boa base educacional, superação de desigualdades de determinadas classes sociais, reforma de leis importantes como o Código Penal e de Processo Penal, novas regras sobre participação política da sociedade — que se arrastam ao longo dos anos, não por um mero esquecimento da nossa classe política, mas por uma omissão consciente e velada.
É óbvio que numa democracia em que hajam tantas desigualdades sociais, a classe que esteja mais economicamente subjugada e, portanto, mais vulneráveis, não pode deixar a cargo das elites brasileiras o poder de fazer ou não políticas sociais. Ademais, os mais pobres são mais facilmente manipuláveis por falsas informações e/ou promessas de campanha, além de aceitarem passivamente violações de seus direitos civis, trabalhistas e previdenciários, sob a justificativa de "melhora da economia".
Estes verão como um grande favor ou ato de mera bondade a instituição de políticas públicas que lhe são dirigidas, as quais são obrigações de todo e qualquer governante, quando, em verdade, estas são deveres inerentes aos cargos eletivos e dos chefes do Executivo, em seus vários níveis.
Neste sentido, a democracia, da forma como a aqui praticada, favorece a classe econômica mais rica, concentrando o poder nas mãos da chamada "elite" brasileira. O constitucionalista José Afonso da Silva, inclusive, chama de "elitismo democrático" [2] (ou elitismo dirigente). Para as tais "elites", elas estão mais bem preparadas para entender e oferecer os anseios da sociedade. Toma-se o povo como um organismo incapaz de pensar e de entender o que é melhor para si, cabendo às elites a árdua tarefa. É uma tremenda ingenuidade pensar que os mais privilegiados irão fazer políticas públicas que tendam a reduzir as desigualdades sócio-econômicas, em detrimento de seus próprios privilégios.
Nossa política é, assim, idealizada — e inclusive nomeada pelos políticos de carreira e pela mídia — como um "jogo". Percebe-se isso quando se falam frases do tipo "é preciso atrair determinada classe" ou “"é preciso ganhar os votos das mulheres", por exemplo. Ou quando os políticos fazem comícios longe de seus redutos, justamente para tentar angariar votos em lugares aonde não tenham votação tão expressiva. Não há um engajamento real. Pelo menos, por parte dos chamados "políticos de profissão", ou seja, aqueles que defendem a meritocracia e que se perpetuam por longos anos no poder, não porque "sacrificam" suas carreiras em prol do povo, mas porque traçam um plano de poder travestido de "plano de governo".
É importante lembrarmos que vivemos num sistema capitalista, o qual se serve da desigualdade, de modo a favorecer uns em detrimento de outros. O capitalismo necessita deste modelo de disparidade socioeconômica. Ele cresce em sistemas de organização política como o nosso. Torna-se mais fácil manipular os mais vulneráveis através do antigo mecanismo das falsas promessas (ou promessas de campanha) e, agora, do moderno sistema das fake news, importado dos Estados Unidos para cá por políticos da velha política. Nossa classe política domina a arte de falar, mas não dizer nada.
Para alguns candidatos, torna-se muito mais importante espalhar notícias falsas, do que prestigiar debates ou apresentar projetos de governo e soluções aos problemas mais endêmicos do nosso país.
Com relação ao processo eleitoral — e aqui me refiro às eleições — nossos políticos souberam nos fazer acreditar que o voto, por si só, já afirma o suposto compromisso deles com a democracia. Em verdade, superou-se o voto estamental pré-revolução francesa, para se criar o voto manipulado (e até o comprado). Não é à toa que a classe política é fechada, burguesa, patrocinada ou patrocinável, para não se dizer vendável.
Não é à toa que, nas eleições, qualquer um pode fazer propaganda, desde que filiado a algum partido, entretanto, apenas os que podem pagar (por campanhas mais bem construídas) é que são eleitos. Não é à toa também que as leis são influenciadas por poderosos lobbys e que vivemos uma corrupção política endêmica e naturalizada e que agora, mais do que nunca, se espraia para outras instituições, outros órgãos de Estado.
A crise democrática em que vivemos é tão grave, que assistimos passivos uma presidenta [3] sofrer um violento (e machista!) processo de impeachment em razão de uma suposta "pedalada fiscal" e, em contrapartida, quando praticados reiterados crimes de responsabilidade pelo chefe do Executivo em exercício, falar e fazer atrocidades numa situação de pandemia, a sociedade e os órgãos de Estado agem como se estivessem anestesiados.
Normalizam-se ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e, especificamente àqueles ministros que proferem decisões desfavoráveis aos interesses do governo; ou, como vimos recentemente, ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e às urnas eletrônicas, visando colocar em dúvida o nosso sistema eleitoral, justamente, com o objetivo de um eventual golpe de Estado.
A fragilidade da nossa democracia está no fato de que ela não é exercida em seu sentido material, isto é, ela não é realizada para o fim de concretização dos objetivos do Estado democrático de Direito, previsto no artigo 3º da Constituição. Nossa democracia se mostra frágil, falha, obsoleta e meramente pro forma, na medida em que prestigia-se muito mais um suposto rigorismo fiscal ou a proteção à economia do país, do que ameaças flagrantes de ataque à ela própria. Ameaças, num regime democrático, devem ser encaradas como um ato grave e que devem ser pronta e exemplarmente coibidas. Equiparam-se a uma ameaça de morte.
Ataques à democracia, seja via WhatsApp, pessoalmente ou por "faixinhas" — como disse o candidato Bolsonaro em sua última entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo — diante do Congresso ou do STF não se enquadram como liberdade de expressão. Liberdade de expressão não é liberdade de ameaçar ou liberdade de agredir. A liberdade de expressão, assim como outros direitos fundamentais, possuem limites, contornos constitucionalmente delimitados e que devem ser respeitados.
Se a democracia fosse uma pessoa, ela seria, com certeza, uma mulher, contra a qual ameaças são "só" ameaças e para as quais, fazemos vista grossa e pouco caso. Quando morta, deixam seus filhos órfãos e traumatizados para o resto da vida. Entretanto, no caso dessa específica "mulher", temos uma "Lei Maria da Penha" que é chamada de Constituição e devemos "meter a colher", sim!
[1] https://www.cartacapital.com.br/politica/toffoli-afirma-que-empresarios-defensores-de-golpe-apos-as-eleicoes-sao-suicidas/, acesso em 19/8/2022.
[2] AFONSO DA SILVA, JOSÉ. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014, pág. 129.
[3] Aqui, gosto de ressaltar as palavras muito lúcidas e firmes de Pilar Del Rio, jornalista, escritora, tradutora e presidente da Fundação José Saramago, para a etimologia da palavra "presidenta", para qual "a palavra não existia, porque não existia a função. Existe a função, existe a palavra que denomina a função" (trecho do documentário "José e Pilar", dirigido pelo português Miguel Gonçalves Mendes.
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