Opinião

Jurisprudência da liberdade de expressão está em construção desde 1988

Autor

  • Gustavo Ferreira Santos

    é professor doutor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco do programa de Pós-Graduação em Direito da própria universidade ex-coordenador da area de Direito na Capes (2016-2018) ex-coordenador adjunto para Mestrados Profissionais da Área de Direito na Capes (2014-2016) ex-coordenador adjunto da Área de Direito na Capes (2008-2011) membro do REC (Grupo Recife de Estudos Constitucionais) e pesquisador PQ 2-CNPq.

29 de outubro de 2022, 9h09

Nos últimos dias, muito tem se falado sobre decisões do Tribunal Superior Eleitoral que determinaram restrições a determinados agentes em redes sociais. Os críticos das decisões judiciais evocam a "liberdade de expressão", acusando o tribunal de proibir determinados discursos. Os que defendem as decisões comemoram ver uma justiça eleitoral ativa no combate a um dos mais graves problemas nas democracias constitucionais nos últimos anos: as campanhas profissionalizadas de desinformação.

Uma visão simplista de liberdade, tão romântica quanto perigosa, a tomaria como um direito de tudo fazer. Seria livre, nessa visão, o ser humano que não tivesse qualquer freio entre o seu querer e o seu agir. Esse poder individual de fazer tudo que deseja inviabilizaria a vida em sociedade. Nele estaria incluído o "direito" de matar, o "direito" de roubar, o "direito" de ofender. Em um Estado constitucional, os direitos fazem parte de um sistema que inclui outros direitos e outros interesses consagrados na Constituição, sendo, por isso, cotidianamente limitados, restringidos, de forma legítima.

Não há, em um Estado constitucional, liberdades absolutas. Seria razoável alguém argumentar que atropelou outra pessoa por ter ela ficado na frente do seu carro impedindo o exercício da sua "liberdade de locomoção"? Seria razoável usar a defesa da "liberdade de culto" para não punir membros de uma religião que fizesse sacrifícios humanos? Seria razoável alguém alegar que tem o direito de vender comida estragada por estar exercendo sua liberdade de comércio?

Não é diferente com a liberdade de expressão. Seria legítimo falar em um direito fundamental a ofender ou a enganar? Evidentemente, que não. O poder de fala dos indivíduos já tem, há muito tempo, limites aceitos, consolidados. Não estamos falando de ditaduras, onde um grupo mantém estruturas de controle dos discursos. Estamos falando de democracias constitucionais. Há diversos crimes que são executados através da palavra. Quando falamos isso, já pensamos em injúria, calúnia e difamação. São exemplos mais óbvios. Mas, há diversos outros crimes que, também, são cometidos com a fala.

Quem induz ou instiga alguém a suicidar-se comete crime (Código Penal, artigo 122). Quem ameaça causar a alguém um "mal injusto e grave" comete crime (Código Penal, artigo 147). Quem divulgar, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem comete crime (Código Penal, artigo 153). Quem revela, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem comete crime (Código Penal, artigo 153). Quem obtém, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento comete crime (Código Penal, artigo 171).

Esses exemplos mostram que, para proteger determinados bens ou valores, há limites legítimos ao discurso. Todos esses discursos são, ao mesmo tempo, ações, que visam causar danos a outras pessoas. É assim, também, o caso do discurso do ódio, que estigmatiza e ataca minorias, ou da desinformação (fake news), que tenta enganar o cidadão-eleitor com conteúdos mentirosos ou manipulados. Pelo menos desde 2016, após a eleição de Trump e o plebiscito do Brexit, o mundo busca respostas eficazes contra esses problemas, enquanto assiste a uma crise da democracia[1][2].

A relação entre Estado e liberdade é motivo de preocupação, desde sempre. Na origem do Estado constitucional, havia consciência dos perigos para a liberdade que o Estado representava, mas, também havia a clareza de que o Estado é fundamental para garantir as liberdades. Em um primeiro momento, destacavam-se, nessa garantia, instituições de segurança e instituições judiciais. Com a complexificação da vida social, consequentemente o Estado ficou mais complexo e a sua atuação em diversos campos mostrou-se importante para promover direitos. Tome-se como exemplo a prestação de serviços sociais, como educação e saúde.

A liberdade econômica de uns, por exemplo, pode ser ameaçada pelo exercício da mesma liberdade econômica por outros, quando há formação de cartéis, monopólios, oligopólios, combinações de preço, entre outras práticas anticoncorrenciais. Para garantir tal liberdade, é fundamental a existência de autoridades com poder suficiente para punir quem adota tais práticas. Ao impedir uma determinada estratégia de uma empresa por considerar ofensa à concorrência, o Estado estará promovendo a liberdade econômica de vários em detrimento de quem usava abusivamente a sua liberdade.

O período eleitoral é um período especialmente regulado. Apesar de não se reduzir a democracia às eleições, elas representam elementos centrais do regime. Trata-se de um período curto, com consequências a longo prazo. As decisões decorrentes das escolhas eleitorais atingirão a todos, não apenas aos que escolheram os candidatos vitoriosos.

Quando falamos em eleições, estamos falando no exercício de uma liberdade: a liberdade de escolha. Essa liberdade é fundamental para a existência e funcionamento da democracia. A atividade de autoridades públicas responsáveis pela integridade das eleições é uma atividade de promoção de direitos. Nessa promoção da liberdade de escolha eleitoral, há uma regulação muito maior dos discursos. Há uma especificidade no tratamento da “liberdade de expressão eleitoral”[3].

Os limites que a justiça eleitoral tem imposto à desinformação podem conter erros, como toda atividade humana,. Mas, a omissão não é uma opção razoável. Na era da internet e, nela, das redes sociais, a omissão faria o processo eleitoral ser regido lei do mais forte, do que grita mais ou do que mente mais. A velocidade da informação nas redes é, também, a velocidade dos ataques à democracia e às instituições. A resposta precisa ser rápida e, uma vez ou outra, pode ser excessiva ou falha.

Não podemos, no entanto, pinçar um ou outro caso de erro e usar como deslegitimador da atividade reguladora. A liberdade de expressão, como vimos, não é absoluta e a atividade reguladora é essencial para a democracia. Além de trabalhar na velocidade das redes, tendo que responder com urgência a novos problemas que surgem no cotidiano da campanha eleitoral, a justiça eleitoral trabalha com um passado consolidado de decisões. Nesse repertório, vamos nos protegendo do arbítrio judicial. Há uma jurisprudência sendo construída desde 1988 que vai desenhando o espaço protegido da liberdade de expressão, que reconhece o poder ofensivo de determinados discursos e que sabe que determinadas restrições podem representar a proteção da vida, da liberdade e da democracia.


[1] Discutimos o tema no nosso "Fake democracy: a internet contra a democracia constitucional" (São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021)

[2] V-DEM Institute. DEMOCRACY REPORT 2022. Autocratization Changing Nature? https://v-dem.net/media/publications/dr_2022.pdf

[3] Para aprofundar o entendimento dessa especificidade, recomendo o excelente “Propaganda eleitoral: poder de polícia e tutela provisória nas eleições” de Alexandre Freire Pimentel (2ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022) e a tese de José Guerra de Andrade Lima Neto, Liberdade de expressão em períodos eleitorais brasileiros: perspectivas a partir das decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral (http://tede2.unicap.br:8080/handle/tede/1636).

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!