Opinião

CPC/2015 e princípio da concentração na matrícula do imóvel (parte 1)

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27 de outubro de 2022, 16h04

Apesar de todo o progresso da legislação ao longo de quase meio século, a insegurança jurídica persistiu e chegou até os nossos dias. Em São Paulo, houve casos recentes de ineficácia da escritura em decorrência até de execução de dívida ativa já prescrita. Essas perdas causaram estranheza porque desde as últimas décadas do século 20, o legislador vem trabalhando para dar segurança às transmissões imobiliárias. Além das profundas mudanças em toda a legislação, há sete anos foi instituído no Brasil o princípio da concentração na matrícula do imóvel, justamente para proteger o adquirente de boa-fé, e tudo parecia bem. Qual seria então o fundamento legal dessas perdas recentes?  

Ante a instigante dúvida, resolvemos investigar e empreendemos intensa pesquisa na jurisprudência para entender o ocorrido. O resultado nos leva a uma inevitável reflexão, sobretudo neste momento de restrição do acesso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

No entanto, para bem compreender o resultado da pesquisa é preciso primeiro relembrar a evolução de toda a legislação disciplinadora das transmissões imobiliárias ao longo de quase meio século. Transcrevemos abaixo, em ordem cronológica, o surgimento dessas leis.    

Século 20: No século passado, o ônus da verificação da regularidade na compra do imóvel era só do adquirente. Cabia a ele obter as certidões de feitos. Mas, naquela época já havia a preocupação do legislador com a equidade e com a publicidade para segurança do sistema.

Em 1973: averbação das ações reais e pessoais reipersecutórias na matrícula do imóvel: A Lei de Registros Públicos trouxe a possibilidade de averbação da citação das ações reais [1] e pessoais reipersecutórias [2] na matrícula do imóvel.  O intuito era o de dar aos credores a publicidade de seus direitos na matrícula do imóvel, reduzindo a insegurança do sistema (artigo 167, I, item 21 da Lei 6.015/1973).

Em 1985: o adquirente era responsável pela obtenção das certidões: A Lei nº 7.433/85 impôs ao adquirente a obrigação de obter as certidões de feitos, mas mesmo assim havia o risco das ações em trâmite em comarca distante. Em vista dessas limitações, não raro o imóvel era atingido por constrição vinda de comarca longínqua, não alcançada pela busca. Essa exigência das certidões de feitos deixou de existir em 2015, quando essa lei foi modificada pelo princípio da concentração na matrícula do imóvel, como adiante demonstrado.

Século 21: publicidade das ações a cargo do credor: Já no início do nosso século, o legislador passou a dividir esse ônus da segurança jurídica com o credor. A lei concedeu a ele os meios necessários para dar publicidade ao seu crédito mediante averbação da existência da ação ou da execução na matrícula do imóvel. O objetivo era dar a ele a garantia de satisfação de seu crédito e, por via de consequência, aumentar a segurança do sistema para o comprador de boa-fé. Em seguida, veio a previsão legal da indisponibilidade na matrícula do imóvel. Acompanhemos a seguir essa evolução.

Em 2005: CTN  indisponibilidade do imóvel e publicidade na matrícula: A Lei Complementar nº 118, de 2005, introduziu o artigo 185-A no Código Tributário Nacional (CTN), nos seguintes termos: "Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial". (Incluído pela LCP nº 118, de 2005).

A indisponibilidade, uma vez averbada na matrícula, impede a transmissão do imóvel por qualquer tipo de contrato. Sua finalidade é preservar íntegro o direito do credor.

Em 2006: CPC/73 deu ao exequente meios para dar publicidade à execução desde o ajuizamento da ação: A  Lei nº 11.382, de 2006 introduziu novo artigo no  Código de Processo Civil/73, dando ao exequente meios para dar publicidade ao seu crédito na matrícula do imóvel, nos seguintes termos: Artigo 615-A"O exequente poderá, no ato da distribuição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006)".

Em 2009: o STJ passou a exigir registro para o reconhecimento da fraude à execução: Seguindo essa nova tendência, a Súmula 375 do STJ, de 30.03.2009 [3], assim estabeleceu: "O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente". Essa súmula é resultado de 21 decisões do STJ.

Em 2014: o CNJ instituiu a Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB): As indisponibilidades on line em todo o país conferiram rapidez à publicidade, dando maior segurança ao sistema. Desde então, a consulta a essa central passou a ser obrigatória pelos tabeliães de notas em todas as transmissões de imóveis (Provimento CNJ nº 39, de 25.07.2014).

Em 2015: CPC/2015  reconhecimento da fraude à execução depende de averbação na matrícula do imóvel: O Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16.03.2015, reforçou a necessidade de o exequente dar publicidade de seu crédito a terceiros, distribuindo o ônus com o credor.

O artigo 799 reforçou a incumbência do exequente em proceder a averbação no registro público da existência da execução e dos atos de constrição realizados, para conhecimento de terceiros.

O artigo 792 estabeleceu como critério para reconhecimento da fraude à execução a existência de averbação da existência de ações reais ou reipersecutórias e também dos atos de constrição (indisponibilidade, penhora, hipoteca judiciária) na matrícula do imóvel.

O artigo 828 criou a possibilidade de o exequente obter uma certidão para averbar na matrícula do imóvel, desde o momento em que a execução foi admitida pelo juiz. Ou seja, dar publicidade à execução.

Em 2015: Princípio da concentração na matrícula do imóvel: Esse princípio desobrigou o adquirente da obtenção das certidões de feitos e determinou que não poderão ser opostas pelo credor situações não averbadas na matrícula do imóvel. O princípio da concentração na matrícula do imóvel foi instituído pelos artigos 54 e seguintes da Lei nº 13.097, de 19.01.2015, e consagrou a exigência da publicidade para segurança do sistema. Esse princípio reforçou para todos os credores, sem exclusão dos tributários, a necessidade de averbação das ações e das execuções na matrícula do imóvel, desde o ajuizamento da ação, assim como das constrições. Em contrapartida, eximiu os adquirentes da obrigação de obter as certidões de feitos quando o bem é sujeito a registro, como no caso dos imóveis de valor superior a 30 salários mínimos (artigo 108 do CC/2002). Essa desobrigação foi reafirmada e declarada como regra para caracterização do adquirente de boa-fé (redação dada pelo artigo 16 da Lei nº 14.382/22).

Só foram excluídos da abrangência desse princípio a massa falida e os imóveis pertencentes ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de suas fundações e autarquias”. Frise-se: os imóveis apenas.

Pouco conhecido até hoje, mas importantíssimo esse princípio foi divulgado pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) num artigo publicado em abril de 2017, nos seguintes termos:

"A LEI 13.097/2015 E A EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO NO REGISTRO DE IMÓVEIS [4]
O princípio da concentração significa que todos os atos que possam refletir sobre qualquer imóvel devem necessariamente estar inscritos na respectiva matrícula. Noutras palavras, o princípio da concentração tem por essência concentrar todas as informações e direitos relevantes na matrícula do imóvel, e qualquer situação que não esteja ali inscrita não poderá se oposta pelo interessado.
Tem-se por imperativo, em prestígio aos princípios da publicidade, da boa-fé e da inscrição, sobretudo ao princípio da concentração, que devem os interessados diligenciar no sentido de averbar ou registrar na matrícula do imóvel os fatos que possam constituir, transferir, modificar ou extinguir os direitos, sendo que tal providência incumbe também ao Estado e aos demais órgãos e entidades da Administração direta e indireta.
Com a alteração da Lei nº 13.097/2015, prescinde-se das certidões de feitos ajuizados para a lavratura de escritura pública de imóveis. A consagração em definitivo do princípio da concentração deve, pelo menos em tese, trazer para a matrícula todos os fatos que possam atingir o bem".

Esse é, pois, o entendimento construído pela legislação brasileira ao longo de quase meio século. No entanto, a realidade dos adquirentes de imóveis é bem outra e muitos ainda estão perdendo os imóveis. Por quê?

Pesquisando a fraude à execução encontramos várias decisões recentes, todas embasadas no entendimento legal supra, de aplicabilidade da Súmula 375 do STJ. Eis alguns desses achados:

"AgInt no REsp nº 1.607.815/PE, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 9/12/2020.
AgInt no REsp nº 1.552.880/SP, relator ministro Raul Araújo, DJe de 28/6/2019.
AgInt no REsp. 1.627.671/SP, relator ministro MARIA ISABEL GALLOTTI, DJe 11.9.2018.
AgInt nos EDcl no REsp. 1.590.904/RJ, relator ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 10.10.2017".

Prosseguindo na pesquisa localizamos nas execuções fiscais o foco das perdas: a inaplicabilidade da Súmula 375 do STJ e do artigo 792 do CPC com fundamento no recurso repetitivo  REsp 1.141.990/PR, DJe de 19/11/2010  Tema 290, do STJ.

Analisamos detidamente esse recurso repetitivo e constatamos que em 2010, o STJ adotou a tese de má-fé presumida nos casos de dívida ativa tributária, seguindo o 185 do Código Tributário Nacional (CTN). Desde então, esse recurso repetitivo vem sendo copiado em larga escala pela primeira e pela segunda instâncias da Justiça Federal (TRF-3), para fundamentar decisões envolvendo imóvel, em alguns casos até mencionando o CPC revogado. O mesmo acontece na Justiça do Trabalho e também na Justiça Estadual. Existem centenas de recursos já julgados e centenas aguardando julgamento, totalizando milhares em todo o país.  

Com o devido respeito, esse recurso repetitivo não pode continuar sendo usado contra os adquirentes de imóveis, por cinco motivos. Primeiro porque se trata de julgamento antigo, de 2010, anterior à grande mudança ocorrida nos anos de 2014 e 2015 (Central de indisponibilidades  Cnib, CPC/2015 e Princípio da concentração na matrícula do imóvel). Segundo porque o CPC atual estabeleceu a todos os credores, sem distinção do credor tributário, o ônus de averbar na matrícula do imóvel a existência da ação ou execução, dando publicidade a seu crédito, com efeito erga omnes. Terceiro porque a legislação atual deixou de exigir dos adquirentes as certidões de feitos para caracterização da boa-fé do adquirente de imóvel. Quarto porque esse recurso repetitivo surgiu do julgamento da venda de uma motocicleta através de uma cadeia de contratos particulares não registrados no Detran, situação muito diversa da compra de um imóvel por escritura pública, documento dotado de fé pública e firmado à luz do princípio da publicidade, ante a inexistência de gravame na matrícula do imóvel. Quinto porque no julgamento do repetitivo não foi arguido pelas partes nem apreciado pelo STJ o comando do artigo 185-A do CTN, que instituiu a todos os credores, sem distinção do credor tributário, o ônus de dar publicidade ao seu direito na matrícula do imóvel.

Aplicabilidade do CPC atual. Não paira a menor dúvida quanto à aplicabilidade do artigo 792 do Código de Processo Civil/2015 aos processos em curso. Esse diploma legal é aplicável a todos os processos pendentes, conforme determinou seu artigo 1.046, ficando revogado o Código anterior  Lei nº 5.869/73.

Inexistência de hierarquia de normas. Em que pese o fato de o artigo 185 do CTN ter sido introduzido por uma lei complementar (LC nº 115/2005), não existe hierarquia entre essa norma e a lei ordinária (Código de Processo Civil e princípio da concentração na matrícula). Isto porque o STF, no julgamento de casos análogos a este, sedimentou seu entendimento na "ausência de hierarquia entre lei complementar e ordinária". Neles, a lei complementar é considerada "apenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária" (RE 377.457/PR) [5]. No mesmo sentido o RE 944.064.

Uniformização da jurisprudência: É certo que a uniformização da jurisprudência é regra a ser seguida por todos os tribunais (artigo 926 e 927 do CPC). Mas é igualmente certo que é obrigatória a demonstração da similitude entre o caso em análise e o precedente jurisprudencial usado como fundamento. Além disso, é dever da parte transcrever o texto, juntar cópia do acórdão ou mencionar o endereço eletrônico (URL) do repositório de jurisprudência oficial ou credenciado (Artigo 1.029, §1º e 2º do CPC).

No julgamento da fraude à execução fiscal é preciso ainda levar em conta o fato de que a evolução tecnológica propiciou aos credores, inclusive aos tributários, meios eletrônicos ágeis e eficazes como a indisponibilidade (Cnib) implantada em 2014 no país e a penhora on line. De se considerar ainda o recém-criado Sniper  uma ferramenta eletrônica poderosa, capaz de localizar ativos do devedor em todo o país em apenas alguns segundos. Portanto, a regra vigente é o uso dessas ferramentas eletrônicas para garantia da satisfação do crédito e para dar publicidade na matrícula do imóvel, conferindo segurança jurídica a todos.  

Nesse contexto, seria impensável permitir que um credor tributário pudesse ficar inerte por quase uma década e depois saísse pelo Brasil afora decretando a ineficácia das transmissões imobiliárias, tal como vem ocorrendo. A evolução das leis é um caminho sem volta.


[1] Ações reais. São exemplos as ações de adjudicação compulsória, de usucapião, ação reivindicatória, etc.

[2] Ações pessoais reipersecutórias. São exemplos as ações declaratórias de nulidade da escritura, da venda de ascendente para descendente, ação pauliana, etc.

[5] RE 377457, relator ministro Gilmar Mendes, 19.12.2008. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur1366/false Acesso em 25.09.2022

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