Direito de defesa

As eleições brasileiras e o Poder Judiciário

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17 de outubro de 2022, 7h00

Juízes não são eleitos. O ato de julgar exige uma imparcialidade incompatível com a defesa de ideias, propostas e ideologias inerentes ao pleito eleitoral. Como dizia Calamandrei, "o magistrado que subiu no palanque de um comício eleitoral para sustentar as ideias de um partido nunca mais poderá esperar, como juiz, ter a confiança dos membros do partido adversário".

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Isso não significa que o resultado das eleições não afeta a organização ou a composição do Poder Judiciário, nem que seus membros sejam preservados de ataques desferidos pelos postulantes aos mais diversos cargos.

Isso parece ter ficado claro nas eleições deste ano. O Judiciário teve papel de destaque nas campanhas e no noticiário. A uma porque, pelos mais diversos motivos, ganhou protagonismo político ao tratar de temas relevantes e sensíveis, como política de drogas, aborto, uniões afetivas, políticas de saúde pública, dentre outras. A duas por ter, entre suas atribuições, aquela de garantir e defender a integridade do sistema eletrônico de votação, alvo dos mais diversos ataques do presidente da República e de seus apoiadores. A três porque, em decorrência da instauração de inquéritos para apurar crimes contra ministros da corte, o STF acabou por tomar medidas contra membros e simpatizantes do atual governo, acirrando críticas à sua atuação.

Como reação, alguns candidatos arrastaram o tema do Judiciário para discursos e palanques, com ataques a ministros do STF, propostas de restrição de suas atribuições, de alteração na composição das cortes e até de investigações criminais contra magistrados. E um alerta: candidatos com tais discursos foram bem votados, indicando apoio de parte da população ao estridente discurso contra o Judiciário.

A questão agora é avaliar qual a possibilidade de interferência real dos eleitos ao Parlamento e, em pouco tempo, à Presidência da República sobre o sistema de Justiça, para além das manifestações partidárias e panfletárias.

No campo do Poder Executivo, há espaço para intervenções relevantes.

Embora o Poder Judiciário tenha autonomia orçamentária e administrativa, e não dependa de outros poderes para funcionar, o sistema de Justiça é mais amplo do que o conjunto de juízes e suas atividades. É composto pelo Ministério Público, Defensorias, Procuradorias e inúmeros outros atores e personagens com graus maiores e menores de dependência de presidentes e governadores. Investimentos em políticas de acesso, em programas de solução extrajudicial de conflitos, a implementação de medidas para redução de litigiosidade, dentre outras medidas, são relevantes para o aprimoramento do sistema de Justiça e diretamente relacionadas à vontade política daquele que chefia o Executivo.

Mesmo o Poder Judiciário em sentido estrito sofre interferências do Poder Executivo. Em decorrência do sistema de freios e contrapesos, há pontos importantes de contato cujo manejo está atrelado à disposição política de presidentes e governadores, em especial no que concerne à nomeação de membros dos tribunais. Para além dos ministros do STF, o presidente da República escolhe ministros do Superior Tribunal de Justiça, do Superior Tribunal Militar, do Tribunal Superior do Trabalho e desembargadores dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e dos Tribunais Regionais Eleitorais. Embora algumas nomeações sejam feitas a partir de listas prévias, elaboradas por órgãos do Judiciário, quem participa ou acompanha tais processos sabe a importância da caneta do presidente nesse sistema.

Matéria da Folha de S.Paulo de julho de 2019 informou que Bolsonaro indicaria, em seu mandato de 2019 a 2022, 90 membros do Poder Judiciário, sem contar os mais de 50 novos cargos de desembargadores federais, também de escolha do presidente, que foram criados em momento posterior à publicação. No próximo governo, só no STF serão mais dois ministros a indicar, caso não seja aprovada uma questionável alteração na Constituição que aumentaria o número de vagas na corte, incrementando o poder do presidente de ter aliados no tribunal.

O Poder Legislativo, por seu lado, também tem atribuições que podem impactar no funcionamento dos tribunais.

Em primeiro lugar, na aprovação de leis que alterem a estrutura da instituição e a disciplina dos magistrados. Embora projetos relacionados à magistratura somente possam ser apresentados para discussão no parlamento pelo STF, nada impede que tais alterações sejam feitas por emendas constitucionais, de iniciativa do presidente ou do próprio Legislativo. Vale lembrar que a Emenda Constitucional 45, que criou o Conselho Nacional de Justiça, alterou a composição de tribunais, instituiu quarentenas e restrições a juízes e inúmeras outras regras sobre o tema foi apresentada por deputados federais. Por isso, ideias como mandato fixo para ministros, alterações de regras para aposentadoria, mudanças de atribuições, dentre outras, são temas que podem aparecer em plenários ou comissões.

Para além disso, cabe ao Legislativo, mais precisamente ao Senado Federal, aprovar a indicação de membros de diversos tribunais. Desde o governo Floriano Peixoto, quando cinco nomes foram rejeitados pelo Senado, a casa não veta indicações do presidente da República. Mas há sempre a sombra de uma sexta vez, ainda mais em tempos de polarização política acirrada. As sabatinas tendem a ser mais difíceis, os tempos de aprovação mais longos, e o escrutínio mais sofisticado. O Senado ainda tem atribuições para investigar e julgar membros do Supremo Tribunal Federal, de forma que ameaças de CPIs e crimes de responsabilidade podem grassar na Praça dos Poderes, embora sua concretização seja difícil em termos institucionais.

Emilia Viotti dizia que a história do STF pode ser contada pelos momentos em que o Poder Executivo investiu contra sua autonomia e liberdade de decisão. Um próximo capítulo talvez agregue o Poder Legislativo nessa investida. Que a comunidade jurídica esteja atenta a tais movimentos, porque a estabilidade das instituições e do equilíbrio entre poderes exige um Judiciário independente e capaz de inibir arbítrios de qualquer espécie.

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