Público & Pragmático

PL 3.293/21 e o dever de revelação dos árbitros: insegurança jurídica legislada

Autor

16 de outubro de 2022, 7h00

Na pauta das principais discussões atinentes ao instituto da arbitragem encontra-se, atualmente, o Projeto de Lei nº 3.293/21. Intitulado por alguns especialistas como o "PL Antiarbitragem", referido projeto de lei tem como objetivo alterar a Lei nº 9.307/96 (Lei Brasileira de Arbitragem) para "disciplinar a atuação do árbitro, aprimorar o dever de revelação, estabelecer a divulgação das informações após o encerramento do procedimento arbitral e a publicidade das ações anulatórias, além de dar outras providências".

Nesse sentido, verifica-se que as mudanças propostas pelo Projeto de Lei nº 3.293/21 direcionam-se, especialmente, para dois aspectos da arbitragem: (1) o árbitro; e (2) a confidencialidade do procedimento. Nesse artigo, propõe-se uma análise quanto ao primeiro aspecto, isso é, pretende-se abordar as mudanças sobre a atuação dos árbitros, mais especificamente no que tange ao "novo" dever de revelação proposto pelo PL para esses profissionais.

Isso porque, quanto aos árbitros, o Projeto de Lei nº 3.293/21 prevê uma alteração no §1º do artigo 14 da Lei nº 9.307/96. Enquanto a atual redação da norma é a seguinte: "§ 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência", o Projeto de Lei nº 3.293/21 prevê a alteração da redação para: "§1º. A pessoa indicada para funcionar como árbitro tem o dever de revelar, antes da aceitação da função e durante todo o processo a quantidade de arbitragens em que atua, seja como árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal, e qualquer fato que denote dúvida mínima quanto à sua imparcialidade e independência".

Verifica-se, portanto, no que diz respeito ao dever de revelação dos árbitros, que o projeto de lei em discussão propõe duas alterações mais significativas: (1) passa a prever a necessidade de que o árbitro revele, tanto antes do aceite, quanto durante o procedimento, os processos arbitrais em que atue; e (2) substitui o dever de revelação a partir da existência de uma "dúvida justificada" para uma "dúvida mínima".

Ocorre que, ao que tudo indica, ambas as alterações vão na contramão daquilo a que se propõem, na medida em que mais trazem prejuízo à segurança jurídica do instituto do que contribuem com o seu fortalecimento.

Quanto à primeira modificação, o dever do árbitro em revelar os processos arbitrais em que atue se dá em virtude do Projeto de Lei nº 3293/21 limitar a quantidade de processos arbitrais em que um mesmo profissional pode atuar. A justificativa do projeto de lei para tal medida é tentar garantir que a quantidade de processos arbitrais assumidas por um árbitro não seja um fator que impacte negativamente na celeridade e duração do procedimento. Assim, segundo o §8º do artigo 13 do referido PL, "O árbitro não poderá́ atuar, concomitantemente, em mais de dez arbitragens, seja como árbitro único, coárbitro ou como presidente do tribunal arbitral".

Todavia, e embora entendam-se as intenções por trás da proposta, fato é que, em razão da maneira como foram estruturadas, essas intenções não parecem que se concretizarão em melhorias práticas, especialmente por irem de encontro e atacarem um dos principais pilares da arbitragem: a autonomia da vontade das partes. Autonomia essa, importante apontar, que garante a liberdade das partes de escolherem o árbitro que irá julgar a sua demanda, inclusive conforme previsão expressa do caput do artigo 13 da Lei de Arbitragem, que dispõe: "pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes".

Assim, ao limitar a escolha de árbitros a profissionais que não estejam atuando em dez arbitragens concomitantemente, o projeto de lei fere diametralmente a autonomia da vontade das partes, uma vez em que, ainda que estas entendam que determinado profissional é o mais capacitado e adequado para julgar determinada demanda sua, não poderão escolhê-lo como árbitro caso o mesmo já possua sua atuação vinculada dez processos arbitrais.

O cenário mostra-se ainda mais preocupante ao se levar em consideração que essa limitação surge sem uma justificativa técnica que a embase. O Projeto de Lei nº 3.293/21 não apresenta qualquer estudo que comprove que o número de arbitragens assumidas pelos árbitros vem sendo um fator impactante no tempo de duração, na qualidade ou na efetividade dos processos arbitrais. Ademais, também não há qualquer justificativa sobre as razões pelas quais o número limitador é o de dez processos arbitrais — ao que parece, uma definição aleatória do projeto de lei.

Ou seja, o projeto de lei traz impacto para um dos principais pilares da arbitragem, a autonomia da vontade das partes, sem nem mesmo comprovar que essa restrição proporcionará, efetivamente, uma melhoria para o instituto. O PL impõe uma severa limitação sem apresentar qualquer evidência de que as arbitragens têm tido a sua tramitação prejudicada em virtude do número de processos arbitrais assumidos por cada árbitro, ou, consequentemente, que é essa limitação em dez processos arbitrais por árbitro que trará uma maior celeridade ao instituto. A bem da verdade, o projeto de lei vai até mesmo na contramão das estatísticas, que apontam que os processos arbitrais ficaram 8% mais rápidos em 2020 em comparação com 2019 [1].

Não seja apenas isso, há de se apontar ainda a fragilidade do projeto de lei em vincular a disponibilidade de um profissional único e exclusivamente ao número de arbitragens em que ele atua como árbitro. Isso porque são os mais variados fatores que podem impactar na disponibilidade desse profissional, como, por exemplo, a complexidade das arbitragens; a fase e status desses eventuais procedimentos; as demais atividades profissionais que esse árbitro exerce; entre tantas outras variáveis, como se vê, subjetivas, e que não são abarcadas ou resolvidas limitando-se o número de procedimentos em que cada profissional pode atuar.

Ademais, há de se levar em consideração que o próprio modelo do instituto arbitral já autorregula as boas práticas relacionadas à atividade do árbitro. Uma vez que as partes possuem a liberdade para definir os julgadores das suas demandas, um profissional que passe a ser conhecido como um árbitro que não desempenha sua função de forma diligente — isso é, dentro de um tempo adequado, com a devida e esperada efetividade — por certo deixará de ser nomeado para atuar em outros processos arbitrais, sem que para isso seja necessário estabelecer regramento específico como propõe o PL aqui em discussão.

Em resumo, portanto, quanto a essa primeira limitação do Projeto de Lei nº 3.293/21, que exige dentre os deveres de revelação dos árbitros, que o profissional aponte o número de arbitragens em que atua, como forma de limitar esse montante ao máximo de dez procedimentos, pode-se concluir que o controle buscado pelo PL já é realizado pelos próprios usuários ao definirem os julgadores das suas demandas, sendo desnecessária imposição de limites por via legal — limites esse que, ao que tudo indica, além de ineficientes, atacam diretamente pilares basilares do instituto arbitral.

Não seja apenas isso, e ainda tratando do dever de revelação dos árbitros proposto pelo Projeto de Lei nº nº 3.293/21, há de se citar a já adiantada alteração da expressão "dúvida justificada" para "dúvida mínima". Mencionada modificação, e também diferente do que se propõe, parece mais causar insegurança jurídica do que reforçá-la.

Nessa linha, em parecer publicado na Revista de Arbitragem e Mediação, Selma Lemes, ao analisar a definição da expressão "Dúvida Justificada", destaca que apesar da expressão ser um conceito subjetivo e indeterminado, deve ser entendida como uma orientação de que a revelação deve se dar sob "algo que esteja diretamente vinculado ao ato de julgar com independência e imparcialidade" [2]. Prossegue a referida autora:

"[…] o fato deve, em primeiro lugar, ser importante a ponto de suscitar questionamentos e insegurança no espírito da parte. É justamente essa insegurança que poderia abalar a confiança no árbitro, ou seja, pode fazer surgir na parte a desconfiança de que o árbitro indicado não tenha capacidade de exarar um julgamento isento e justo. 19. Portanto, a independência e a imparcialidade estão na base da confiança depositada pela parte no árbitro. A condição primeira da confiança é a independência do julgador, assevera Pierre Tercier. 11 20. Neste ponto, já se observa que qualquer alegação alheia e indiferente a uma causa justificada que não tenha nenhuma interferência nos binômios 'confiança — independência' ou 'confiança – imparcialidade' será alegação insubsistente e desarrazoada. 21. Portanto no que concerne ao dever de revelação, somente a ausência de revelação de fato notório e importante que impediria o árbitro de atuar com independência e imparcialidade poderia constituir violação ao princípio da confiança" (artigo 13 da Lei 9.307/1996) [3].

Vê-se, portanto, que segundo a melhor doutrina, hoje o entendimento de dúvida justificada, que leva ao dever de revelação pelo árbitro, está ligada a fatores que possam impedir o árbitro de julgar de forma independente e imparcial. Dessa forma, e tendo em vista entendimento acima em mente, pode-se inferir que dois são os principais potenciais problemas a serem causados com a alteração da expressão "dúvida justificada" para "dúvida mínima".

O primeiro é o de que o Brasil passaria a adotar um critério que vai de encontro à própria prática internacional da arbitragem, seus tratados, guias e diretrizes. Passar-se-ia a adotar no Brasil expressão que não encontra, de forma ampla, correspondente em outros países, o que por si só traria grande insegurança quanto à forma com que a expressão "dúvida mínima”" seria entendida e aplicada em solo nacional. Ao se utilizar a expressão "mínima", abre-se margem para que todo e qualquer elemento, inclusive após a prolação de decisões arbitrais, passe a ser utilizado como pretexto na tentativa de se anular processos arbitrais, uma vez que a violação ao dever de revelação passaria a existir dentro de um cenário muito mais sensível e passível de ser violado. Assim, é inegável a possibilidade de que referido cenário traga uma maior instabilidade jurídica, inclusive sob risco de um aumento de ações judiciais que visem anular sentenças arbitrais apoiando-se na, até então, indefinível "dúvida mínima", especialmente por essa expressão não possuir um corresponde na legislação arbitral de outros países.

Já um segundo problema, vinculado ao primeiro apontado acima, seria o de que se alteraria expressão que, atualmente, apesar da sua subjetividade, já possui elementos que a tornam passível de ser mais bem definida e, consequentemente, aplicada. Nesse aspecto, há de se citar, além da própria previsão da Lei de Arbitragem que, no caput do seu artigo 14, prevê que "Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil", regras internacionais, como as Guidelines on Conflict of Interests da International Bar Association, que servem como uma espécie de guia daquelas situações que possam gerar uma dúvida justificada e, portanto, devem ser reveladas. Parte dessas diretrizes seriam perdidas com a inserção da expressão "dúvida mínima", uma vez que, a partir desse momento, uma nova interpretação sobre o alcance da expressão precisaria ser realizada, caindo por terra grande parte das anteriores diretrizes e balizas utilizadas.

De qualquer forma, importante salientar aqui, contudo, que regras que ampliam e deem maior segurança ao dever de revelação são bem-vindas — inclusive como forma de fortalecer e dar uma ainda maior respeitabilidade ao instituto —, todavia o PL não parece realizar isso de uma forma ideal ao propor a inserção da expressão "dúvida mínima". Salutares nesse aspecto são os apontamentos realizados pelo professor doutor Gustavo Justino de Oliveira em entrevista ao Jota: "Dúvidas mínimas sobre a imparcialidade de uma pessoa, seja qual for o parâmetro, já que se trata de conceito indeterminado, gerariam a inaptidão para a função de árbitro? Parece-me que não é o objetivo. Então, o texto do projeto, como está, poderá trazer obstáculos à fluidez do procedimento, com o aumento de impugnações inadequadas, já que não há clareza sobre o que seja uma dúvida mínima, nem o que deve ser feito a partir da revelação dela" [4].

Dessa forma, e em arremate, no que se refere especificamente às modificações propostas pelo Projeto de Lei nº 3.293/21 no que tange ao dever de revelação dos árbitros, sem se adentrar, portanto, nas características positivas ou negativas dos demais pontos do PL, entende-se que a proposta de normativa pode promover, justamente, uma diminuição daquilo em que justifica a sua existência: a segurança jurídica do instituto arbitral. Como o próprio título deste artigo já adiantava, o Projeto de Lei nº 3.293/21 parece, no que se refere ao dever de revelação dos árbitros, criar uma verdadeira insegurança jurídica legislada.

 


[1] Arbitragem em números e valores. Pesquisa 2020/2021, realizada em 2022 pela pesquisadora Selma Ferreira Lemes, com auxílio de Vera Barros e Bruno Hellmeister.

[2] LEMES, Selma Maria Ferreira. O Dever de Revelação do Árbitro, o conceito de dúvida justificada quanto a sua independência e imparcialidade (art. 14, § 1°, da Lei 9.307/1996) e a ação de anulação de sentença arbitral (art. 32, II, da Lei nº 9.307/1996). Revista de Arbitragem e Mediação | vol. 36 | p. 231 | Jan/2013DTR20132508.

[3] Idem.

Autores

  • Brave

    é advogado no escritório Schiefler Advocacia, mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná, árbitro da Camesc, autor do livro Responsabilidade Civil do Estado pela Exposição Abusiva de Investigados na Mídia e de artigos na área de arbitragem e administração pública.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!