Opinião

Preferência do crédito tributário: desnecessidade de pluralidade de penhoras

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  • é mestrando pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB) especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação Ensino Superior de Rio Verde (Fesurv) e é analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça (assessor de ministro).

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16 de outubro de 2022, 5h36

Havendo pluralidade de credores em face de um mesmo devedor, a distribuição do produto da penhora deve ocorrer conforme a ordem das respectivas preferências. A preferência do crédito baseia-se, em regra, em norma de direito material. É o caso, por exemplo, da preferência do crédito tributário (artigo 186 do CTN) e da hipoteca (artigo 958 do CC). Registre-se que, "ressalvados os créditos trabalhistas, o crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for a sua natureza e o tempo da sua constituição" (REsp 189.107/SP, 2T, 2000).

Por outro lado, inexistindo preferência entre os créditos, o produto da expropriação será distribuído conforme a ordem de penhoras. A penhora gera direito de preferência sobre o respectivo bem (artigo 797 do CPC). A preferência decorrente da penhora possui natureza processual. Conforme orientação do STJ, "não é possível sobrepor uma preferência de direito processual a uma de direito material" (REsp nº 818.652/PR, 3T, 2009).

O artigo 29, caput, da Lei 6.830/80 (LEF) estabelece que a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública não se sujeita a concurso de credores. O respectivo parágrafo único admitia a possibilidade de concurso de preferência somente entre pessoas jurídicas de direito público, na ordem prevista nos seus incisos. Contudo, o STF declarou o parágrafo único não recepcionado pela Constituição Federal (ADPF 357/DF, Tribunal Pleno, 2021).

A Primeira Seção do STJ, levando em consideração essa ordem, editou a Súmula 497, a qual previa que "os créditos das autarquias federais preferem aos créditos da Fazenda estadual desde que coexistam penhoras sobre o mesmo bem". Essa súmula amparava-se em acórdão da Primeira Seção que foi submetido ao regime dos recursos repetitivos. Nesse acórdão foi decidido que "a instauração do concurso de credores pressupõe pluralidade de penhoras sobre o mesmo bem, por isso que apenas se discute a preferência quando há execução fiscal e recaia a penhora sobre o bem excutido em outra demanda executiva" (REsp nº 957.836/SP, relator ministro Luiz Fux, 2010). Embora a razão não tenha sido a desnecessidade de coexistência de penhoras, a súmula foi cancelada pela Primeira Seção em 19 de setembro de 2022, entendendo-se que o seu teor é incompatível com o acórdão proferido na ADPF 357/DF, no qual constou que "a definição de hierarquia na cobrança judicial dos créditos da dívida pública da União aos Estados e Distrito Federal e esses aos Municípios descumpre o princípio federativo e contraria o inciso III do artigo 19 da Constituição da República de 1988". Ressalte-se que a Primeira Seção ainda não adotou o procedimento previsto no regimento interno da Corte para fins de ajuste ou superação de acórdão com especial eficácia vinculante decorrente da adoção do regime dos recursos repetitivos.

A despeito da literalidade do caput do artigo 29 da LEF, é possível a configuração do concurso especial de credores. Imagine-se, por exemplo, que haja um procedimento executivo instaurado por um particular em face de outro particular com a finalidade de cobrar dívidas decorrentes de um contrato de locação imobiliária, no qual o particular-exequente consegue formalizar uma penhora sobre um veículo de elevado valor. Sendo a Fazenda Pública credora do mesmo particular-executado, ela pode opor seu direito de preferência nessa execução, a fim de que o produto da alienação do bem penhorado satisfaça o crédito fiscal em primeiro lugar.

Na linha do acórdão da Primeira Seção acima referido, o exercício do direito de preferência pela Fazenda Pública pressupõe o ajuizamento da ação executiva fiscal, bem como a formalização de penhora, na medida que fixa como requisito a "pluralidade de penhoras".

Por sua vez, outra corrente — prevalente no âmbito da Segunda Seção — entende que o exercício do direito de preferência baseado no direito material prescinde da pluralidade de penhoras. É o caso, por exemplo, do exercício do direito de preferência pelo credor hipotecário, que dispensa a pluralidade de penhoras, "mas o levantamento do produto da alienação judicial não prescinde do aparelhamento da respectiva execução" (REsp nº 1.580.750/SP, 3T, 2018). Em outra ocasião, entendeu-se que "é preferencial o crédito da Fazenda Pública, independentemente de haver ou não penhora do bem, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho" (Agint no REsp 1.890.416/PR, 4T, 2021).

Evidenciada a divergência, admitiram-se os embargos de divergência apresentados em face do acórdão proferido no AgInt no REsp 1.603.324/SC (1T, 2019). Neste acórdão, a Primeira Turma afirmou ser necessária a "pluralidade de penhoras sobre o mesmo bem para que seja instaurado o concurso de preferências". A divergência foi demonstrada mediante a indicação de aresto paradigma da Quarta Turma (AgInt no REsp 1.328.688/PR, 2018), no qual se afastou a necessidade de formalização de penhora para fins do exercício do direito de preferência.

Os embargos de divergência mencionados foram julgados recentemente. Conforme notícia veiculada no endereço eletrônico do Tribunal, a Corte Especial pacificou "entendimentos divergentes entre a Primeira e a Quarta Turmas e deu provimento aos embargos de divergência interpostos pelo Estado de Santa Catarina contra acórdão da Primeira Turma que considerou necessário haver pluralidade de penhoras sobre o mesmo bem para ser instaurado o concurso de preferências". Segundo o Relator, ministro Luis Felipe Salomão, o privilégio do crédito tributário — que se ampara no artigo 186 do CTN — "é evidente também no concurso individual contra devedor solvente, 'sendo imperiosa a satisfação do crédito tributário líquido, certo e exigível', independentemente de prévia execução e de penhora sobre o bem cujo produto da alienação se pretende arrecadar".

Entre os aspectos relevantes desse julgamento, cabe destacar a desnecessidade de "prévia execução e de penhora sobre o bem cujo produto da alienação se pretende arrecadar". No que se refere à desnecessidade de penhora, prevaleceu a orientação das Turmas que integram a Segunda Seção, no sentido de que o exercício do direito de preferência baseado no direito material prescinde da pluralidade de penhoras.

Por outro lado, na linha dessa nova orientação da Corte Especial, o exercício do direito de preferência prescinde (independe) do próprio ajuizamento da ação de execução. Essa orientação ampara-se em acórdãos das Turmas que integram a Segunda Seção/STJ. Na linha desse entendimento, o credor com título de preferência baseado no direito material pode intervir em execução ajuizada por terceiro e instaurar o concurso (especial) de credores previsto no artigo 908 do CPC, a fim de resguardar o seu direito de preferência, independentemente de ajuizamento de execução; nessa hipótese, "reconhecida a preferência do crédito, o levantamento do valor fica condicionado à posterior ajuizamento de execução" (REsp 1.219.219/SP, 3T, 2011; AgInt no REsp 1.862.300/SP, 4T, 2020).

Como se constata, o exercício do direito de preferência implica a reserva do valor correspondente ao crédito preferencial — que pode abranger parte ou a totalidade do produto da penhora promovida em execução ajuizada por terceiro. Contudo, só é possível o levantamento desse valor se ajuizada a execução pelo credor preferencial.

A solução resguarda tanto a satisfação do crédito preferencial quanto o exercício do direito de defesa do devedor. Teoricamente, é possível que o devedor oponha-se à própria reserva, nos autos da execução ajuizada por terceiro, por meio de simples petição ou busque a anulação do título executivo do credor preferencial pela via ordinária. Contudo, deve-se garantir ao devedor a oportunidade de apresentar defesas próprias do procedimento executivo. Destarte, com o ajuizamento da execução pelo credor preferencial, o executado pode opor-se à cobrança, mediante o ajuizamento de embargos à execução ou, eventualmente, exceção de pré-executividade.

Em se tratando de credor tributário — cuja preferência ampara-se no artigo 186 do CTN —, a habilitação do crédito preferencial em execução ajuizada por terceiro independe que haja penhora em sede de execução fiscal. Ressalte-se que é prescindível o próprio ajuizamento da execução fiscal. Contudo, nesta hipótese, o exercício do direito de preferência ocorre mediante a reserva de parte ou da totalidade do produto da penhora promovida em execução ajuizada por terceiro. Para fins de levantamento desse valor pela Fazenda Pública, é necessário o ajuizamento da execução fiscal, bem como a observância do disposto no artigo 32, § 2º, da Lei 6.830/80 (caso o produto da penhora tenha sido convertido em depósito em dinheiro). Em sede de execução fiscal, a regra prevista no preceito legal referido impõe que o levantamento do produto da penhora (conversão em dinheiro depositado judicialmente) depende do trânsito em julgado da decisão que, em sede de embargos à execução, reconheceu ou afastou a legitimidade da exação (EREsp 734.831/MG, 1S, 2010; REsp 1.663.155/AM, 2T, 2019).

Em conclusão, a Corte Especial/STJ pacificou entendimento que prestigia a preferência do crédito tributário (permitindo a sua habilitação em execução ajuizada por terceiro), sem cercear o direito de defesa do devedor, na medida em que impôs condicionamentos ao levantamento do produto da penhora.

Por fim, observa-se que até o fechamento deste artigo não havia sido publicado o acórdão proferido nos EREsp 1.603.324/SC. Recomenda-se ao leitor mais atento a sua leitura quando ocorrer a publicação.

Autores

  • é mestrando pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas da UnB (Universidade de Brasília). Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação Ensino Superior de Rio Verde-Fesurv/Univ. de Rio Verde (GO). Graduado em Direito pela UnB. Atualmente é analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça (assessor de ministro).

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