Opinião

Papel da sanção na melhoria dos serviços públicos e demais atividades reguladas

Autores

  • Alice Voronoff

    é doutora e mestre em Direito Público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) diretora acadêmica do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro e sócia do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.

  • Flavine Meghy Metne Mendes

    é pesquisadora do Centro de Estudos de Regulação e Governança dos Serviços Públicos conferencista consultora jurídica doutoranda em políticas públicas pela UFRJ e autora de artigos científicos na ambiência regulatória.

14 de outubro de 2022, 6h43

Passados mais de 20 anos da institucionalização das agências reguladoras no Brasil, a regulação permanece vívida nos aspectos da prática e teoria e, não raro, vem assumindo a centralidade de inúmeros debates promovidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A função normativa é a função, por excelência, que sempre despertou muito interesse dos pesquisadores, economistas e estudiosos da área jurídica em geral. É sobre ela que se espraiam as tipologias de Análise de Impacto Regulatório, monitoramento prospectivo e retrospectivo da carga regulatória normativa, além de outros aspectos não menos indissociáveis de aferição dos impactos da regulação na economia.

Entretanto, é o exercício da função fiscalizatória que permite a detecção de suposta infração (contratual ou não) e do descumprimento de metas e exigências regulatórias em geral, de forma que, após sua comprovação, nasce para a entidade regulatória a possibilidade de impor medida punitiva ao regulado. Por óbvio, é sobre essa função que incide o Direito Regulatório Sancionador.

Na materialização do poder sancionatório, a penalidade pecuniária é a sanção invariavelmente mais aplicada no dia a dia das agências reguladoras, independentemente de se tratar de um contexto fático inédito ou corriqueiro. Mas é preciso questionar se a referida estratégia é a mais adequada e eficiente à luz dos objetivos legais e institucionais das entidades reguladoras, incluindo o de promoção da maior conformidade do comportamento dos regulados. E a pergunta é ainda mais pertinente no contexto de serviços públicos regulados cuja prestação foi delegada à iniciativa privada, nos quais contratos de longo prazo e incompletos sujeitam-se ao influxo de riscos, inovações, demandas e mudanças comportamentais inusitados. 

O que se espera a cargo das agências é a adoção de atos coerentes à efetividade da regulação e, para que isso seja possível, confia-se que as decisões regulatórias serão cada vez mais proporcionais, razoáveis, técnicas, eivadas de conhecimento multidisciplinar e equidistantes, sob os desígnios de uma neutralidade desejável dos interesses dos atores envolvidos – como concedente, concessionários e usuários nos casos em que a regulação incide sob atividade prestada por particular delegatário de serviço público.

Em paralelo, vale rememorar parte das premissas do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRE), aprovado em 21 de setembro de 1995, particularmente aquelas que fomentam a importância da institucionalização de entes reguladores como autênticos supervisores do jogo econômico, estabelecendo regras, amortecendo tensões e conflitos, ao mesmo tempo em que ostentam condições assecuratórias de equilíbrio de atuação dos atores econômicos, em um desejável fortalecimento ao bem-estar social.

Essas premissas guardam coerência com as atividades primaciais da regulação:  definição de metas, pautas e atingimento das finalidades regulatórias a cargo das entidades reguladoras; traduzindo-se o poder sancionatório como instrumento de coerção para o efetivo alcance das condutas desejadas. Isto é, como uma dentre as diversas ferramentas passíveis de serem utilizadas para assegurar e incentivar a conformidade, em meio a um cardápio que inclui, dentre outras, estratégias informativas, recomendações, sanções premiais, arranjos da economia comportamental e meios consensuais.

O conceito é de extrema relevância, já que demonstra que nem sempre penalizar é o melhor caminho ou garantia de atendimento ao interesse público. Nos serviços públicos, há que se ponderar os benefícios que poderão ser trazidos aos usuários com a imposição de sanção.

Nesse passo, tendo-se em mente os eixos determinantes da atividade regulatória do Estado, é de se refletir sobre o papel da penalidade pecuniária aplicada num contexto de falhas do serviço correlatas a fatos geradores inéditos, repetitivos ou similares. Em suma, apesar de didática, a multa simplesmente não é capaz de inibir novos incidentes. Daí se indagar: a repetição imoderada de multas exterioriza ineficiência do serviço público ou, ao contrário, da própria regulação estatal? Qual é o papel da multa para a melhoria do serviço público?

Em linha com o entendimento de Barbosa Neves, só há verdadeira regulação estatal onde houver autonomia, sendo indispensável que a autoridade reguladora seja dotada de independência e estabilidade para a prática do ato. Logo, a penalidade pecuniária deve ser aplicada se, de fato, for menos onerosa e eficaz em dissuadir condutas indesejadas. A rigor, não há nenhum ineditismo aqui e pode-se dizer que essa é ratio do clássico princípio constitucional da proporcionalidade que vincula o atuar da Administração Pública, na sua dimensão de necessidade. Dito de outra forma, havendo uma pluralidade de meios que satisfaçam os imperativos regulatórios, deverá o regulador optar por aquele que seja menos gravoso. A sanção, neste contexto, deverá ser o último recurso empregado.

É justamente sob influxo do princípio da proporcionalidade que se discute o caráter didático da multa, adstrito aos seus respectivos limites, de forma que a mera imposição reiterada, sem juízo reflexivo (em semelhança ao que se faz por meio da AIR) pode expressar desvio de finalidade regulatório. Mais ainda, à revelia dos valores consubstanciados nas recentes alterações promovidas na LINDB, comportamentos dessa natureza fecham os olhos para importantes avanços conquistados pelo Direito Administrativo, como a busca da consensualidade — norte na solução de conflitos entre os segmentos público e privado.

Em nome do equilíbrio que se busca por meio da redefiniçao das funções do Estado, como ensinam Voronoff e Mendes, a virtude está no meio. Meio esse que não se alcança pela aplicação irresponsável do direito em detrimento dos princípios norteadores da regulação, nem pela omissão do gestor na apuração de falhas contratuais. As violações contratuais têm de ser investigadas, endereçadas e, se for o caso, punidas com rigor. Igualmente, não podem ser deixados de lado as falhas e anacronismos tecnológicos a que os contratos de concessão mais antigos estão mais sujeitos.

A regulação deve ser apta a produzir mudanças efetivas e concretas na economia e, por essa razão, não há efeito algum, à luz da eficiência, na aplicação de uma medida sancionatória grave, se o ato não tem a mínima aptidão para modificar a realidade. Não à toa, em diversas passagens do Acórdão n° 1970/2017, o Tribunal de Contas da União (TCU), no monitoramento do acompanhamento da arrecadação de multas aplicadas, reitera a necessidade de demonstração por parte das entidades federais, com atribuições de fiscalização e controle, da correlação da aplicabilidade da multa com a melhoria efetiva do serviço público.

Ao que se vê, a penalidade não é um fim em si mesmo. A agência reguladora deve adotar soluções tendentes à melhoria constante do serviço, competindo-lhe, em coerência com princípio da atualidade, fomentar o aperfeiçoamento dos contratos, serviços regulados, subordinada assim ao estado das coisas (realidade), influenciado cada vez mais pelas implicações das inovações.

É oportuno lembrar que a pandemia provocada pela Covid-19 acelerou os avanços e implementação de novas tecnologias. O uso da robótica vem se mostrando cada vez mais eficiente em inspeções de tubos enterrados. Novas formas de monitoramento permitem uma leitura mais clara do estado da arte de uma determinada rede de tubulações, facilitando em curto espaço de tempo o reparo necessário ao mesmo tempo em que afasta os riscos de escavações desnecessárias. Na Índia, os robôs são utilizados para mapeamento da rede de esgoto na identificação dos reparos necessários. Em Israel, sensores de satélite percorrem os céus para detectar vazamentos de água, facilitando o célere lançamento de ações corretivas. São esforços significativos alinhados à regulação responsiva e que podem ser bem trabalhados por meio da celebração de termos consensuais substitutivos de sanções.

Sob esse espectro, Barbosa Neves é enfático ao reafirmar que as agências reguladoras dispõem do poder punitivo como poderoso instrumento para proceder e exigir alterações, adequações. Isso tudo pode ser manejado por meio de obrigação de fazer, exsurgindo a aplicação da multa como recurso instrumental ao cumprimento da medida regulatória que se requer, com significativa vantagem aos usuários.

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Referências bibliográficas

BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. Understanding regulation: theory, strategy and practic. Oxford: Oxford University Press, 2012, p.1.

BARBOSA NEVES; Sergio Luiz. Limites à função sancionatória das agências reguladoras de serviços públicos. Revista de Direito Administrativo e Gestão Pública Minas Gerais, v.1, p. 103-119, jul/dez.215.

MENDES, Flavine Meghy Metne. Processo normativo das agências reguladoras: atributos específicos à governança regulatória. São Paulo: Giz Editorial.

ROOT, Rebela L. Robots, drones, and AI: The new technology making waves in Wash. https://www.devex.com/news/robots-drones-and-ai-the-new-technology-making-waves-in-wash-99312.

THIENE, Peter Van; et. al. Robotcs in the water industry. https://www.kwrwater.nl/en/actueel/robotics-in-the-water-industry/.

VORONOFF, Alice; MENDES, Flavine. Realidade vence o direito? O princípio da segurança jurídica. CONJUR. Artigo publicado em 31 de julho de 2022. https://www.conjur.com.br/2022-jul-31/voronoffe-mendes-principio-seguranca-juridica.

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    é doutora e mestre em Direito Público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diretora acadêmica do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro e sócia do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.

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    é consultora, escritora, palestrante, mestre em Direito Público, doutoranda em Políticas Públicas e autora de artigos científicos

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