Público & Pragmático

A confissão e o consenso na Nova Lei de Improbidade Administrativa

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9 de outubro de 2022, 8h00

A absorção do predicado democrático pelo Estado brasileiro, sobretudo a partir da Constituição de 1988, está por trás de uma mudança na forma de agir das instituições públicas [1]. Antes unilateral e imperativa, a tomada de decisões estatais, inclusive na aplicação de sanções, passou a contar com a participação direta dos cidadãos, por instrumentos que permitem o diálogo, a negociação, a colaboração e, em especial, o consenso.

No campo das improbidades administrativas, todavia, esse é um fenômeno ainda muito recente, em amadurecimento. Isso, pois, até 2019, a Lei de Improbidade Administrativa vedava expressamente a transação, o acordo e a conciliação nas ações por ela disciplinadas [2]. Com a promulgação do Pacote Anticrime, a proibição finalmente deu lugar à autorização expressa e definitiva ao consenso, pelo expediente denominado acordo de não persecução cível.

Contudo, à época, o permissivo ao consenso em matéria de improbidade veio desacompanhado de qualquer parâmetro legal, permanecendo a lacuna sobre os pressupostos de validade desse instrumento e gerando insegurança jurídica na sua utilização [3]. Dentre as lacunas, estava a controvérsia sobre a (des)necessidade de confissão da prática de ato ímprobo pelo agente investigado ou demandado neste microssistema sancionatório — por confissão entende-se, aqui, a admissão de veracidade dos atos descritos na acusação, inclusive do elemento subjetivo da conduta, e não necessariamente a descrição dos atos praticados por si.

Tal questão tem razão de ser. Primeiro, porque surgiu em um contexto de completa omissão legislativa. Segundo, porque a origem e a nomenclatura do expediente ora examinado remetem ao acordo de não persecução penal, no qual a confissão formal e circunstancial é requisito legal expresso para celebração da avença. Terceiro, porque em outros instrumentos processuais análogos, como os acordos de leniência anticorrupção e antitruste, também se exige a assunção de responsabilidade pela prática do ato ilícito.

Assim é que, naturalmente, a confissão pela prática do ato de improbidade administrativa foi alçada à qualidade de pressuposto de validade do acordo de não persecução cível. Com efeito, ao argumento de que essa exigência favorecia a coerência do microssistema de tutela do patrimônio público [4], diversas regulamentações infralegais estabeleceram a confissão como cláusula obrigatória nesses acordos. Como exemplo, vale citar a Resolução nº 1.193/2020, do Colégio de Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo [5], e a Portaria Normativa nº 18/2021, da Advocacia-Geral da União [6].

Nada obstante, diante da promulgação da Lei nº 14.230/2021, a Nova Lei de Improbidade Administrativa, que promoveu reformas estruturais no microssistema de tutela da probidade e que, para o que importa a esse artigo, criou um regime jurídico para o acordo de não persecução cível, entende-se que a exigência da confissão merece ser revisitada. Para tanto, faz-se oportuno apresentar os pressupostos legais e o design procedimental dessa espécie de acordo na nova legislação.

De plano, verifica-se que o expediente consensual ora examinado foi regulamentado no artigo 17-B, incluído na Lei de Improbidade Administrativa. Nesse dispositivo, previu-se o acordo como uma alternativa consensual, devendo ser celebrado conforme as circunstâncias do caso concreto, e desde que observados: (1) o integral ressarcimento do dano ao erário; e (2) a reversão das vantagens indevidas obtidas à pessoa jurídica lesada. Esses são os pressupostos legais positivos para a celebração de acordos em improbidade administrativa.

Além disso, no § 2º do artigo 3º da Lei de Improbidade Administrativa, também incluído pela Lei nº 14.230/2021, foi vedada a aplicação de sanções desta lei a pessoas jurídicas quando o ato de improbo também seja sancionado como ato lesivo de que trata a Lei Anticorrupção, o que também se impõe como um limite à celebração do acordo de não persecução cível – por lógica, se não há sanção, não há que se falar em acordo substitutivo [7]. Trata-se, tal questão, de um pressuposto legal negativo para o consenso no microssistema de tutela da probidade administrativa.

Quanto ao design procedimental, a Nova Lei de Improbidade Administrativa restringiu ao Ministério Público a legitimidade ativa para celebração de acordos — o que foi recentemente declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal [8] —, resguardando à pessoa jurídica lesada a prerrogativa de que seja ouvida, assim como o Tribunal de Contas, que deverá auxiliar na apuração de eventual dano ao erário, e o órgão interno do Ministério Público, quando a opção consensual foi anterior ao ajuizamento de ação. Após, o acordo se perfectibiliza com a homologação judicial.

Além disso, merece transcrição o § 2º do artigo 17-B da Nova Lei de Improbidade Administrativa, que estabelece parâmetros a serem observados na celebração do acordo de não persecução cível, notadamente a "personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso".

Ao serem considerados, tais parâmetros delimitam a margem de discricionariedade do agente articulador do jus puniendi estatal e viabilizam o exercício de accountability sobre a motivação dos atos praticados na negociação. Aliás, a respeito desse dever de motivação, embora não se possa dizer que os investigados ou demandados pela prática de atos ímprobos detenham direito subjetivo à celebração de acordo, pode-se dizer, ao menos, que têm direito à resposta motivada pelo Poder Público, em atenção à limitação da discricionariedade administrativa [9].

Sem esgotar as contraprestações a serem negociadas pelas partes, na regulamentação do acordo de não persecução cível, a Lei nº 14.230/2021 também encoraja a adoção de mecanismos e procedimentos internos de integridade, de auditoria e de incentivo à denúncia de irregularidades, bem como de outras medidas em favor do interesse público e de boas práticas administrativas.

Nesse ponto, cumpre enaltecer a abordagem legislativa, que privilegiou a flexibilidade do instituto, estabelecendo parâmetros e recomendações na sua utilização, sem com isso engessá-lo, tentando criar uma fórmula pronta e genérica para a diversidade e complexidade dos fatos e circunstâncias que o cotidiano impõe.

A demonstrar essa flexibilidade, verifica-se que a possibilidade de que esse acordo seja desenhado tanto como um mecanismo de caráter colaborativo, premial, à semelhança dos acordos de leniência anticorrupção e antitruste, incentivando o investigado ou demandado a fornecer informações e documentos relevantes ao poder público, quanto de pura reprimenda, de modo análogo à transação penal e à suspensão condicional do processo, existentes na seara penal [10]. Por essa maleabilidade, evidencia-se o protagonismo à negociação das partes na celebração da avença.

Feito esse recorte do novo regime jurídico do acordo de não persecução cível a partir da Lei nº 14.230/2021, chama-se a atenção para a ausência de qualquer referência legal à necessidade de confissão da prática do ato ímprobo para a celebração desse negócio jurídico. Isto é, diferentemente do acordo de não persecução penal, dos acordos de leniência anticorrupção e antitruste e da colaboração premiada, a confissão da prática de ato ilícito não é condição legal expressa para o consenso no campo das improbidades administrativas.

Diante desse novo contexto normativo, há que se reconhecer, primeiro, que o estabelecimento da confissão como pressuposto de validade do acordo de não persecução cível se configura como interpretação extensiva em desfavor dos investigados ou demandados, vedada pelo princípio constitucional da legalidade, sob o viés da tipicidade (artigos 5º, II e XXXIX, e 37, caput, da Constituição), aplicável às improbidades na forma do novo § 4º do artigo 1º da Lei de Improbidade Administrativa.

Dito de outro modo, se antes a indispensabilidade da confissão se sustentava na coerência do microssistema de tutela do patrimônio público, no atual cenário essa lógica não persiste, haja vista que, nos demais microssistemas, a legislação trata dessa confissão de modo taxativo. Fosse o caso de o reconhecimento do ilícito ser imprescindível para o consenso em improbidade administrativa, essa exigência deveria decorrer de previsão legal expressa, sob pena de analogia in malam partem.

Por outro viés, ante tudo que foi dito sobre o novo regime jurídico do acordo de não persecução cível, deve-se reconhecer que a ausência de previsão legal sobre a necessidade de confissão do ato ímprobo não decorre de simples obra do acaso. Isso porque, ao regulamentar o instituto, é evidente a intenção do legislador de estabelecer balizas flexíveis, que permitam certo grau de autonomia negocial e protagonismo entre os agentes legitimados, para que assim possam construir a solução mais adequada ao caso concreto.

Nesse sentido, é importante relacionar a questão às mudanças estruturais promovidas no microssistema de tutela de probidade administrativa por ocasião da Lei nº 14.230/2021. Em especial, merece ser considerada a exclusão dos atos de improbidade culposos e a acepção de dolo prevista no § 2º do artigo 1º dessa lei. Com isso, quer-se destacar que a indispensabilidade da confissão demandaria o reconhecimento, pelo próprio agente, de dolo em sua conduta, circunstância esta capaz de esvaziar o instituto.

Para ilustrar, recorre-se ao exemplo que se tornou corriqueiro durante os anos de vigência da Lei de Improbidade: em determinado município, o Prefeito determina a contratação na modalidade direta — inexigibilidade ou dispensa de licitação — e, após, verifica-se que tal escolha se provou indevida e resultou em significativo dano ao erário. Nessa situação, não é difícil constatar que a exigência da confissão, pelo agente político, de dolo livre e consciente em alcançar o resultado ilícito para celebração de acordo acabaria por esvaziar as chances de consenso.

De mais a mais, como antevisto, as vantagens do acordo para o interesse público devem ser consideradas como um parâmetro para decidir sobre a sua celebração. Firmado nessa premissa, questiona-se o que seria mais benéfico ao interesse público no exemplo apresentado, a mera confissão do agente político sobre a veracidade dos fatos imputados e a sua intenção ilícita ou a rápida solução ao caso, com o integral ressarcimento do dano ao erário.

Nada impede, por óbvio, que essa confissão seja incluída como contraprestação atípica de acordo no caso concreto. O que se quer demonstrar é que, para ser exigida, ela deve ser devidamente motivada pelos parâmetros previstos na lei. Assim, a depender do caso, é plenamente possível que o investigado ou demandado por ato de improbidade celebre acordo sem reconhecer os fatos a ele imputados e o dolo em sua conduta, sendo inadmissível, por exemplo, que esse acordo deixe de ser homologado pelo Poder Judiciário em razão disso.

Dessa forma, é possível compreender o acordo de não persecução cível como um instrumento de concretização do consenso no âmbito das improbidades administrativas que, pela sua flexibilidade, reserva o protagonismo à negociação entre as partes para a construção de uma solução mais adequada em cada caso, sendo prescindível a confissão formal e circunstanciada do ato ímprobo pelo agente investigado ou demandado.

 


[1] Nas palavras do professor Gustavo Justino: "No que tange à realidade institucional brasileira, a junção da noção de democracia à de Estado de direito, levada a efeito pela atual Constituição, muito mais que estabelecer um qualificativo do modo de ser do nosso Estado Federal, foi responsável pela atribuição aos cidadãos de um direito de primeiríssima grandeza, de importância inquestionável: o direito de participação nas decisões estatais" .(OLIVEIRA, Gustavo Justino de. As audiências públicas e o processo administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 209. p. 274).

[2] Art. 17. § 1º. É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput.

[3] Ao tratar do tema, a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) previa a inclusão de um novo artigo, o 17-A, à Lei de Improbidade Administrativa, no qual regulamentava o acordo de não persecução cível. No entanto, esse dispositivo foi alvo de veto presidencial, de modo que o expediente foi incorporado ao ordenamento jurídico sem qualquer parâmetro legal de validade.

[4] BRASIL. Ministério Público do Estado de São Paulo (Centro de Apoio Operacional de Patrimônio Público e Social). Nota Técnica nº 02/2020 – PGJ-CAOP. Disponível em: https://mpsp.mp.br/documents/portlet_file_entry/20122/2676665.pdf/f038a222-803d-83b2-e8f8-a81730853632#:~:text=Assunto%3A%20Fornece%20subs%C3%ADdios%20aos%20membros,Resolu%C3%A7%C3%A3o%201.193%2F2020%20%2D%20CPJ. p. 7-8. Acesso em: 6 out. 2022.

[5] BRASIL. Ministério Público de São Paulo (Colégio dos Procuradores de Justiça). Resolução nº 1.193/2020. São Paulo, 12 mar. 2020. Disponível em: https://biblioteca.mpsp.mp.br//PHL_IMG/resolucoes/1193.pdf. Acesso em: 6 out. 2022).

[6] BRASIL. Advocacia Geral da União. Portaria Normativa nº 18/2021. Brasília: 19 jul. 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-normativa-agu-n-18-de-16-de-julho-de-2021-332609935. Acesso em: 6 out. 2022).

[7] Segundo o § 2º do artigo 3º da Lei de Improbidade Administrativa, nesses casos em que há sobreposição entre os regimes sancionatórios dessa Lei e da Lei Anticorrupção, para evitar bis in idem, esta última deve preponderar, de modo que o consenso deve ser buscado não pelo acordo de não persecução cível, mas pelo acordo de leniência, disciplinado no artigo 16 da Lei nº 12.846/2013.

[8] No mês de agosto, o STF julgou as ADIs nº 7.042 e 7.043, nas quais declarou inconstitucional a restrição da legitimidade ativa para atuar no microssistema de tutela da probidade administrativa ao Ministério Público, que excluiu a legitimação das pessoas jurídicas lesadas pela prática de ato ímprobo. Com a declaração de inconstitucionalidade, essas pessoas jurídicas reassumem a legitimidade não só para a requerer a aplicação de sanções nesse campo, como também para celebrar acordo de não persecução cível.

[9] OLIVEIRA, Gustavo Justino de. SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Direitos do particular no processo de negociação dos acordos administrativos. Revista Consultor Jurídico, 22 ago. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-22/publico-pragmatico-direitos-particular-processo-negociacao-acordos-administrativos. Acesso em: 6 out. 2022.

[10] PEREIRA, Eduardo Martins. Acordo de não persecução cível: novo regime jurídico e limites para o controle judicial. Trabalho de conclusão de curso (graduação) – UFSC. Orientador: Pedro de Menezes Niebuhr. Florianópolis, 2022. p. 59.

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