Filtro da discórdia

Em 2021, apenas um terço dos recursos especiais no STJ teria relevância presumida

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9 de outubro de 2022, 14h48

Instituído pela Emenda Constitucional 125/2022, o filtro da relevância para julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça tem potencial para impedir a tramitação de até dois terços dos recursos especiais que são interpostos na corte contra acórdãos de segundo grau.

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Dos 291 mil recursos recebidos pelo STJ em 2021, só 1/3 teria relevância presumida
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Essa conclusão se baseia em dados coletados pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas, que está produzindo um estudo aprofundado sobre o tema, sob a coordenação geral do ministro Luis Felipe Salomão.

O estudo partiu de estatísticas do próprio STJ referentes ao ano de 2021, quando a corte recebeu 291 mil recursos. O número é resultado da soma de 233,1 mil agravos em recurso especial (recurso contra decisão de inadmissão pelas instâncias ordinárias) e 57,9 mil recursos especiais.

Desses recursos, os pesquisadores da FGV identificaram que apenas 107 mil (um terço) possuíam relevância presumida, de acordo com os critérios fixados pela EC 125/2022: ações penais; de improbidade administrativa; cujo valor ultrapasse 500 salários mínimos; que possam gerar inelegibilidade; e quando contrariarem jurisprudência do STJ.

Esse é um cenário hipotético, já que o artigo 2º da emenda prevê que as partes poderão atualizar o valor da causa para comprovação ao STJ. Além disso, admite que outras hipóteses de presunção de relevância sejam definidas por lei.

O objetivo do estudo da FGV é justamente fornecer parâmetros para a regulamentação do filtro. No STJ, a ideia é fazer circular desde já pelos gabinetes um anteprojeto de lei para colher sugestões e opiniões dos ministros.

Todos os outros recursos, que não têm relevância presumida, precisariam passar pelo filtro. Na petição do REsp, será preciso comprovar que as questões de Direito federal infraconstitucional discutidas merecem ser apreciadas pelo STJ.

Em 2021, essa análise recairia sobre 184 mil processos — os dois terços restantes. A EC 125/2022 indica que o crivo será feito pelo órgão competente para o julgamento e a admissibilidade só será possível por manifestação de dois terços dos ministros integrantes.

"Daí a importância da regulamentação legal", opinou a juíza federal Caroline Tauk durante seminário sediado no STJ sobre o tema. "Hoje, o filtro está criado, então nos resta fazer o melhor possível da lei que vai trazer a regulamentação. Esse é o desafio da pesquisa: como dar equilíbrio ao uso da lei para regulamentação legal."

O filtro não abrangeria a totalidade dos processos enviados ao STJ. Em 2021, a corte recebeu 408,7 mil ações, incluídos aí 77,9 mil Habeas Corpus e 18 mil recursos em Habeas Corpus, além de mandados de segurança, recursos em mandado de segurança, conflitos de competência, reclamações e ações de competência originária da corte.

Gustavo Lima/STJ
Ministro Salomão coordena estudo da FGV para fornecer parâmetros sobre o filtro
Gustavo Lima/STJ

Relevância absoluta ou relativa
A implementação do filtro no STJ também passará pela discussão — se não legislativa, ao menos jurisprudencial — sobre o caráter da relevância presumida: se absoluto ou relativo.

A existência de hipóteses de relevância presumida foi crucial para destravar a tramitação da PEC da Relevância no Congresso Nacional, após reuniões entre ministros do STJ e parlamentares. Especialmente por envolver temas sensíveis à classe política, como ações penais, de improbidade administrativa e que possam gerar inelegibilidade.

A discussão que se coloca é se toda questão veiculada nos recursos especiais sobre temas cuja relevância é constitucionalmente presumida será passível de conhecimento.

Para Marcelo Marchiori, assessor-chefe do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e de Ações Coletivas do STJ, a resposta é negativa. Ele defende que a admissibilidade seja analisada a partir da questão jurídica trazida no recurso.

Marchiori cita como exemplos os numerosos casos em que ministros da 3ª Seção do STJ são chamados a deliberar sobre a aplicação do redutor de pena do artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006, chamado de tráfico privilegiado.

Neles, as defesas, na verdade, querem que o STJ avalie a primariedade do réu, os bons antecedentes, a ausência de dedicação a atividades criminosas e o fato de não integrarem organizações criminais, que são critérios para a redução da pena. Isso, porém, não pode ser avaliado pelos ministros, já que não cabe à corte reexaminar fatos e provas.

"Nesses casos, o STJ terá de analisar todos os processos, um a um, para dizer que recurso especial é incabível? Ou poderá submeter um recurso à sistemática da relevância para dizer uma tese?", indagou Marcelo Marchiori.

"Qual seria o tema? Não há relevância para requisitos de enquadramento do réu ao tráfico privilegiado, pois demanda revisão de fatos e provas. Qual a consequência disso? Novos recursos terão seguimento negado na origem", complementou ele.

Para o ministro Luis Felipe Salomão, esse debate deverá ser feito por ocasião da elaboração do anteprojeto de lei, ou mesmo diretamente no Legislativo. Já o ministro Antonio Saldanha Palheiro afirmou, no seminário do STJ, que a tendência é a relevância presumida ser interpretada como absoluta.

"Na minha percepção, o legislador quis que matéria penal fosse toda ela de apreciação obrigatória, inclusive porque envolve um requisito de princípio constitucional, que é a liberdade. Toda vez que ela está em jogo, é relevante", explicou Saldanha.

Há ainda outras dúvidas a resolver. A EC 125/2022 prevê a possibilidade de atualização do valor das causas, para fins de alcançar a marca de 500 salários mínimos. Mas em que momento isso deve ocorrer? E as causas sem valor mensurável? E aquelas cujo valor deve ser apurado em liquidação de sentença?

Por isso, Saldanha opinou que essas definições poderiam ser feitas via Regimento Interno, que, segundo o Supremo Tribunal Federal, tem força de lei formal. "Se cada vez que precisarmos atualizar a aplicação desses dispositivos necessitarmos de tramitação legislativa, certamente vai embaraçar a aplicação imediata", defendeu o ministro.

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