Opinião

O que é isto: a segurança jurídica? A ADI 2.332 e a (des)estabilidade

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7 de outubro de 2022, 10h13

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe um dispositivo — sugerido por mim ao relator do projeto — que estabelece a obrigatoriedade de as decisões judiciais guardarem estabilidade, coerência e integridade.

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Não é fácil exigir coerência e integridade, no modo conceitual cunhado pela tradição, em um país com tantas divergências doutrinárias e jurisprudenciais. De todo modo, incoerências e ausência de integridade jurídica podem ser corrigidas pela cadeia recursal.

Porém, se o tribunal que dá a palavra final acerca da interpretação — no caso, o Supremo Tribunal Federal — quebrar com a estabilidade das decisões judiciais, então, efetivamente, o problema assume contornos de insegurança. O CPC, ao exigir estabilidade, refere-se à segurança jurídica.

A Suprema Corte brasileira está por enfrentar um caso emblemático. Que terá reflexos no tema "segurança jurídica". Trata-se da inclusão da ADI 2.332 (EDs) na pauta de julgamento que tem início neste dia 7 de outubro. Como anunciado na coluna anterior (ver aqui), o tema voltaria à pauta e traria o risco de formação de um precedente perigoso.

No caso em questão, o STF apreciou o "caput" do artigo 15-A do DL 3.365/41, que limitava os juros compensatórios relativos à imissão provisória do ente público na posse de bem do particular, na desapropriação, ao percentual de 6% a.a.

No julgamento da medida cautelar, em 5/9/2001, o plenário do STF suspendeu a eficácia do dispositivo impugnado, retomando a aplicação de juros compensatórios de 12% a.a., nos termos dos enunciados sumulares nº 618/STF e nº 408/STJ. Na ocasião, o entendimento da maioria (voto divergente do ministro Sepúlveda Pertence) foi no sentido de que o limite de 6% deveria ser suspenso, ex nunc, até o julgamento final da ADI.

Ocorre que no julgamento de mérito, ocorrido tão-somente em 17/5/2018, portanto, 17 anos depois, o Supremo Tribunal entendeu por rever referido posicionamento para declarar a constitucionalidade dos juros compensatórios no patamar de 6% a.a., nos termos do voto do novo relator (ministro Barroso), vencido o ministro Marco Aurélio.

Nesse cenário, considerando-se a prolação de decisão liminar que vigorou por quase 17 anos, o que resta pendente de definição é:

"o que acontecerá com o período temporal acobertado pela cautelar?"

A resposta evidente é que o dispositivo limitador dos juros não poderia ser aplicado, uma vez que a norma teve sua eficácia suspensa pela decisão judicial de 2001 e restabelecida apenas em 2018. Mas o que parece uma resposta óbvia (e, com a máxima vênia, é), está gerando um debate difícil (e perigoso) no STF, nesses embargos de declaração.

Parte das preocupações relativas à essa controvérsia abordei na coluna do dia 22/9, mas dada a sensibilidade do tema — e a infinidade de matérias e abordagens que o circundam — entendo necessário, até por zelo epistemológico, retomar o assunto sob a perspectiva exclusiva da segurança jurídica e da proteção à confiança legítima. O tema é acadêmica e profissionalmente importante e me diz respeito como jurista, doutrinador e advogado.

Afinal, quando questões sensíveis — com consequências econômicas, financeiras e/ou políticas — são pautas frequentes de nossa mais alta Corte, a aplicação hermeneuticamente adequada do Direito implica, para além de responsabilidade política no ato de julgar, garantia de estabilidade institucional.

Estabilidade institucional não se confunde com imutabilidade. Nossa Corte — e isso é assim no mundo — tem diversas formas de rever seus posicionamentos (overruling e overriding, por exemplo).

Não obstante, qualquer revisão de posicionamento deve observar, com extrema cautela, aquilo que foi anteriormente decidido (e aplicado) pela corte constitucional, diante da segurança e confiança que gera nos cidadãos. Não se passa uma borracha no passado. Mormente na área jurídica.

No presente caso, estamos diante da superação de um entendimento duplamente sustentado pela Corte Constitucional brasileira: primeiramente, por força da tese resultante no entendimento sumulado que fixou a taxa de juros em 12% a.a.; e, em segundo lugar, pela decisão cautelar colegiada que suspendeu a eficácia da norma que limitou referida taxa ao patamar de 6% e ordenou a aplicação do enunciado sumular. Isto é: proferida a decisão cautelar, o direito que passou a existir (vigente, válido e eficaz) foi aquele resultante do provimento do Supremo. E esse provimento produziu efeitos jurídicos por longos 17 anos.  

Não se pode, portanto, admitir que o novo entendimento reflita nas situações fático-jurídicas já consolidadas, como em sentenças já transitadas em julgado, por exemplo. Aliás, nestes casos, a modificação da taxa de juros travestiria as indenizações outrora entendidas como justas (pelos parâmetros da época em que fixadas) em injustas.

Ademais, considerando que a edição do entendimento sumulado nº 618 data de 1984 e vem disciplinado a matéria por todo esse tempo – inclusive porque a tentativa de modificação foi liminarmente considerada inconstitucional pelo próprio STF —, a assunção de entendimento diverso representa verdadeira virada interpretativa.

Não se olvide que o artigo 927, § 4º, do CPC, acentua que: "A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia".

Em outras palavras: não se deve fundamentar apenas o porquê de a decisão ser pela constitucionalidade da norma impugnada, mas também observar todos os eventuais impactos derivados da virada jurisprudencial e as razões para assumir os prejuízos que venham a ser causados aos particulares que confiaram na tutela jurisdicional. Não havendo justificativa suficiente para a quebra da confiança legítima, todo o consolidado sob a égide da interpretação anterior deve ser mantido.

Nesse sentido, tenho que toda essa discussão deve ser feita à luz da construção/consolidação teórica dos efeitos prospectivos da decisão de natureza cautelar. O que quero dizer é que a possibilidade de ajustar, temporalmente, os efeitos da decisão — até mesmo lançando mão da técnica da modulação — não é uma exclusividade do sistema jurídico nacional. Essa mesma prática encontra previsão expressa nos ordenamentos constitucionais de Portugal, Espanha, Alemanha, Áustria, Estados Unidos, entre outros, e também vem sendo aplicada pelo Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia e pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Há que se ajustar, temporalmente, os efeitos da referida decisão cautelar que valeu por 17 anos. Sendo mais simples, o que quero dizer é: se um conjunto de cidadãos seguiu durante anos uma norma (decisão judicial, mesmo cautelar, é norma jurídica) e depois o Tribunal vem a dizer que essa cautelar não mais vale, por qual razão essas pessoas poderiam ser prejudicadas? Esse é o busílis.

Deveriam essas pessoas não ter obedecido a decisão cautelar? Ou, melhor: poderiam não ter obedecido a decisão judicial? E, agora, uma vez declarada a nulidade da cautelar, o direito exercido por essas pessoas simplesmente se esfumaça?

Qual é a palavra-chave? Segurança Jurídica. Ou isso ou estará quebrada a confiança nas decisões judiciais, mormente as que se estendem — no caso, por quase 18 anos — no tempo. Digo isso com olhos na coerência, integridade e estabilidade do sistema jurídico.

Parece não restar dúvida de que a questão é própria da teoria do direito e da teoria da Constituição. O jurista mais conhecido e importante do século 20 foi Hans Kelsen. Com ele, aprendemos o sentido do que é "norma jurídica". A partir dele também sabemos que decisão judicial é norma jurídica. Se é norma jurídica, então vale. E produz efeitos. Desse modo, pode-se afirmar que uma decisão cautelar que suspende a eficácia (aplicação) de uma lei (ou Medida Provisória que vale como lei) durante um período e depois é revogada, por qual razão essa declaração de constitucionalidade poderia retroagir, fulminando os atos jurídicos e perfeitos realizados no período da vigência da decisão cautelar — autêntica norma jurídica? Essa é a questão central na discussão que aqui se coloca.

Na verdade, o que se exige do Estado-Juiz, quando declara a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de um ato normativo é: (1) o respeito à coerência e à integridade (artigo 926, CPC); (2) a garantia da segurança jurídica (artigo 5º, XXXVI, CR), que, por sua vez, devem resultar da efetivação do (3) direito fundamental a decisões fundamentadas (artigo 93, IX, CR).

Assim, mudanças no posicionamento de um Tribunal (veja-se que, em 17 anos, mudou até mesmo a composição da Corte) podem ocorrer devido à existência de situação jurídica que se difere daquela que gerou a consolidação do entendimento em determinado sentido. Isso exige, à toda evidência, uma aplicação distinta do direito, construída a partir das especificidades do caso concreto.

Permito-me ir mais longe. E registrar que coerência e integridade não devem ser exigidas apenas do judiciário. Veja-se que autores como o espanhol Manuel Atienza propõem a exigência de coerência e integridade na legislação. E por que não exigir comportamento coerente e integro do poder executivo?

Explico as razões pelas quais trago essa questão à baila: é que na ADI nº 2.332/DF, a União opôs embargos declaratórios em favor da retroatividade dos efeitos (o que fulmina a eficácia da decisão, para trás, 17 anos); porém, no julgamento do RE nº 574.706 (rel. min. Carmen Lúcia) — isto é, na discussão sobre a constitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e Cofins –, que representa o prejuízo de R$ 229 bilhões aos cofres públicos, a União requereu a modulação para que se atribuam efeitos ex nunc à decisão de mérito. Ainda que cada caso possua suas particularidades, o comportamento da União se revela, no mínimo, contraditório e consequencialista, instrumentalizando a modulação dos efeitos em favor, apenas, do interesse econômico do Estado.

Por outro lado, ainda no plano da coerência e integridade, o próprio Supremo Tribunal, na ADI 7.153, recentemente, procedeu à suspensão de efeitos de um decreto por meio de cautelar. E depois essa cautelar foi revogada. Sobreveio apenas um mês de vigência dessa decisão. Ainda assim, os efeitos foram ex nunc. Se nesse caso, de curtíssima duração, houve essa cautela, imaginemos com a repercussão de uma suspensão que dura mais de três lustros.

Em síntese, um instituto não pode ser utilizado para fins contrários à sua essência. Modular efeitos só tem sentido para dar segurança jurídica e confiança ao sistema. Se a modulação for usada para trazer insegurança, então já não é modulação. 

É preciso que — e, como falei, esse caso (tema) dá tese de doutorado — tenhamos claro que norma jurídica é o sentido objetivo de vontade dirigido à conduta de outrem. Isso quer dizer que uma decisão judicial, mormente se advém da Suprema Corte, é autêntica norma jurídica. Enquanto não for desconstituída, vale e produz efeitos. Logo, não importa o modo como isso ocorre. O que importa é que o efeito, nessas hipóteses em que uma decisão (cautelar) existiu (e valeu) por longos anos, não pode retroagir para nulificar tudo o que valia.

Desde Marbury v. Madison, a jurisdição constitucional tem por escopo cuidar das grandes temáticas que, de forma sensível, podem alterar a estrutura dos estados. E cada decisão, além dos efeitos colaterais, repercute para a frente, naquilo que chamamos de "precedente".

Ou seja, uma Suprema Corte produz norma jurídica. E produz norma especialíssima, que passa a valer no mesmo instante. Quando uma decisão cautelar suspende a eficácia de uma lei, faz com que a eficácia cesse. E tudo o que se fizer dali para frente — até a cautelar valer — será feito de acordo com o direito posto pela Suprema Corte. E as pessoas farão negócios confiando no direito. Se, porém, anos depois, a mesma Suprema Corte julgar que deve se desdizer, pode fazê-lo. O que não pode fazer é dizer que tudo o que foi feito até então, baseado na decisão anterior, nada vale(u). Se assim o fizer, estará dizendo, em outros palavras, que suas decisões não são normas jurídicas. Mas todos sabemos que são.

Como derradeiro: o grande jusfilósofo Lon Fuller, autor, entre outros, do livro O Caso dos Exploradores de Cavernas, no livro A Moralidade do Direito (editora  Contracorrente, pp. 68 e segs) faz uma dura crítica à hipótese de leis retroativas. No fundo, o caso aqui sob análise trata disso. Decisão com efeito retrospectivo equivale à lei retroativa.

Explico: 1. Se decisão judicial é norma jurídica;  2) se o STF concede uma cautelar suspendendo uma lei por inconstitucionalidade;  3) se essa suspensão — que é uma norma jurídica — vale por 17 anos e 4) depois desses 17 anos o STF decide que a lei que fora suspensa é, na verdade, constitucional, 5) então, se ele decidir que o efeito é ex tunc equivale a fazer uma lei retroativa.

Diz Fuller: tomada por si mesma, e em uma abstração de sua função possível em um sistema de leis que são amplamente prospectivas, uma norma retroativa é verdadeiramente uma monstruosidade. Isto porque a lei tem a ver com a governança da conduta humana por meio de normas.

Falar de governar ou dirigir a conduta hoje (substituamos a expressão por eficácia de 17 anos) por meio de normas que serão promulgadas amanhã (p.ex., decisão que dá efeito ex tunc nas circunstâncias da ADI sob comento) é falar da mais pura insegurança. Ou, como diz Fuller, é como falar do vácuo perfeito e se nele há pressão de ar.

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