Senso Incomum

Abraão, o 34º ano da Constituição e a política entre deuses e bestas

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6 de outubro de 2022, 8h00

O que dizer dos (e nos) 34 anos da Constituição? Perigosamente, é possível dizer que o direito brasileiro fracassou. Claro que a CF-88 trouxe avanços. Mas também proporcionou o surgimento de multidões de reacionários que, paradoxalmente, graças à Constituição…odeiam a Constituição. Não é difícil constatar esse fenômeno.

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Por que digo isto? Porque se o direito serve para limitar o poder e se o poder, a política, é que vem limitando o direito, então o direito passou a ser um mero instrumento. Do poder e da política.

Portanto, do lugar do direito pouco tenho a dizer do ordenamento e sua eficacialidade. Afinal, já disse muito sobre isso. Para se ter uma ideia, só aqui no ConJur publiquei mais de 800 textos (artigos e colunas) e sou referido por mais de mil vezes em outros. Afinal, fiz muitas canções de amor à Constituição.

Porém, para além disso, falarei um pouco do que não existe. Tem gente que recorre à religião até mesmo quando se fala de Direito. Para facilitar a compreensão daqueles que se recusam a compreender, também o farei. Para ver se me entendem.

Em Gênesis, Abraão discute com Deus o destino de Sodoma. Quantos justos lá haveria? Cinquenta? Vinte? Dez? Quando se percebe que não havia nem mesmo cinco justos em Sodoma, Abraão, em vez de pedir perdão, com os olhos voltados aos céus, pergunta ao Pai: "Não agirá com justiça o Juiz de toda a Terra?"

Amós Oz — escritor israelense, fundador de um movimento pacifista em favor da solução de dois Estados — faz uma leitura muito bonita dessa passagem e do significado subjacente ao "atrevimento" de Abraão:

"Em outras palavras: você é realmente o juiz de toda a Terra, mas não está acima da lei. Você é realmente o legislador, mas não está acima da lei. Você é o senhor de todo o universo, mas não está acima da lei."

Oz segue:

"Não sabemos de nenhum raio que tenha fulminado Abraão como castigo por insolência ou ofensa aos céus".

Por que Deus não fulminou Abraão? Simples: porque ninguém está acima da lei. Nem Ele.

Por aqui, não precisamos nem falar de uma Constituição que completa 34 anos. Falemos da Bíblia, que qualquer pastor (ou padre que não é padre) picareta lê como quer. Deveriam ler Santo Agostinho. Problema: neopentecostais e evangélicos não aceitariam ler Santo Agostinho.

Assim como a Constituição virou instrumento contra o próprio Direito, a Bíblia virou instrumento de ódio, nas mãos (ou pés) de pseudo padres e pastores que se aproveitam da fé do povo (um deles "curou" mais de 100 mil casos de Covid — na TV — e continua pregando, soltinho… e fazendo campanha política; detalhe: "curou" 100 mil pessoas e ele mesmo foi entubado por Covid). É o fator "santo pix".

Enquanto a balzaquiana (a CF-88) diz que o Estado é laico, escandalosamente templos viraram comitês e cultos viraram comícios (e com imunidade tributária, isto é, eu e vocês transferimos nossos recursos para fazer a felicidade de quem usufrui de imunidade tributária). Ao mesmo tempo, como se fosse uma alegoria, parcela considerável das salas de aula dos cursos de direito virou instrumento de multiplicação de platitudes e nesciedades. Como pastores neopentecostais falando em "piscologia" (sic), esgrimem-se livros simplificados, mastigados, resumidinhos e resumidões. Parece que tudo está interligado. É o (neo)pentecostalismo jurídico da prosperidade.

Pulando para o menos importante, o direito, cabe perguntar no aniversário de 34 anos: o que foi feito, por exemplo, do direito eleitoral?

Já sei: é a política que controla o direito no Brasil. É a força. O poder. É o fato consumado.

E cabe perguntar: as redes sociais, da forma como estão, são compatíveis com a democracia? Há terra sem lei? É possível controlar a disseminação de fake news? Não, não respondam.

O poder pode tudo ou tem controle? Perguntemos ao Ministério Público.

Você (procurador, juiz, ministro, presidente, deputado) não está acima da lei. Ninguém está. Lembremos de Abraão.

Inclusive, é a lei que os torna juízes, procuradores, ministros, presidentes, deputados. Estamos inseridos na prática que nos autoriza.

Quando o direito é desrespeitado nesse nível, é o próprio poder que perde seu sentido e vira mera barbárie. Mas quem se importa, afinal?

Pois afirmo: essa "tese" só funciona quando o poder está com você. Fica o aviso. Apostar no poder tem seus riscos. E quando o poder não for mais seu? A que(m) você recorrerá? À lei?

Pois é.

Aos 34 anos da Constituição, há quem queira voltar à pré-modernidade. Vejo advogados e estudantes de direito gritando contra a Constituição. Há camisas com os dizeres: eu autorizo intervenção militar.

Ninguém está acima da lei.

Quantos justos haverá no Brasil, perguntaria Abraão. Quantos acreditadores da Constituição haverá, pergunto eu. Esse número vem crescendo ou diminuindo?

Vacina ou cloroquina? Constituição ou barbárie? Cidade dos Homens ou Cidade de Deus? No Brasil, a julgar pelo que vê nesse fenômeno da volta à pré-modernidade em que a religião dominava a política, Santo Agostinho expulsaria os vendilhões da fé. Jesus também.

Aristóteles foi certeiro: a política é uma ciência estritamente humana, não é assunto nem de bestas nem de deuses.

Logo, como os protagonistas que misturam religião e política não são deuses, resta-lhes a segunda hipótese, segundo o velho Ari: bestas.

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