Lei dos Alimentos Gravídicos: tutela efetiva de direitos fundamentais ou retrocesso?
5 de outubro de 2022, 6h39
Os operadores do Direito têm ciência inequívoca de que o ordenamento jurídico brasileiro é um conjunto de leis que ultrapassa os limites da simples contabilidade, quando nos referimos ao seu quantitativo. Para além do atendimento das mais diversas especialidades em que os fatos da vida nelas incorrem, movimentando, de forma reflexiva e conjugada, as atividades advocatícia e jurisdicional, muitas vezes, a atuação do legislador num momento de clamor social pela tão sonhada "justiça" se encontra perdida nesse emaranhado normativo, como parece-nos ser o caso da Lei nº 11.804, de 5 de novembro de 2008, denominada Lei dos Alimentos Gravídicos.
Ainda em pleno vigor, dos doze artigos elaborados na sua edição, apenas seis encontram-se vigentes em razão de vetos. Do seu teor, extrai-se que a referida norma tem por objetivo disciplinar o direito de alimentos à mulher gestante e a forma como esse direito será exercido. No artigo 2.º, está a especificação do que são os alimentos gravídicos: "valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes". O parágrafo único do artigo 2º dispõe a respeito da proporcionalidade desta contribuição, no sentido de que será estabelecida de acordo com as condições da gestante e do indigitado genitor, ao qual o dispositivo denomina de "futuro pai".
Até este ponto, conseguimos adequar com facilidade a norma ao fato da vida para o qual ela se destina. Mas seguindo na análise da lei, temos no artigo 6º a particularidade que se revela problemática deste regramento. O mencionado artigo dispõe que o magistrado, "Convencido da existência de indícios da paternidade", fixará os alimentos gravídicos que deverão ser prestados até o nascimento da criança, levando em conta as necessidades da gestante e as possibilidades de quem os prestará, em clara invocação ao binômio necessidade do alimentado-possibilidade do alimentante, norteadores dos alimentos de que tratam as Leis 5.478, de 25 de julho de 1968 e 8.971, de 29 de dezembro de 1994 (Lei de Alimentos e Lei dos Alimentos e Sucessão entre Companheiros), as quais, inclusive, por disposição expressa do artigo 11, são aplicadas subsidiariamente.
O problema está em que, por se tratar de legislação que se propõe a proteger o nascituro desde a sua concepção, com base nos Princípios Constitucionais do direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana, — viabilizando que as necessidades da gestante sejam supridas durante o período da gestação —, o acréscimo do parágrafo único do artigo 6º, estipulando que, após o nascimento com vida da criança, os alimentos gravídicos já fixados serão convertidos em pensão alimentícia para o menor, até que uma das partes demande sua revisão, a disposição legal de que o convencimento do julgador dar-se-á por meio de "indícios" parece impor à lei alguma fragilidade na sua aplicação, mormente quando vista do outro lado da moeda — da parte do indigitado pai —, o que definitivamente não atende aos pressupostos essenciais da adequada prática legislativa.
Ao enumerar os requisitos da petição inicial, o artigo 319, VI, do Código de Processo Civil é específico ao dispor acerca da indicação das provas com que o autor pretende comprovar suas alegações, sendo que, neste particular, Cassio Scarpinella Bueno ainda enfatiza a necessidade desta instrução ser feita não apenas com os documentos considerados "essenciais", mas com "todos e quaisquer (…) que o autor conheça sobre fatos por ele alegados" [1]. Ainda sobre o tema, fazendo breve incursão na seara da Teoria Geral das Provas no Direito Penal, Renato Brasileiro de Lima, ao interpretar o artigo 239 do Código de Processo Penal, afirma que o indício é o ponto de partida da presunção, ou seja, "não é um meio de prova, mas apenas o resultado probatório de um meio de prova", tanto que, segundo o autor, devem ser plurais, jamais admitindo-se um único indício; estarem estritamente interligados entre si; se apresentarem de forma concomitante, desautorizando meras conjecturas ou suspeitas; e decorrerem de razões dedutivas [2].
Feitas tais considerações, pergunta-se: Será o comando do artigo 6.º da Lei dos Alimentos Gravídicos condizente com as boas técnicas de elaboração legislativa, tendo em conta os princípios que norteiam a instrução probatória no ordenamento jurídico brasileiro? Andou bem o legislador ao dispor que, com base em indícios, o magistrado, desde logo, deverá estabelecer a obrigação alimentar ao pai indicado pela gestante? Parece-nos que não.
Quando nos deparamos com os direitos tutelados pela Lei nº 11.804/2008, inquestionavelmente vêm à tona não só aqueles de titularidade da criança em formação — artigos 20 do Código Civil, 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente, e 50 da Constituição —, como também os inerentes à pessoa do suposto genitor, pois terá sobre si a imposição de uma prestação pecuniária desde a concepção até o parto, após o que será convertida em pensão alimentícia até que sobrevenha fator que modifique a situação financeira de qualquer dos interessados (artigo 15, da Lei nº 5.478/68), com base em meros indícios, e não em provas robustas. A referida lei segue seu teor, dispondo no artigo 7º, ou seja, após a fixação dos alimentos gravídicos na forma descrita, que o réu será citado para apresentar resposta em cinco dias. A Lei dos Alimentos Gravídicos nada mais dispõe a respeito da matéria, encerrando seus termos no também já mencionado artigo 11, que trata da subsidiariedade das Leis de Alimentos e de Alimentos aos Companheiros, e que entraria em vigor na data de sua publicação (artigo 12).
Nesta reflexão, não nos deteremos nas questões sociais relacionadas aos convívios afetivos entre os atores do cotidiano, que se envolvem em relações sexuais de forma irresponsável resultando em gestações indesejáveis, mas, inevitavelmente, tal situação traz reflexos ao mundo jurídico, os quais impulsionam o legislador a criar mecanismos legais com vistas a serem minimizadas "as consequências das inconsequências", sob a justificativa do bem-estar social geral. Todavia, parece inevitável a ponderação a respeito do descuido do legislador ao editar a norma em questão, sob pena de caracterização de eventual retrocesso social.
Ao discorrer sobre o tema, Felipe Derbli ressalta que a proibição do retrocesso social é um princípio constitucional, "na medida em que se propõe a preservar um estado de coisas já conquistado contra a sua restrição ou supressão arbitrária" [3].
Voltando os olhos, então, para aquele pai, contra quem se ajuizará a ação objetivando a fixação de alimentos gravídicos: não seria ele digno do devido processo legal pautado pela ampla defesa e contraditório efetivo, onde se utilizariam todos os meios de prova juridicamente admitidos? A indicação de sua paternidade, muitas vezes permeada de rancor pelo insucesso do relacionamento amoroso, com base em indícios, não atinge também sua dignidade? Tal disposição legal não surtiria o efeito de trazer instabilidade às relações jurídicas estabelecidas nos respectivos processos por impor condenação com base em de suporte probatório frágil? O Direito das Famílias — denominação atual do ramo jurídico voltado à tutela dos interesses das diversas constelações familiares — já trabalha em ambiente suficientemente sensível, dispensando, assim, mais uma arena.
Para uma lei que tem como foco a tutela de direitos fundamentais, a Lei dos Alimentos Gravídicos nos parece fugir do padrão normativo para tanto, por não permitir o embate jurídico com paridade de armas, apesar de encontrar-se em pleno vigor.
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Referências
[1] BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 315.
[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal, Volume único. 2ª edição. Salvador: Jus Podivm, 2014. P. 558.
[3] DERBLI, Felipe. A aplicabilidade do princípio da vedação do retrocesso social no direito brasileiro. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (Coords.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 362.
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