Território Aduaneiro

Conversando sobre a nova IN de valoração aduaneira, ao som de Chico Buarque

Autores

  • Arnaldo Diefenthaeler Dornelles

    é auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil (em mandato de conselheiro titular) representante da Fazenda Nacional na 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção de Julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais graduado em Direito e em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em mercado de capitais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

4 de outubro de 2022, 8h00

Depois do colega de coluna Leonardo Branco, na companhia de Thális Andrade, discorrerem sobre o direito aduaneiro sancionador e sua obsolescência [1], inspirados em letras de Chico Buarque, esta semana propomos a abordagem de um assunto bem mais pontual, mas, da mesma forma, atual e relevante. Sem intenção de esgotarmos o assunto, a ideia é tratar de algumas questões que emergiram com a recente normativa sobre valoração aduaneira [2]… vamos em frente, sem desligar o som, por favor!

Spacca
A publicação de uma instrução normativa (IN) pela Receita Federal (RFB), com frequência, mais do que gerar debates a respeito de sua interpretação, gera preocupações e inseguranças sobre a forma como ela será entendida e a sua aplicada pela fiscalização.

Pois bem, a IN RFB nº 2.090/2022, que trata da aplicação do Acordo sobre a Implementação do Artigo VII do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt) 1994 (Acordo de Valoração Aduaneira – AVA/Gatt) para a determinação da base de cálculo do imposto de importação, colocou algumas "pulgas atrás de muitas orelhas".

Vamos começar olhando um primeiro ponto que está mais diretamente relacionado ao artigo de Leonardo e Thális sobre sanções, uma vez que agora tratamos do procedimento de valoração aduaneira nos casos em que há verificação de fraude, sonegação ou conluio. Nesses casos, a apreensão dos intervenientes nas operações de comércio exterior decorre da possibilidade de que a fiscalização aduaneira deixe de valorar a mercadoria importada com base no primeiro método do AVA/Gatt (valor de transação) e passe a valorá-la com base em um "arbitramento", conforme previsto no § 2º do artigo 1º da nova IN [3].

Todavia, não há aí, realmente, uma novidade. Quando há fraude, sonegação ou conluio, sem que seja possível determinar o preço efetivamente praticado, o afastamento do AVA/Gatt e a determinação da base de cálculo do imposto de importação a partir de um "arbitramento" de preço estão autorizados pelo artigo 88 da MP nº 2.158-35/2001, ou seja, há mais de duas décadas.

Esse caminho escolhido pelo legislador nacional, que buscou um duvidoso amparo no Artigo 17 do AVA/Gatt [4], acabou por criar um segundo instrumento de valoração que, apesar de não afastar o AVA/Gatt por completo, permite que ele não seja aplicado em sua plenitude.

O nome "arbitramento" certamente causa desconfiança, pois que remete intuitivamente à ideia de arbitrariedade. Contudo, numa leitura atenta do texto legal, verifica-se que esse “arbitramento” corresponde à aplicação de critérios estabelecidos pelo legislador para a determinação do preço da mercadoria; critérios esses que não destoam, fundamentalmente, daqueles previstos no AVA/Gatt. Simplificadamente, é como se o legislador tivesse estabelecido que, em caso de fraude, sonegação ou conluio, a mercadoria pode ser valorada pela aplicação direta do sexto e último método do AVA/Gatt, o qual prevê a valoração a partir da utilização de critérios razoáveis e da flexibilização da aplicação dos métodos anteriores.

Outro aspecto a ser observado em relação ao que determina § 2º do artigo 1º da IN RFB nº 2.090/2022, e o próprio artigo 88 da MP nº 2.158-35/2001, é que, caso seja possível determinar o preço efetivamente praticado, a mercadoria deve ser valorada com base no primeiro método de valoração estabelecido pelo AVA/Gatt, não se devendo cogitar o "arbitramento" de preço.

Além disso, a autorização dada pelo legislador ordinário, reproduzida na IN, impõe que, para que seja possível a valoração por meio de um "arbitramento" de preço, a fraude, a sonegação ou o conluio tenha sido verificado pela fiscalização, não se admitindo a mera presunção.

Por fim, é de se destacar que a MP nº 2.158-35/2001, quando trata do "arbitramento", não se refere a valor aduaneiro, mas sim a preço, que, segundo o Artigo 1 do AVA/Gatt [5], é uma parcela do valor aduaneiro. Isso significa que, nesse caso, para que a valoração da mercadoria esteja completa, após o "arbitramento" de preço, é preciso retornar ao AVA/Gatt para que as demais parcelas do valor aduaneiro, especialmente o frete e o seguro sejam incorporadas.

Uma segunda preocupação levantada nos diversos fóruns de discussão aduaneira concerne ao comando presente no caput do artigo 22 da IN RFB nº 2.090/2022, o qual determina que o valor aduaneiro da mercadoria admitida em regime aduaneiro especial ou aplicado em área especial, com suspensão total ou parcial do pagamento de tributos, deverá ser declarado com base em um dos métodos substitutivos previstos no AVA/Gatt, exceto quando as importações tenham como fundamento uma venda para exportação para o país (§ 1º).

Também neste caso não há um caráter de novidade, uma vez que o Artigo 1 do AVA/Gatt deixou claro que a aplicação do primeiro método de valoração aduaneira pressupõe uma compra e venda no mercado internacional entre um comprador e um vendedor independentes.

Não se pode concluir que o artigo 34 da IN SRF nº 327/ 2003, revogada pela IN RFB nº 2.090/ 2022, estava autorizando a valoração com base no primeiro método somente pelo fato de que, quando tratava da valoração em regimes aduaneiros especiais, determinava que o valor aduaneiro deveria ser declarado com base nos documentos da operação comercial. Contudo, tal prática se tornou recorrente nas importações registradas no Brasil.

É bem verdade que eventuais problemas que possam advir da necessidade de os importadores declararem um método substitutivo de valoração para as mercadorias importadas que não sejam objeto de uma compra e venda internacional, ou que, por qualquer motivo, não cumpram os requisitos para que possam ser valoradas com base no primeiro método, devem ser rapidamente identificados e solucionados pela Receita Federal, sob pena de se condenar a norma ao desuso.

Por exemplo, diante da impossibilidade de o sistema registrar, em uma mesma declaração de importação, mercadorias sujeitas à valoração aduaneira com base em métodos diferentes, há a necessidade de a Receita Federal prontamente providenciar as necessárias modificações no sistema, ou, ao menos, orientar para que sejam registradas duas declarações de importação ou para que a informação do método de valoração seja prestada nas informações complementares.

Não obstante os possíveis ajustes necessários para a boa aplicação da norma, vemos como positivo o que determina o caput do artigo 22 da IN RFB nº 2.090/2022, uma vez que sinaliza a intenção da Receita Federal de observar, de forma ampla e aderente, a aplicação do AVA/Gatt no Brasil. Isso é importante para que haja mais transparência e segurança em relação à tributação a que estão sujeitas as mercadorias importadas, o que, sem dúvidas, contribui para uma maior inserção do país no cenário internacional.

Um terceiro ponto de discussão está relacionado com o artigo 12 da IN RFB nº 2.090/2022, que prevê a possibilidade de a fiscalização aduaneira decidir pela impossibilidade de aplicação do primeiro método em certos casos, inclusive em razão da não apresentação de resposta a intimação para prestar esclarecimentos em relação a dúvidas sobre a veracidade ou exatidão do valor declarado, bem como de apresentação de resposta que seja insuficiente para sanar essas dúvidas.

Para os críticos, a IN teria avançado para além de sua competência, estabelecendo, na prática, uma inversão do ônus da prova não prevista em lei. Para eles, nesse aspecto, a IN seria ilegal.

Contudo, não nos parece ser esse o melhor entendimento. A IN não traz inovações sobre o tema, mas sim compila e consolida aquilo que a legislação dispõe em diversos instrumentos legais. Aliás, o texto do artigo 12 da IN RFB nº 2.090/2022, não destoa daquele que já estava presente no § 1º do artigo 32 da revogada IN SRF nº 327/2003.

Se nos voltarmos para o AVA/Gatt, veremos que o seu Artigo 17 reconhece o direito que as administrações aduaneiras têm de se assegurarem da veracidade ou exatidão de qualquer afirmação, documento ou declaração apresentados para fins de valoração aduaneira.

O Comitê de Valoração Aduaneira (CVA) da OMC, inclusive, ao analisar um caso concreto, decidiu, por meio da Decisão 6.1 [6], que, diante de dúvidas, a administração aduaneira poderá solicitar explicação adicional, inclusive documentos ou outras provas, de que o valor declarado representa o montante efetivamente pago ou a pagar, e que, se após a resposta apresentada, ou na falta de resposta, a dúvida persistir, a administração aduaneira poderá decidir pela impossibilidade de determinação do valor aduaneiro com base no primeiro método.

Nessa mesma linha, dispõem o artigo 86 da MP nº 2.158-35/ 2001, o artigo 82 do Decreto nº 6.759/ 2009 (Regulamento Aduaneiro – RA), e o artigo 70 da Lei nº 10.833/2003.

O primeiro (artigo 86 da MP nº 2.158-35/2001) determina que o valor aduaneiro deve ser apurado com base em método substitutivo quando o importador ou o adquirente não apresentar à fiscalização os documentos comprobatórios das informações prestadas na declaração de importação, inclusive a correspondência comercial.

O segundo (artigo 82 do RA) expressamente autoriza a autoridade aduaneira a decidir pela impossibilidade da aplicação do primeiro método quando houver dúvidas da veracidade ou exatidão dos dados ou documentos apresentados como prova de uma declaração de valor e, ao mesmo tempo, as explicações, documentos ou provas complementares, apresentados pelo importador, não sejam suficientes para esclarecer a dúvida existente.

O terceiro (artigo 70 da Lei nº 10.833/ 2003) determina, para o importador e para o adquirente de mercadoria importada por sua conta e ordem, a obrigação de manter em boa guarda e ordem e de apresentar à fiscalização, quando exigidos, os documentos relativos às transações que realizarem, inclusive a correspondência comercial (§ 1º), estabelecendo como consequência pelo descumprimento dessa obrigação a apuração do valor aduaneiro com base em método substitutivo, caso exista dúvida em relação ao valor aduaneiro declarado.

Como se percebe, mesmo que possamos entender que o artigo 12 da IN RFB nº 2.090/2022 trabalha, em algumas situações, com a lógica da inversão do ônus da prova, evidencia-se que, n esse caso, há amparo legal para tanto.

Um último ponto que vem causando certa preocupação entre os intervenientes nas operações de comércio é a menção feita pela IN RFB nº 2.090/2022, por três vezes (§ 6º do artigo 4, caput do artigo 17 e inciso VI do artigo 28), a preço de transferência, instituto utilizado pelas administrações tributárias de todo o mundo, inclusive pela RFB, para fins de tributação do imposto de renda.

Alguns defendem que, por se tratar de institutos que apresentam finalidades distintas [7], não se poderiam utilizar as informações relacionadas a preço de transferência para fins de apuração do valor aduaneiro.·.

Mas essa não é a tendência que observamos em nível internacional. A Organização Mundial das Aduanas (OMA) elaborou o Guia da OMA sobre Valoração Aduaneira e Preços de Transferência [8], que trata de situações em que a administração aduaneira pode utilizar informações sobre preço de transferência para a determinação do valor aduaneiro. Nesse documento também se esclarece que a OMA, a OCDE e o Banco Mundial estão trabalhando em conjunto para incentivar as administrações aduaneiras e tributárias a estabelecerem linhas de comunicação bilaterais com a finalidade de troca de conhecimentos, práticas e dados, que ajudariam a garantir que cada autoridade tenha a visão mais ampla possível dos negócios e conformidade de empresas multinacionais, para que assim seja possível tomar decisões embasadas sobre a correta responsabilidade tributária.

Há ainda dois Estudos de Caso (14.1 e 14.2) [9] do Comitê Técnico de Valoração Aduaneira (CTVA), da OMA, em que foram utilizadas informações sobre preço de transferência para que se pudesse concluir que, no primeiro caso (14.1), a vinculação entre as partes não influenciou o preço e que, no segundo caso (14.2), o preço havia sido influenciado pela relação existente entre o comprador e o vendedor.

Soma-se e esses dois Estudos de Caso o Comentário 23.1 [10], também do CTVA, que, ao esclarecer que a utilização de um estudo sobre preços de transferência como uma base possível para examinar as circunstâncias da venda deve ser considerada caso a caso, reconhece a sua importância para a determinação, em alguns casos, do valor aduaneiro.

Diante disso, o que verificamos no texto da IN RFB nº 2.090/2022 é efetivamente um alinhamento com as práticas internacionais, as quais já vêm indicando a utilização de informações relacionadas com preço de transferência para a determinação do valor aduaneiro.

Precisamos ainda agregar que a relação entre preço de transferência e valor aduaneiro foi submetida ao Carf, tendo a relatora do processo 11080.724128/2015-21, Acórdão 3201-009.605, apontado que "a utilização dos preços de transferência como subsídio para exame das transações entre parte vinculadas no contexto da valoração aduaneira é prática recomendada pelos organismos internacionais, OMA, OCDE e CCI, e prevista na legislação nacional".

Feitas essas considerações, é de nos questionarmos o quanto há, efetivamente, de inovação na IN RFB nº 2.090/2022, e o quanto ela modificará as ações da Receita Federal e dos intervenientes nas operações de comércio exterior.

Nos parece que há explicações para a maioria das questões que aparentemente trataram de novidades na norma procedimental aduaneira de valoração. Poderiam ainda ser buscadas justificativas, como desafio futuro, para o fato de a IN RFB nº 2.090/2022 ter considerado, no § 5º do artigo 4º, a possibilidade de vedação de utilização do método do valor de transação quando restar constatada a vinculação entre o vendedor estrangeiro e o encomendante predeterminado, o que constitui verdadeiro ponto para reflexão e até aprimoramento da norma… mas não baixemos a música, pois amanhã vai ser outro dia…

 


[1] "Amanhã vai ser outro dia: o Direito Aduaneiro Sancionador" (disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-set-27/territorio-aduaneiro-amanha-outro-dia-direito-aduaneiro-sancionador. Acesso em: 01 out. 2022.).

[2] IN RFB nº 2.090, de 22 de junho de 2022

[3] "§ 2º O disposto nesta Instrução Normativa não se aplica aos casos em que se verifique fraude, sonegação ou conluio, nos quais não seja possível apurar o preço efetivamente praticado na importação, hipótese em que se aplica o disposto no art. 88 da Medida Provisória 2.158-35, de 24 de agosto de 2001."

[4] "Artigo 17 – Nenhuma disposição deste Acordo poderá ser interpretada como restrição ou questionamento dos direitos que têm as administrações aduaneiras de se asseguraram de veracidade ou exatidão de qualquer afirmação, documento ou declaração apresentados para fins de valoração aduaneira."

[5] "Artigo 1 – 1. O valor aduaneiro de mercadorias importadas será o valor de transação, isto é, o preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias em uma venda para exportação para o país de importação, ajustado de acordo com as disposições do Artigo 8 (…)".

[7] Segundo o Guia da OMA sobre Valoração Aduaneira e Preços de Transferência, ao passo que a determinação do valor aduaneiro, base de cálculo do imposto de importação, busca garantir que todos os elementos adequados estejam ali incluídos e, especialmente, que ele não esteja "subdeclarado", a determinação do preço de transferência busca garantir que não haja a inclusão de elementos inadequados e, especialmente, que ele não esteja "sobredeclarado".

Autores

  • é auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil (em mandato de conselheiro titular), representante da Fazenda Nacional na 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção de Julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, graduado em Direito e em engenharia elétrica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em mercado de capitais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

  • é presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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