Opinião

Trabalhador em home office é empregador celetista de domésticas e diaristas?

Autor

  • Paulo José Libardoni

    é pós-doutor em Direito pelo programa de pós-graduação em Direito (Direito do Trabalho) da PUC-RS (2022) doutor em sociologia (UFRGS 2016) mestre em Desenvolvimento (Unijui 2007) advogado pesquisador e palestrante.

4 de outubro de 2022, 20h35

O trabalho em domicílio no Brasil não é novo, sendo novo apenas o trabalho em domicílio que utiliza tecnologias de informação e comunicação (teletrabalho). Muitas profissões do setor privado e público, mesmo antes da pandemia, já estavam laborando no sistema de teletrabalho na espécie: home office, trabalho remoto, coworking, entre outras.

As tecnologias de informação e comunicação (TICs) transformaram o lar familiar — transitória e ou permanentemente — em uma extensão direta da empresa e do Estado, perdendo assim a sua peculiaridade (finalidade) não lucrativa.

O Princípio da Primazia da Realidade impõe o reconhecimento do vínculo de emprego de celetistas às empregadas domésticas e diaristas que laboram em residências onde os empregadores trabalham em home office.

O teletrabalho em âmbito doméstico (home office) é o definido no artigo 75-A e seguintes da Lei nº 5.452/43 (Lei nº 13.467/2017), já o trabalho doméstico e diarista é o definido pelo artigo 1º e seguintes da Lei Complementar nº 150/2015. Dentre os requisitos normados pela citada lei complementar o local de trabalho do doméstico/diarista exige, entre outros elementos, que o “labor seja prestado no âmbito familiar e sem finalidade lucrativa”, mas neste mesmo local está sendo prestado o teletrabalho na modalidade home office que possui finalidade lucrativa.

Imagine o seguinte cenário: A empregada doméstica ou diarista regida pela LC 150/2015, chega ao lar da família às 7h da manhã e encontra os filhos se preparando para acessar a aula de português em seus quartos, via collaborate; a esposa no quarto do casal acabou de ingressar em uma reunião de trabalho on-line via meet; e o marido, advogado sócio de um destacado escritório nacional e professor universitário, que teve nesta pandemia que transformar o quarto de hóspedes da casa em home office, ingressa via teams em outra reunião on-line, enquanto aguarda aos alunos da graduação em direito ingressarem na sala de aula virtual. Quando a pessoa ou a família passam a laborar em home office o lar passa a ser um espaço lucrativo.

A partir do momento em que qualquer dos integrantes da família passa a trabalhar, de forma permanente ou temporária em home office, mesmo que em decorrência dos impactos da pandemia do Covid-19, resta reconfigurado o contrato de emprego doméstico e ou diarista em celetistas, repercutindo tais efeitos na seara individual e coletiva dos domésticos e diaristas.

Então, se o quarto das crianças passou a ser a extensão da escola e o quarto do casal ou a sala de estar passou a ser a extensão produtiva da empresa ou do Estado, as atividades laborais ou não — privadas e públicas — podem ser expandidas de forma permanente para além da moldura (física) organizacional tradicional da empresa e do Estado.

A Consolidação das Leis do Trabalho norma como fato central a prestação de serviços humanos a um terceiro, tradicionalmente, pessoa física, jurídica, ente despersonalizado entre outros. Os artigos 9 [1] e 442 [2] da CLT regulam a importância fática do acontecimento laboral, enquanto um fato real, quando a realidade laboral impera sobre a formalismo (Princípio da Primazia da Realidade). Deste modo, é o fato "trabalho humano" e os seus processos de trabalho que a CLT [3] almeja subordinar.

A doutrina jus trabalhista atem-se ao princípio da primazia da realidade, para compreender a importância dos acontecimentos fáticos e reais na definição do contrato de trabalho ou de emprego celetista e ou doméstico, tornando secundários os demais formalismos exigidos pelos demais ramos do direito. Nesta linha seguem autores como Pla Rodriguez (2000), De La Cueva (1959), Rodriguez (2000), Ruprecht (1995), Delgado (2004/2019) dentre outros.

Nota-se publicamente que muitos tribunais [4], juízes, procuradores, promotores e demais servidores públicos da justiça e dos demais Poderes (Executivo e Legislativo) já estavam, mesmo antes da pandemia, laborando em home office (teletrabalho). Aos citados profissionais nasce o alerta da possível desconfiguração dos contratos de trabalho doméstico ou diarista, dos profissionais que limpam, higienizam e cuidam do lar familiar, passando de imediato e retroativamente a um contrato de trabalho celetista.

Para os trabalhadores brasileiros o âmbito doméstico teve intensificada a carga de trabalho lucrativo a partir da informalidade ou da normatização do teletrabalho. Lembra-se o tempo que as costureiras recebiam por peça, laborando em casa, em suas máquinas de costura, com ou sem a ajuda dos demais familiares, quando de quinzena em quinzena o viajante deixava novos panos e recortes, levando as peças prontas para o comércio. Na época a remuneração era paga por peça e o trabalho era prestado com finalidade lucrativa no âmbito doméstico, atualmente as TICs viabilizam esse mesmo modelo de negócio para o setor público e privado de trabalho pela via do home office.

O lar, a casa, a residência familiar, a partir dos avanços tecnológicos, tornam-se espaços de prestação de serviços, então o espaço residencial passa a ser uma extensão da empresa em novas atividades laborais ou tarefas. Acontecimento este que fora potencializado pela pandemia do Covid-19 e suas regras de distanciamento humano (Lei nº 13.979/2020, dentre outras), centrados na manutenção e no funcionamento dos vários setores produtivos do país.

É importante atentar-se que o lapso temporal de "mais de 02 dias por semana" da diarista, definido no artigo 1º da LC 150/2015 criado (deliberadamente) para a não configuração do contrato de emprego doméstico caiu por terra quando da ocorrência do home office. Vez que, com um ou dois dias de trabalho na semana, em uma jornada de 3, 4, 5, 6, 7 ou 8 horas diárias não possuem mais o condão de blindar a configuração do vínculo celetista, tanto para os trabalhadores do setor privado como do setor público (Judiciário, Legislativo e Executivo) que laboram em home office e tem suas residências e locais de trabalho domésticos sendo higienizadas diariamente.

No que tange ao teletrabalho no setor privado, muitas empresas já estavam adotando o sistema home office, mesmo antes da pandemia, com certas ressalvas. Contudo foi a Lei nº 12.551/2011 que deu início ao trabalho a distância pela primeira vez na legislação brasileira, alterando a CLT, que logo fora novamente alterada pela Lei nº 13.467/2017, quando o trabalho a distância começa a ganhar espaço efetivo e contínuo, e deste modo, essas novas dinâmicas laborais exigiriam um conjunto especial de normas laborais, as quais estão dispostas no artigo 75-A-E da CLT.

Tal realidade laboral impacta não só na seara do direito individual do trabalho dos domésticos, como também no direito coletivo desta categoria, pois as barreiras antes vigentes ao reconhecimento das negociações coletivas domésticas, a exemplo de que o lar, a pessoa e a família não eram uma "categoria econômica" caem por terra, pelos efeitos fáticos gerados pelo teletrabalho prestado no âmbito residencial.

A extensão da empresa para o quarto ou a sala de estar da pessoa ou da família impactou diretamente nos fins do trabalho prestado pelas empregas domésticas e das diaristas. Esta doméstica ou diarista que antes, limpavam o chão e tiravam o pó de uma residência familiar, passaram a limpar o chão e tirar o pó de uma extensão da empresa e do estado, de um local onde o trabalho é prestado de maneira remota, contínua e habitual. A mesa de jantar se tornou a mesa do home office, deste modo, tal mutação do lar ou dos objetos que guarneciam o lar, fragilizam a finalidade não lucrativa do trabalho da empregada doméstica e da diarista, quando a pessoa ou qualquer dos integrantes da família passam a laborar no âmbito residencial.

Complexificam-se as responsabilidades laborais e processuais trabalhistas geradas à empresa que tem seus funcionários em home office, em vista de que o trabalho da doméstica passou a beneficia-la diretamente. Em suma, o trabalho doméstico passa a conecta-se à empresa que exige ou que faculta aos seus trabalhadores o sistema de trabalho em home office. Nesta linha, a responsabilidade pelas diferenças salariais geradas pela reconfiguração do vínculo de doméstica para celetista podem recair sobre a empresa? Na seara processual trabalhista, a empresa poderia passar a compor o polo passivo da demanda sendo responsável (litisconsórcio passivo) pela alteração (obrigatória, facultativa ou fraudulenta) do vínculo doméstico para celetista.

Dentre as várias situações não mencionadas, e ainda sem respostas jurídicas, fica a ressalva de que o servidor público ou o trabalhador que optaram pelo trabalho em home office nas segundas, quartas e sextas, quando a diarista higieniza o lar familiar nas terças e quintas, a chance de alcançar alguns julgamentos improcedentes.

Em medidas distintas as TICs afetaram todas as searas da vida humana.


[1] Art. 9º – Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação. (BRASIL, 1943).

[2] Art. 442 – Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego. (BRASIL, 1943).

[3] Art. 1º – Esta Consolidação estatui as normas que regulam as relações individuais e coletivas de trabalho, nela previstas. (BRASIL, 1943).

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    é pós-doutor em Direito pelo programa de pós-graduação em Direito (Direito do Trabalho) da PUC-RS (2022), doutor em sociologia (UFRGS, 2016), mestre em Desenvolvimento (Unijui, 2007), advogado, pesquisador e palestrante.

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