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Ordenação legítima de prioridades é nosso maior desafio nos 34 anos da CF

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4 de outubro de 2022, 8h00

A Constituição brasileira chega, nesta quarta-feira (5/10), ao seu trigésimo quarto aniversário. Em meio aos impasses do Orçamento Secreto e da evidente fadiga do teto de despesas primárias, o maior problema que clama por nossa reflexão coletiva é o desafio da ordenação legítima de prioridades no ciclo orçamentário dos diversos entes da federação.

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Mas o que é ordenar, de forma legítima, prioridades? Trata-se do esforço de identificar o que vem em primeiro lugar e o que pode esperar, situando o lugar de cada qual na fila. Ordenar prioridades é reconhecer que o Estado não consegue atender a tudo o que a sociedade demanda que ele resolva, de uma vez só e de uma vez por todas.

É preciso que o poder público administre as demandas sociais ao longo do tempo, ordenando-as em uma sequência tecnicamente racional e politicamente pactuada. Tal fila, por sua vez, reclama que seja feito um prévio diagnóstico dos problemas, para entendê-los e maturá-los. Daí decorre que o ponto inicial do desafio de ordenar legitimamente prioridades reside no planejamento. Planejar é antecipar racionalmente o futuro, buscando superar os problemas acumulados ao longo do tempo. Para conceber rotas aprimoradas de futuro, é preciso conhecer exaustivamente a realidade antecedente e diagnosticar a existência dos problemas, mesmo sabendo que o Estado não vai conseguir resolvê-los em sua totalidade, de uma só vez e em de uma vez por todas.

Todo bom planejamento tem como ponto de partida o diagnóstico, ou seja, o levantamento ostensivo dos vários desafios que a realidade traz, respeitadas as competências federativas de cada ente político.

Então se fazemos um diagnóstico de problemas e o elenco de desafios é mais abrangente do que a nossa própria capacidade de resolvê-los, o momento subsequente ao diagnóstico passa exatamente pela definição de quais desses impasses serão enfrentados e potencialmente resolvidos a cada tempo, a cada momento.

O diagnóstico é o ponto de partida, mas não é o ponto de chegada. Muito embora até haja um elenco relativamente amplo de dados empíricos coletados para fins de diagnóstico, falta-nos capacidade de enfrentar a perspectiva de que é impossível resolver tudo, para todos e de uma vez só. Eis a razão pela qual é preciso ordenar prioridades em face da própria gestão da escassez.

Ordenar prioridades é escolher o que vem primeiro não só em volume de recursos, mas também em uma perspectiva temporal. São igualmente importantes o tempo da execução orçamentária e a quantidade de dinheiro que o Estado disponibiliza para uma determinada política pública.

Nesse aspecto, em especial, devemos ter consciência de que adiar é uma forma de ajustar. Isso fica claro, por exemplo, quando se permite formar fila de espera no Programa Auxílio Brasil (sucessor do Programa Bolsa Família); quando se gera passivo judicializado de uma política pública; quando se deixa acumular estoque de precatórios; quando não se regulamenta obrigação de fazer do Estado, em omissão quanto aos parâmetros objetivos de implementação de um direito; entre outras formas de postergar a consecução de despesas governamentais.

Fila de espera, falta de regulamentação, passivo judicializado e precatórios são exemplos de como a execução orçamentária consegue — de forma falseada e potencialmente abusiva — inverter fiscalmente as prioridades eleitas constitucionalmente. Aludida inversão traz consigo o elevado risco de captura do ciclo orçamentário: se as prioridades legais e constitucionais são preteridas, é sempre possível passar à frente das demais despesas o interesse de curto prazo eleitoral do governante de ocasião e do seu grupo de apoio político e econômico.

Daí se depreende por que o esforço de fixar o lugar de cada demanda na ordem de prioridades alocativas do Estado é absolutamente nuclear para conferir racionalidade técnica e legitimidade política ao orçamento público.

Após o diagnóstico dos problemas e a fixação da ordem em que eles serão enfrentados em consonância com o planejamento setorial das políticas públicas, chegamos à terceira etapa desse processo de maturação do ciclo orçamentário: o prognóstico. Nesse momento, são cotejadas e avaliadas possíveis soluções para cada qual dos problemas.

O prognóstico é a etapa em que o governo deve testar atentamente se uma parceria público-privada, por exemplo, seria alternativa mais adequada do que a execução direta em determinada consecução de serviço público. Noutro exemplo, cabe contrastar se o repasse de recursos públicos mediante contrato de gestão é melhor, ou não, do que a execução direta da política pública de saúde, diante dos indicadores e circunstâncias de cada realidade avaliada.

Assim se perfazem os três passos em que devem se desenrolar nossas escolhas coletivas. O diagnóstico nos dá o levantamento ostensivo de problemas e nos permite compreender a realidade. De posse desse primeiro passo, devemos eleger qual demanda social vem em primeiro lugar e qual deve esperar, ou seja, é preciso definir claramente o lugar de cada qual das pautas de atuação governamental na fila das prioridades alocativas do Estado. Por fim, devemos testar soluções para que as demandas eleitas como prioritárias sejam submetidas ao processo de maturação acerca das várias alternativas de enfrentamento dos problemas a elas correspondentes.

Em todas essas três etapas de concepção governamental acerca do que precisa ser feito, o planejamento setorial da política pública deveria coesamente dialogar com o planejamento orçamentário.

Desse modo, precisamos fortalecer o plano plurianual (PPA), mas não apenas ele. Precisamos resgatar a intrínseca correlação substantiva entre os planos orçamentários quadrienais, de um lado, e as peças de planejamento setorial nas mais diversas políticas públicas, de outro.

É oportuno lembrar que a essência do PPA reside nos programas de duração continuada, porque ali é que estão densificados fiscalmente os serviços públicos essenciais que devem ser mantidos ao longo do tempo, independentemente do governo que entrar ou sair.

Os programas de duração continuada do PPA correspondem, na seara orçamentário-financeira, ao núcleo constitucional que buscamos definir como "mínimo existencial". Tal garantia intertemporal também pode ser associada, no Direito Administrativo, ao princípio da continuidade dos serviços públicos. Para o Direito Financeiro, portanto, os programas de duração continuada identificam, em última instância, o tamanho constitucionalmente necessário do Estado. Trata-se de núcleo indisponível da ação estatal, que deve ser financiado até mesmo por meio de dívida pública.

Esse horizonte de essencialidade fiscal delimita o tamanho do Estado e fixa as despesas que não podem ser preteridas ou mitigadas ao longo do tempo. Trata-se, como já dito, da própria identidade constitucional mínima do que o orçamento público precisa contemplar.

A fixação dos programas de duração continuada do PPA como o locus onde podemos reconhecer o tamanho constitucionalmente necessário do Estado é reforçada todos os anos pela lei de diretrizes orçamentárias, em seu anexo de despesas não suscetíveis de contingenciamento. Aludido anexo arrola todas as despesas que correspondem normativamente a obrigações estatais e, como tal, não podem ser fiscalmente reduzidas ou limitadas, independentemente do comportamento da arrecadação estatal, o que implica, no limite, que seu financiamento deve ser assegurado até mesmo mediante dívida pública.

As despesas não contingenciáveis são prioritárias, porque devem ser executadas, ainda que haja frustração de receita, mesmo quando se verifique risco de descumprimento da meta de resultado primário e ainda que o PIB seja negativo em determinado exercício financeiro. No pior dos cenários, elas devem ser financiadas mediante dívida pública, daí porque é possível correlacioná-las com a noção de "mínimo existencial" no âmbito do Direito Financeiro.

Tendo isso claro em mente, devemos impugnar a hipótese de determinado gestor público "furar a fila" de prioridades normativas durante a execução orçamentária, passando despesas discricionárias de curto prazo eleitoral, à frente de tais despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento ou dos programas de duração continuada do PPA.

É preciso questionar como fiscalmente ilegítima a opção de postergar tais gastos prioritários, sobretudo quando se verificar que houve alocação de recursos públicos, por exemplo, em festividades, shows e propaganda, ou ainda, quando forem concedidas novas renúncias de receitas por prazo indeterminado e sem pleno atendimento aos requisitos exigidos pelo artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Programas de duração continuada e despesas insuscetíveis de contingenciamento são as prioridades indiscutivelmente eleitas no bojo das leis do ciclo orçamentário. Não cabe frustrar a primazia alocativa que lhes ampara, por meio de filas de espera, omissões regulamentares, restos a pagar, passivos judicializados e precatórios, entre outras estratégias de inversão de prioridades ao longo da execução do orçamento.

É premente que passemos a impor, de forma ampla e ostensiva, o dever de aderência do executado em face do planejado, salvo motivação que objetivamente circunstancie os eventuais desvios de rota. Essa, aliás, é a dimensão conceitual do que foi inscrito no §10 do artigo 165 da Constituição de 1988, pela Emenda 100/2019, a pretexto de impositividade orçamentária.

Entre a teoria e a prática, porém, vai uma longa distância. Infelizmente, no Brasil, nós não temos tido capacidade de pautar a ação estatal, para além do curto prazo eleitoral dos agentes políticos de ocasião. Falta-nos o horizonte de médio e longo prazos.

Sem esse olhar referido ao que almejamos no futuro para o conjunto das políticas públicas, a sociedade brasileira perde a capacidade de enfrentar os riscos de captura patrimonialista dos recursos governamentais. Nesse sentido, é paradigmática a irracionalidade alocativa causada pelo Orçamento Secreto, em face do escasso espaço fiscal disponível sob o teto de despesas primárias vigente na União.

Cabe trazer à tona, em especial, o exemplo do Plano Nacional de Educação (PNE) — Lei 13.005/2014 —, que é decenal e chega ao seu oitavo ano de vigência, segundo balanço feito pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, com 86% das suas metas e estratégias descumpridas. Ora, tamanho inadimplemento não é trivial, de modo que precisamos nos indagar sobre o que poderia explicar tal circunstância.

O alto nível de descumprimento do PNE decorre, em grande medida, do fato de que muitos gestores passam despesas discricionárias à frente das obrigações de fazer fixadas no correspondente planejamento setorial. Tal inversão de prioridades compromete não só o alcance do planejado, mas também fragiliza o debate acerca da qualidade do gasto público.

A esse propósito, precisamos estar conscientes de que é impossível, na realidade brasileira contemporânea, falar de revisão das regras fiscais e de rediscussão qualitativa do teto, sem debatermos as razões pelas quais o planejamento não vincula execução orçamentária.

Por que não fiscalizamos a execução orçamentária, no mínimo, à luz dos pressupostos teóricos do controle do ato administrativo discricionário? No Direito Administrativo, é possível controlar se o motivo alegado para prática de determinado ato discricionário, de fato, existiu e, caso o motivo seja falso ou não seja consonante com a regra de competência, o ato pode vir a ser anulado.

O mesmo raciocínio deveria se aplicar ao controle das despesas discricionárias e também dos atos de execução orçamentária. Exemplifico: quando um gestor contingencia determinadas despesas, alegando frustração de receitas, mas maneja o contingenciamento de forma discriminatória apenas para prejudicar os inimigos e favorecer seus amigos, tal limitação de empenhos poderia vir a ser anulada judicialmente.

Um segundo exemplo pode ser trazido no fato de que, recentemente, houve desvio de parte dos recursos vinculados do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) para abrir espaço fiscal no teto de despesas primárias em prol do orçamento secreto.

Em ambos os casos, precisamos considerar a execução orçamentária como uma série de atos administrativos, suscetíveis a controle, no mínimo, pelos prismas do dever de motivar, do desvio de finalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, tal como já assentado na doutrina administrativista.

É premente a necessidade de impormos o ônus de motivação, caso o executado não seja aderente ao planejado, sobretudo à luz da impositividade orçamentária prevista no §10 do artigo 165 da CF/1988. A noção de orçamento impositivo já é adotada em vários países desenvolvidos e essencialmente diz respeito ao dever de motivar a distorção entre planejado e executado.

Não obstante isso, as finanças públicas brasileiras ainda estão presas à retrógrada tese de insindicabilidade da discricionariedade orçamentária. Precisamos reconhecer que, de fato, a inversão de prioridades alocativas, que ocorre durante a execução orçamentária, ainda é muito pouco suscetível a controle. Para superar a frágil sujeição ao sistema de freios e contrapesos na seara fiscal, precisamos, porém, resgatar o planejamento como o eixo de ordenação legítima de prioridades, até porque esse é o fio da meada que permitirá o exercício do controle sem ofensa ao princípio da separação de poderes.

Para fortalecer o controle é preciso situá-lo como um esforço pedagógico capaz de retroalimentar o próprio planejamento. Ou seja, controle adequado é aquele que é reflexivo e obriga o gestor a aprimorar a concepção da política pública na próxima etapa de planejamento, na medida em que aponta seus vazios assistenciais e inconsistências de prognóstico.

Infelizmente são raras as hipóteses em que o norte de controle pedagógico retroalimenta e aprimora a próxima etapa de planejamento. Uma exceção honrosa, digna de nota, foi o acesso ao coquetel antirretroviral para pacientes com HIV na década de 1990, o qual foi inicialmente judicializado e posteriormente universalizado pelo Ministério da Saúde. Os exemplos de boas práticas são escassos em meio às inúmeras fragilidades fiscais e operacionais que acometem nossas contas públicas. O Brasil repete os erros do passado, como se nunca aprendesse, como se não fosse capaz de incorporar aprendizagem…

Em 2022, estamos a viver o mesmo impasse dos Anões do Orçamento de 1994, na medida em que o Orçamento Secreto nada mais é do que o manejo das emendas de relator, para capturar paroquialmente recursos estatais em uma espécie de execução privada do orçamento público. Mesmo diante da escassez severa imposta pelo teto de despesas primárias, passam à frente opções discricionárias dos parlamentares, em detrimento do planejamento setorial das políticas públicas, em detrimento dos programas de duração continuada do PPA e, por vezes, mediante a pura e simples postergação das despesas obrigatórias, não suscetíveis de contingenciamento.

Enfim, estamos a repetir o passado. A música O Tempo não Para sintetiza, de certa forma, nossa percepção acerca da persistente crise do orçamento público em nosso país, bem como acerca da baixa eficácia dos direitos fundamentais ao longo dos 34 anos de vigência da nossa Constituição Cidadã.

Como cantava Cazuza, na composição escrita por ele, em coautoria com Arnaldo Brandão: conduzem o país inteiro ao caos fiscal, "pois assim se ganha mais dinheiro". Tal realidade só acontece assim, porque nós não planejamos. Afinal, sociedade que não planeja aceita qualquer resultado, inclusive o risco de volta da ditadura, mediante a erosão fiscal da Constituição de 1988.

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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