Opinião

Eventos, fatos e narrativas: o juiz como construtor da verdade (parte 1)

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3 de outubro de 2022, 6h06

"Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas águas." (Heráclito)

1 – Introdução
Sobre o que decidem os juízes? É verdade que os juízes decidem sobre fatos? Ou será que o juiz é um construtor desses fatos? O que é um fato? Há diferença entre fato e evento? Quantos fatos existem? Onde estão os fatos? O que é uma narrativa? O que é o relato vencedor?

Há alguma diferença entre um fato social, um fato político, um fato econômico, um fato jornalístico e um fato jurídico? Qual é essa diferença? Onde ela está?

Estas perguntas não são comuns no debate jurídico. Todavia, elas são essenciais no âmbito de qualquer discussão política, econômica, jornalística e, especialmente, jurídica.

Sem essa reflexão, corre-se o risco, e isso frequentemente ocorre, de a discussão se concentrar mais nas impressões pessoais de cada um a respeito dos acontecimentos do que nos critérios de significação da realidade: valorativo, probatório e epistemológico.

Assim, quando se passa ao largo dessa reflexão, impera o voluntarismo. Com a reflexão, o debate qualifica-se e consegue-se identificar e isolar o efeito que determinados valores, crenças e interesses estão tendo sobre a decisão. Em suma: no limite, é possível identificar com relativa clareza os interesses em jogo.

2 – O evento, o fato e a narrativa:
Para conceituar o fato, necessário, antes, entender o que é um evento ou acontecimento.

Evento é tudo o que ocorre. A Terra gira em torno do seu próprio eixo. A morte de alguém. O nascimento de alguém. Segundo o site worldmeter [1], morrem cerca de 120 mil pessoas por dia no planeta, enquanto nascem outras 270 mil.

O pregão da bolsa de Nova York. A fabricação de uma joia. Um beijo apaixonado. O sermão de um padre. A chuva que cai, ou a chuva que não cai. O comício de um político. Uma votação no sindicato dos professores. Uma sessão do Conselho de Segurança da ONU. Uma partida de futebol. A batida de asas de uma coruja na noite silenciosa. Tudo que ocorrer em qualquer parte do planeta é um evento ou acontecimento: natural ou social.

Por sua vez, o fato é uma narrativa sobre o evento. Por narrativa, entenda-se a significação da realidade que alguém faz a partir do uso da linguagem.

Em outras palavras, fato é o nome que se dá à expressão da realidade, pelo ser humano, através da linguagem. Os fatos, portanto, são expressos por meio de construções lógicas da linguagem chamadas de proposições. É exatamente por isso que Wittgenstein diz que o homem deve perceber que os limites do seu mundo fundam-se nos limites do dizível [2].

Na acepção estrita, com Saussure, deve-se entender linguagem como o uso do idioma, através da fala, para descrever o que se vê, para dar opinião, para convencer alguém de ideias que se tem e conclusões a que se chega. Então, nesse sentido, a linguagem, observando os princípios e regras do idioma, é composta de símbolos que formam palavras, termos e expressões, compondo orações e frases com o objetivo de comunicar o que se pensa.

Por outro lado, na acepção mais ampla, a linguagem é tudo o que existe além de nós, ou seja, é tudo que chamamos de realidade. Assim, todos os eventos chegam até nós através de linguagem: a natureza, os seres e suas ações são eles próprios já linguagem.

E qual a razão da existência dessa acepção ampla? De forma simples, pode ser dito: somente compreendemos isso que chamamos de realidade, porque damos algum significado a ela. E somente conseguimos dar esse significado, porque traduzimos a linguagem bruta da realidade para a linguagem elaborada a partir de nossa língua. É exatamente nisso que consiste o ato de significação da realidade.

Presenciamos um acontecimento natural, uma chuva. Essa chuva só faz algum sentido para nós se dermos a ela um significado, mesmo que seja o mais simples: está caindo água do céu. E somente podemos dar esse significado porque utilizamos a linguagem em sentido estrito. Cair, água e céu já são significações.

Assim, voltamos ao conceito de fato. O fato é a narrativa que alguém constrói a partir de determinado evento. Essa narrativa é o resultado do processo de significação que alguém faz do evento: a chuva representa o fim de um ciclo de dificuldades sociais e o início de um tempo de prosperidade para alguém. Mas a chuva também pode significar ruína, morte e destruição, assim como pode significar apenas um som confortável para dormir. Não há limites para a significação.

Os fatos somente existem, portanto, enquanto nós falamos deles. Os eventos, por sua vez, nunca se repetirão. Jamais. Tudo que fica são apenas os fatos. E mesmos estes vão se transformando. A própria História é um conjunto de fatos que vão sendo construídos, mantidos, modificados de maneira indefinida. Aliás, é exatamente isso que significa cancelar alguém: mudar a narrativa. O herói agora é vilão e vice-versa.

César atravessou o Rubicão, quando voltava de sua campanha na Gália? Helena foi raptada por Páris Alexandre, ou se apaixonou e fugiu com ele? Jamais saberemos. Se o leitor não sabe o que é o Rubicão, não sabe onde fica a Gália e não se lembra quem foi Helena nem Páris Alexandre, então não conseguirá construir qualquer significação sobre esses comentários.

É exatamente por isso que se diz: a linguagem é que constitui a realidade. E cada um constitui a realidade nos exatos limites de sua própria linguagem. Um arquiteto entra em um prédio. Ali, para ele, existe uma realidade que é completamente estranha para o leigo.

Por isso, em meu livro O que Define uma Decisão Judicial e Quais os Limites do Juiz, afirmei que o juiz não examina, não conhece, nem nunca conhecerá, os eventos que dão origem aos fatos que julga, sejam aqueles relacionados a uma simples demanda trabalhista, na qual um empregado busca o reconhecimento de horas-extras, sejam aqueles relacionados a uma demanda cível, na qual alguém busque indenização decorrente de acidente de trânsito, sejam aqueles relacionados com uma demanda criminal de grande complexidade, como aquelas processadas e julgadas pela Justiça Federal e STF no conjunto que ficou conhecido como operação "lava jato".

Tudo o que o magistrado faz é decodificar a linguagem através da qual os fatos sociais, os fatos jurídicos e as relações jurídicas são construídos e lhes são apresentados, interpretá-la e constituir a realidade que será objeto do seu julgamento. Nada além.

Assim, acerca do evento, que é qualquer acontecimento passado e que jamais se repetirá, só se sabe o que se ouve ou que se lê dele, ou seja, os fatos e suas variadas versões. Cada versão dos fatos pode ser também chamada de narrativa.

Na era da hiperinformação, da sociedade em rede e da ampla análise dos dados que trafegam nas redes sociais, a construção das narrativas é cada vez mais sofisticada. Por exemplo: a opinião ou as palavras-chave que se mostram nos trending topics de uma rede social ajuda o construtor de narrativas a saber que fatos ainda precisam ser modelados.

E tudo que se ouve ou que se lê só ganha sentido porque o leitor ou o ouvinte é capaz de compreender e interpretar os signos da linguagem através da qual se fala ou se escreve. E como toda interpretação, segundo a visão da hermenêutica filosófica [3] e do construtivismo lógico-semântico [4], implica na atribuição de sentido à linguagem que se interpreta, todo intérprete, e o juiz é um deles, constitui a realidade que julga.

3 – O juiz como constituinte da realidade e construtor da verdade:
Suponha-se, por hipótese, um ponto em uma área rural na qual passa uma linha férrea. Nenhuma casa por perto, apenas um indivíduo nas imediações: um camponês sem capacidade para ler ou escrever. Um trem de carga descarrila e produz gravíssimo acidente, sem sobreviventes e com perda de toda valiosa carga de compostos químicos complexos que transportava. Um evento, como qualquer outro, irrepetível.

Quando o camponês chega a sua vila, espalha a notícia. Um fato. Quando uns vão transmitido o relato inicial aos outros, já não se tem um, senão dezenas, ou até centenas de fatos diferentes. Todos, contudo, muito pobres de conteúdo, pois não se sabe o nome, a nacionalidade nem o número de vítimas, muito menos as causas do acidente, o valor da carga, seus titulares, seu destino, nem tão pouco a extensão do dano ambiental etc.

Aos poucos, os funcionários da companhia vão se manifestando, as autoridades públicas, os familiares das vítimas, os peritos em acidentes ferroviários, os proprietários da carga.

O evento vai sendo descrito em linguagem e a realidade vai se constituindo através de fatos de variadas ordens: fatos sociais, através da linguagem comum, fatos econômicos, através da linguagem da economia, fatos políticos, através da linguagem política, fatos jurídicos, através da linguagem jurídica.

Quando as pessoas leigas vão falando sobre o evento, vão se constituindo fatos sociais. Quando algum economista explicar em suas redes sociais a razão pela qual as ações da companhia proprietária do trem caíram na bolsa, teremos a descrição de um fato econômico. Quando algum político local culpar o presidente da República pelo desastre, dizendo que faltaram investimentos para a conservação da ferrovia, ter-se-á um fato político. E quando algum advogado narrar um fato a partir da linguagem da lei, ter-se-á um fato jurídico em sentido amplo.

Entretanto, uma indeterminada quantidade de detalhes do evento nunca virará um fato, simplesmente porque não haverá ninguém para falar deles. Outra grande quantidade de fatos será construída a partir de distorções do evento, produzindo desinformação e notícias falsas.

Quando a primeira certidão de óbito é lavrada, o evento morte se torna fato jurídico em sentido estrito. Assim, ocorrerá com as multas administrativas impostas, com as prisões cautelares deferidas, com o pagamento de benefícios pelas seguradoras, com as demissões de funcionários e, enfim, com uma infinidade de outros fatos jurídicos que vão se somando ao fato inicial narrado pelo camponês ao primeiro companheiro que encontrou após o fatídico evento e que, juntos com fatos de ordens diversas, construídos por linguagens diferentes, vão cerzindo o tecido da verdade.

É exatamente nesse sentido que a realidade é constituída pela linguagem [5].

E essa realidade é constituída, diuturnamente, por juízes e tribunais.

No próximo texto, será explicado como esse fenômeno ocorre no interior das decisões judiciais e como os advogados são peças chaves nesse processo.

Continua parte 2


[2] "Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo". (WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 2008, Proposição 5.6, p.245).

[3] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2012.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2014.

[5] "Vilém Flusser afirmou que universo, conhecimento, verdade e realidade são aspectos linguísticos, de tal modo que a língua é, forma, cria e propaga a realidade. Aquilo que nos chega pela via dos sentidos (intuição sensível), e que chamamos de 'realidade', é dado bruto, que se torna real apenas no contexto da língua, única responsável pelo seu aparecimento. Assim, todas as palavras metáforas. As ciências, como camadas de linguagem, longe de serem válidas para todas as línguas, são, elas próprias, outras línguas que precisam ser traduzidas para as demais. O autor tcheco foi fortemente influenciado por Wittgenstein e por Husserl, criando seu método de análise fenomenológica da linguagem, o que lhe permitiu captar a língua como elemento vivo, capaz de transformar o caos dos dados imediatos, no cosmos das palavras preenchidas" (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. Noeses: São Paulo, 2013, p.170).

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