Opinião

Vínculos entre ceticismo, conservadorismo e nacionalismo

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

3 de outubro de 2022, 16h03

O denominado ceticismo político tem marcada origem na filosofia moderna e, em especial, nos questionamentos cartesianos sobre a essência da existência humana. Desta forma, é válido afirmar que o ceticismo se associa com o conservadorismo no exato momento em que estes se apresentam como formas racionais do pensar, fundadas no permanente questionamento e, sobretudo, no abandono da paixão.

Neste sentido — e não obstante o ceticismo ser comumente relacionado ao pensamento progressista (uma vez que o mesmo é visto como desafiador de temas entendidos, tradicionalmente, como conservadores, como a religião) —, não pode haver qualquer dúvida de que a filosofia do pensamento conservador nasceu, fundamentalmente, do ceticismo, como muito bem exemplificado pelo chamado conservadorismo britânico, concebido por David Hume, que possuía, em sua essência, uma forma de pensar plenamente cética.

Segundo o pensamento de Hume, como o permanente questionamento acaba por conduzir o ser humano a não acreditar na construção (pura) da razão, os costumes e as tradições passam a se constituir na "viga mestra", norteadora dos valores da vida e da própria existência do gênero humano.

Como Hume também era reconhecidamente um liberal clássico, não há como duvidar do fato de que o conservadorismo encontra-se associado ao pensamento liberal, apesar de todas as críticas que são consignadas quanto ao emprego, em conjunto, destas duas formas (aparentemente distantes e irreconciliáveis) de pensamento.

Destarte, a ideia central de que o conservadorismo não se relaciona com o liberalismo e estes com o ceticismo advém da imperiosa necessidade humana de separar e catalogar ideias que, em um primeiro momento, parecem não se complementar (e até mesmo se contrapor), mas que na realidade podem perfeitamente se harmonizar, operando em conjunto.

É importante ressaltar que o ceticismo não está umbilicalmente ligado (como advogam alguns estudiosos) a um fatalismo ou mesmo a um pensamento pessimista. Tampouco o ceticismo necessariamente significa a "simples negação de tudo", ou a falta de crenças ou, mesmo, ao irrestrito apoio a determinadas ideias, o que nos conduz a concluir, em necessária adição reforçativa, que inexiste qualquer prova cientifico-acadêmica de que o ceticismo é uma ideia necessariamente convergente com o progressismo.

Nesta toada, é importante ainda salientar que o conservadorismo, para alguns especialistas, é muito mais do que apenas e tão somente uma ideologia "estagnada". Muito pelo contrário, o conservadorismo, em sua correta tradução, se afigura como uma verdadeira "escolha de vida", uma forma de pensar que busca manter a tradição, ainda que com as indispensáveis anulações das injustiças históricas que tanto auxiliaram (e sustentaram moralmente) os críticos desta corrente de pensamento.

Afinal, como produto da razão humana, o conservadorismo também se transformou (naturalmente) com o passar do tempo, se adaptando à sociedade e às suas inerentes mudanças e transformações, valendo a máxima de que o "conservador de hoje é muito diferente do conservador de outrora".

"É importante assinalar que, de forma diversa da narrativa dominante, a IDEIA central do MOVIMENTO CONSERVADOR é CRESCER pela EVOLUÇÃO e não DESTRUIR pela REVOLUÇÃO." (REIS FRIEDE; Fragmento da Palestra Perspectiva do Poder Judiciário na Evolução Social Brasileira no Século XXI, proferida na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército — Eceme em 24/5/2019)

Zeev Sternhell, historiador israelense nascido na Polônia, e um dos maiores especialistas no pensamento da extrema direita do mundo, entende que a ascensão desta ideologia política (ainda que em seu sentido potencial e não propriamente efetivo, como advogam alguns que propositadamente confundem alguns regimes antiesquerdistas como autênticos representantes deste pensamento político), ao contrário do que possa parecer ao senso comum, não começou hodiernamente, mas sim como uma expressão de uma tradição que vem do século XVIII.

Há duas (reconhecidas) modernidades na história intelectual da Europa. A primeira é racionalista e se baseia em valores universais. A grandeza do Iluminismo é, a partir da premissa racional de que todos os indivíduos são iguais, desenvolver direitos sociais e políticos baseados na razão.

A segunda tradição é quase tão antiga quanto a primeira (que conta com 250 anos), sendo certo que alguns alegam que a catástrofe fascista tenha sido um dos seus efetivos resultados. É importante salientar que, em verdade, o fascismo não foi banido (definitivamente) há 70 anos, razão pela qual a segunda tradição tem ressurgido, ainda que como força pensante (e não como plena realidade). Atualmente percebe-se claramente a continuação (ainda que em outros termos) da luta contra a filosofia do Iluminismo e, com ela, contra o Estado de bem-estar social, contra a democracia e contra os valores da liberdade e da igualdade.

Uma das razões do reaparecimento destas ideias — além do fato de que, desde sua fundação, nunca estiveram efetivamente mortas —, é que a geração mais nova simplesmente não tem consciência e real experimentação quanto aos efeitos (humanitários) da guerra. Isto explica, em parte, a razão pela qual depois do Brexit, fala-se com mais frequência sobre uma saída da França ou da Itália da União Europeia (ANDRÉ DUCHIADE; Onda Nacionalista Reedita Velha Batalha Contra o Iluminismo, O Globo, Rio de Janeiro, 26/5/2019, p. 34).

No entanto, não se pode olvidar que um dos pilares da fundação da União Europeia foi, antes de tudo, prevenir (após o fim da Segunda Guerra Mundial) outra guerra, objetivo este que fez os países signatários dedicarem-se a cultivar laços, e a fundarem um mercado comum com uma união política e monetária. Indubitavelmente, esse projeto de cooperação foi extraordinariamente bem-sucedido, uma vez que trouxe o período de mais longa paz da história (além de grande prosperidade), havendo um senso comum de que não há lugar no mundo onde a vida seja melhor (na atualidade) do que na Europa ocidental.

Contudo, a grande questão nos dias atuais é a do nacionalismo, que se consubstancia como parte integral da luta contra o Iluminismo. Com frequência o nacionalismo radical começa a se tornar um protofascismo ou um fascismo de fato, o que acontece desde o século XIX.

Segundo Zeev Sternhell há duas concepções de nação. Na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, nação é definida como um "conjunto de pessoas que vivem em um determinado território delimitado por certas fronteiras e obedecem ao mesmo governo". Essa concepção de nação representou a tentativa dos defensores do Iluminismo de superar as resistências da história e da cultura, com o objetivo de afirmar a autonomia dos indivíduos. A sociedade se forma como um agregado de indivíduos, os cidadãos.

Ao lado dessa visão iluminista da coletividade, havia, no século 19, uma visão de nação como um corpo orgânico, onde os indivíduos não tem interesses antagonísticos entre si. Esta tradição compreende os indivíduos como umbilicalmente presos à cultura nacional, baseada restritivamente em uma língua e uma religião. O que emerge daí é uma ideia de uma sociedade tribal, fortemente concentrada em um núcleo racial, ligado a igrejas e a um arraigado passado histórico.

É para esta tradição, — revisionada na presente centúria —, que se volta, pelo menos em parte, o premier húngaro Viktor Orbán, segundo Zeev Sternhell. O premier defende uma democracia iliberal, o que obviamente não teria muito sentido, uma vez que a democracia ou é liberal, ou simplesmente é inexistente. O que pode se esconder por trás dessa expressão é o fim da liberdade de expressão e da nação vista com uma comunidade de cidadãos, que podem definir os seus próprios destinos, o que nada mais é que uma forma de ditadura (ZEEV STERNHELL em entrevista concedida a André Duchiade; Onda Nacionalista Reedita Velha Batalha Contra o Iluminismo, O Globo, Rio de Janeiro, 26/05/2019, p. 34).

A força destas ideias é preocupante, considerando que se alicerçam em apelos a tudo o que divide as pessoas — como a história, as culturas e os idiomas —, em contraposição a tudo o que as une, ou seja, sua condição como seres racionais, dotados de direitos fundamentais. Os que defendem o fim da União Europeia, por exemplo, argumentam que as identidades nacionais estão sendo destruídas, o que apenas em parte é verdadeiro, quando se incluem no conceito de nações europeias refugiados que não somente não conseguem se integrar aos valores europeus, como buscam, inclusive, destruí-los.

Tais indivíduos, nesta toada mais radical, defendem que não querem ser europeus, mas sim poloneses, húngaros, ou então ingleses. A ideia de europeus trabalhando juntos, ou pessoas de um lugar morando em outro e ao mesmo tempo mantendo a história, mas construindo uma identidade compartilhada, não é, portanto, amplamente aceita, apesar de um incontestável intercâmbio histórico de valores europeus democráticos.

O Estado, nas democracias liberais, existe para fazer a vida dos seus cidadãos melhor. Conservadores liberais, socialistas liberais ou socialdemocratas entendem que os direitos sociais têm o objetivo de beneficiar a vida das pessoas. A sociedade e o Estado não devem ter outro propósito senão melhorar a vida de seus habitantes e fazê-los mais felizes. Em uma visão política oposta, cujas vertentes atuais poderíamos chamar de autoritárias iliberais, o indivíduo não é o objetivo do Estado, entretanto, o interesse do indivíduo seria idêntico ao do Estado, qual seja, tornar o Estado mais forte e mais feliz.

Segundo Zeev Sternhell, pode-se considerar, portanto, que os integrantes desta corrente de pensamento (a que alguns propositadamente rotulam como "neoconservadores", buscando a confusão semântica em detrimento do esclarecimento da previsão vocabular) são verdadeiros revolucionários, tendo em vista que, em tese, querem destruir tudo aquilo que as democracias se propõem a oferecer e, substituindo a liberdade e a igualdade por uma forma radical e distorcida de nacionalismo. O objetivo não é tornar os indivíduos mais felizes, mas sim as nações mais poderosas.

"O fascismo é uma ideia de gênio, que permite a destruição dos valores liberais, sem tocar na economia liberal." (ZEEV STERNHELL em entrevista concedida a André Duchiade; Onda Nacionalista Reedita Velha Batalha Contra o Iluminismo, O Globo, Rio de Janeiro, 26/5/2019, p. 34)

De fato, o fascismo entendia que a economia era secundária à cultura, e que esta, antes de tudo, moldava a vida das sociedades. Deste modo, seria possível alcançar paz e harmonia sociais sem mudar de qualquer modo a realidade econômica e social. Destarte, resta evidente a necessidade de se restringir a democracia liberal, e tal limite é não entregar tudo aquilo que promete.

"As pessoas comparam o que é prometido com o que têm e consideram que não é bastante. Elas estão certas de que as condições podem melhorar, de que há espaço para melhorias. Por outro lado, insisto, não há lugar onde a vida seja melhor do que na União Europeia. É muito melhor ser pobre na França, na Alemanha ou na Bélgica do que em qualquer outro lugar, inclusive os Estados Unidos ou o Canadá. Há limites, de fato, mas, em termos objetivos, os resultados são melhores do que quaisquer outros da história". (ZEEV STERNHELL em entrevista concedida a André Duchiade; Onda Nacionalista Reedita Velha Batalha Contra o Iluminismo, O Globo, Rio de Janeiro, 26/5/2019, p. 34)

O surgimento de novos movimentos geopolíticos mundiais, aliado a esse "renascimento" de ideias ultrapassadas — travestidas, com senso de oportunismo, como "neodemocráticas" —, indubitavelmente deixam o mundo em alerta, em efetivo prejuízo às concepções verdadeiramente democráticas (e liberais).

Autores

  • é desembargador federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) e professor honoris causa da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (Ecemar).

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