Pensando a Lápis

A importância do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero

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3 de outubro de 2022, 8h00

No dia 1º de setembro, o Iasp — por meio de suas comissões de Direito de Família e Sucessões, Direito Antidiscriminatório e Direito das Mulheres — promoveu um importante evento sobre o Provimento 128/22 CNJ: Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.

A relevância deste tema é muito grande e pode ser dividida em diversos pontos. Neste momento, a atenção se volta para que o protocolo seja conhecido, estudado e seguido pelos que atuam no sistema, especialmente os julgadores.

Citamos um trecho importante constante da introdução do citado protocolo:

"Cumpre acentuar que este protocolo é mais um instrumento para que seja alcançada a igualdade de gênero, Objetivo de Desenvolvimento Sustentável ODS 5 da Agenda 2030 da ONU, à qual se comprometeram o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça.

Este instrumento traz considerações teóricas sobre a questão da igualdade e também um guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas, de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos."

O documento é fruto de um grupo de trabalho que estudou a temática sobre a questão do gênero nos julgamentos dos processos. O grupo do trabalho lançou o documento em outubro de 2021, e em fevereiro de 2022 o CNJ fez com que esse documento fosse objeto de uma recomendação para os julgamentos.

O conteúdo é substancialmente rico, abrangendo as diversas fases do processo e a aplicabilidade dos seus comandos nos diversos ramos da Justiça. É um guia que traz importantes diretrizes que, acreditamos, se observadas, mudarão de forma efetiva e radical a condução dos processos e os seus julgamentos.

Mas por que um tema que deveria estar em evidência ainda está pouco disseminado entre os diversos atores do sistema de julgamentos (advogados, juízes, procuradores e promotores)?

Não há resposta pronta. "Pensando a lápis", podemos rascunhar que o protocolo é sobre o julgamento, ou seja, é direcionado aos magistrados, que, pelo perfil sociodemográfico apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça [1], formam em sua grande maioria um conjunto de homens brancos de classe social média a alta. E nas cortes superiores a predominância dos homens brancos fica evidente. Disso resulta que mudar o "status quo" é tarefa hercúlea, porque a questão central do protocolo, que é olhar para as gigantes diferenças entre homens e mulheres em todos os momentos processuais e, especialmente, no julgamento, fere um viés inconsciente coletivo e próprio do nosso atual sistema de poder, que busca um tratamento igualitário no julgamento, porém, segundo nosso entendimento, tratando igualmente as partes que são desiguais.

A diferença deve ser contemplada nos julgamentos. Não devem ser opostos empecilhos à diversidade, pois há que se reconhecê-la e, com o olhar da diversidade e tendo como premissa que há desigualdades, construir o sistema processual que culmina no julgamento.

Para verificar a dificuldade em modificar a perspectiva do julgamento, como pretende o protocolo, sugiro perguntar às magistradas e, especialmente, aos magistrados do nosso círculo, se já estudaram o protocolo, se o teor do protocolo já foi objeto de palestras ou cursos que fizeram. Infelizmente, a resposta será negativa em sua maioria.

Afinal, encarar que há desigualdade de gênero é ir contra tudo o que foi ensinado e estudado por anos, e as pessoas de uma maneira geral — porque é próprio do ser humano — resistem às mudanças, ainda mais mudanças que atingem a própria forma de ser, existir e pensar.

Ao ouvir a doutora Adriana Manta da Silva, magistrada federal substituta do TRT da 5ª Região, em sua palestra no referido seminário promovido pelo Iasp, registramos a sua explicação pela necessidade da mudança, e por isso a importância do protocolo: "não há mais possibilidade de encararmos tanto as normas jurídicas, quanto as decisões e as pessoas que compõem o ordenamento, o sistema de justiça, como normas, pessoas e decisões neutras. E que neutralidade é um mito, e que a neutralidade em nada se relaciona com a imparcialidade. A aplicação do protocolo garante uma imparcialidade, um processo mais justo e a imparcialidade da pessoa que julga".

Ou seja, trazendo as lições da magistrada, fica claro que os mitos da "imparcialidade" e da "neutralidade" levaram e continuam induzindo julgadores a entender que o correto é tratar todos igualmente no processo, isto é, não há (ou havia) preocupação em colocar as assimetrias sociais como um "peso" a ser considerado na condução e julgamento dos processos, sendo que, indubitavelmente, essas assimetrias se apresentam nos conflitos que são o objeto dos casos concretos. E, para além disso, os julgadores têm acreditado que sua imparcialidade e sua neutralidade se originam do suposto distanciamento das partes e fatos; porém, não se atentam a todo o sistema machista, racista e com tantas desigualdades em que estão inseridos.

A sociedade é fundamentada em processos subjetivos que hierarquizam, dividem as pessoas pela raça, gênero, classe social, idade, dentre tantos outras.

Então, a imparcialidade e, tampouco, a neutralidade não se concretizarão se não forem sopesadas as diferenças de gênero.

Daí que uma das grandes importâncias do protocolo é trazer a ideia de neutralidade, que somente será atingida quando forem admitidas as diferenças.

Nas páginas 35 e 36 do documento encontramos uma explicação sobre essa questão da imparcialidade e da neutralidade. A seguir, escolhemos alguns trechos.

"É dizer, a desconsideração das diferenças econômicas, culturais, sociais e de gênero das partes na relação jurídica processual reforça uma postura formalista e uma compreensão limitada e distante da realidade social, privilegiando o exercício do poder dominante em detrimento da justiça substantiva. Nesse contexto, o patriarcado e o racismo influenciam a atuação jurisdicional. Como foi dito, magistradas e magistrados estão sujeitos, mesmo que involuntária e inconscientemente, a reproduzir os estereótipos de gênero e raça presentes na sociedade. A partir dessas premissas, a neutralidade do direito passa a ser compreendida como um mito, porque quem opera o direito atua necessariamente sob a influência do patriarcado e do racismo ou ainda, passa a ser reconhecida como indiferença e insensibilidade às circunstâncias do caso concreto. Agir de forma supostamente neutra, nesse caso, acaba por desafiar o comando da imparcialidade."

E, mais adiante no texto, é escrito com todas as letras:

"A ideia de que há neutralidade nos julgamentos informados pela universalidade dos sujeitos é suficiente para gerar parcialidade."

Portanto, fica claro que os julgadores precisam repensar este tema, e, como bem colocado em todas as palestras que foram proferidas no evento do Iasp, é fundamental que toda a comunidade jurídica dê o primeiro passo de conhecer o documento, para poder reconhecer que a neutralidade do julgador, na forma atualmente estabelecida, é um mito que precisa ser enfrentado para que, a partir do reconhecimento das diferenças, não sejam mais mantidas as tão fortes desigualdades — em especial, na perspectiva de gênero.

 


[1] O Conselho Nacional de Justiça publicou o perfil sociodemográfico dos Magistrados em 2018 e está no site do CNJ.

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